A donzela e a fera - O monstro da cidade de Corvus escrita por Nina Lazúlli


Capítulo 1
O monstro da cidade de Corvus Part. I


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura.



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  “Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine.
E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria.
E ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse amor, nada disso me aproveitaria.
O amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não trata com leviandade, não se ensoberbece.
Não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal;
Não folga com a injustiça, mas folga com a verdade;
Tudo sofre tudo crê, tudo espera, tudo suporta.
O amor nunca falha; mas havendo profecias, serão aniquiladas; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, desaparecerá;
Porque, em parte, conhecemos, e em parte profetizamos;
Mas, quando vier o que é perfeito, então o que o é em parte será aniquilado”.

(Coríntios 1:10)

 

***

Seu rosto desafia-me, lábios carnudos convidam-me e repelem no mesmo instante em que se abrem. De sua garganta um grunhido estridente sai – Som de ódio e dor ecoa pelo bosque de branca neve manchada de vermelho. Vermelho sangue tal qual se assemelha ao mais doce vinho.

Poderia provar tal gosto?  E despertar a ira de Deus com a gula animalesca de um deus pagão? Já ando em pecado. Feito um animal enjaulado vivi em cárcere longe de tudo e todos, isso foi suficiente para me tornar, talvez menos humano do que o velho homem cristão que comprou-me e me acorrentou em seu sótão, fez-me de meu corpo dócil a obedecê-lo nas tarefas árduas e diárias de um pobre camponês e ferreiro, sem obter o sucesso de escravizar-me a mente.

A mulher de pele pálida como nuvem, rasteja pela neve marcando-a cada vez mais com o sangue que escorre de suas mãos e abdômen, deixando para trás um rastro do líquido púrpura e humano. A alguns centímetros distantes, talvez saiba que não conseguirá fugir, mas o desejo de viver grita dentro de si mais forte do que sua própria respiração acelerada e descompassada a qual consigo sem dificuldades ouvir.

Vendo-a tão indefesa como uma lebre encurralada por uma raposa, lembro-me de quando ainda era criança e fui vendido, agredido fisicamente e psicologicamente inúmeras vezes. Ela não sabe o que é ser humilhada, não faz ideia do que é sentir na pele e n’alma tais sofrimentos, minha pele amorenada pelo calor da forja tem inúmeras cicatrizes. Sua pele alva e macia nunca havia sido tocada - violada. É tão imaculada como a própria Vênus de Milo. Definitivamente, ela não sabe o que é sofrer, mesmo estando em tal estado. Esse martírio é pouco para um homem que sofreu desde o nascimento.

Aproximo-me calmamente de minha presa, que inutilmente tenta se afastar, puxo os fios de cabelos castanhos claríssimos, cumpridos e lisos erguendo sua cabeça, os olhos claros desesperados fitam-me com lágrimas. Puxa meu braço inutilmente tentando se livrar arranhando-me a pele, com suas longas unhas afiadas; típicas de uma dama, unhas que raspam-me em desespero a carne de meu braço. Sua boca arroxeada pelo frio que se faz presente na floresta esta um tanto inchada, fazendo um filete brilhante de sangue escorrer. É estranho, mas me convida a tocá-lo, eu o faço; limpo o líquido rubro tão humano da pele alva e fria de minha presa. A adaga que se encontra em minhas mãos pinga de sangue, ergo-a e a ponho em sua garganta, um grito estridente de pavor vindo de Alissha ecoa por toda a floresta. Minhas mãos tremem pela primeira vez desde que matei meu senhor e sua família; cada membro daquela imunda família cristã onde se escondia o verdadeiro demônio restando apenas Alissha; a filha mais nova.

Sei que ela nunca me humilhou se quer machucou-me, ao contrário; alimentava-me quando deixavam-me sem comer, limpava as feridas grossas que marcaram minha pele escondida sobre meus protestos, sempre conversando comigo nesses momentos, onde minha única resposta era o silêncio, apenas me permitia ser tratado pelas mãos de fada que agora arranham-me a pele feito um pobre animal antes do abate na fútil tentativa de se tornar livre. Não me importo se tentou me ajudar, ela é parte da prole de Lord Von Bonali e Lady Cassandra. Quem irá garantir que no futuro ela não faça o mesmo que sua família agora morta fez a mim, a outras pessoas? Ela precisa morrer. Por trás de um anjo pode se esconder um demônio, não posso correr o risco.

— Não faça isso Desmond, você não é assim... Eu acredito em você, no coração bom que não morreu dentro de si.

— Mi Lady meu coração morreu desde que sua querida família escravizou-me.

— Eu não acredito nisso! - Gritou em desespero com os olhos marejando.

Apertei a lâmina afiada contra o pescoço da dama que respira ofegante, cujo a forte respiração fazem subir e descer os seios fartos pelo decote sujo do sangue que escorreu do ferimento feito à faca.

— Sinto muito milady, mas não posso deixar que viva.

— Não, não. Ainda tens chance de mostrar que é um bom homem. Eu não me importo que tenha me ferido, eu acredito em você…

— Matei sua família e ainda diz isso! – Alterei a voz rouca em espanto.

— Não tens culpa. A realidade de hoje é fruto da maldade que meus pais e meus irmãos fizeram. Fui conivente, deveria ter insistido mais para que lhe soltassem, me perdoe. Deveria ter feito o que fiz antes. – Sua doce voz estava fraca e embargada.

O que ela quis dizer? Suas palavras me confundiam, pois pude ver em um momento antes ódio nos olhos claros, o que seria àquilo senão ódio e repulsa?

— O que você disse? Eu não entendi milady, por acaso está tentando ganhar tempo para que a milícia chegue?

— Eu não preciso de tempo. Meu tempo está em tuas mãos, assim como na noite de ontem ele esteve pela chave nas tuas mãos. As chaves que lhe trouxeram liberdade.

— Deixou a chave propositalmente em frente minha cela? – Espantei-me e a soltei, deixando-a cair com as mãos apoiadas no chão.

Ela tentava recuperar o ar com dificuldade. Abaixei-me perto dela, toquei os delicados lábios machucados e sujos por seu próprio sangue.

— Matei seus familiares, você se arrependeu de ter me ajudado a fugir, por tê-los matado? Era por isso o ódio que vi em seus olhos.

— Desmond... Não posso dizer que por dentro meu coração não sangre pela perda de minha família, estaria mentindo se dissesse isso. Mas minha revolta foi por que havia visto em ti o monstro que se tornou pela crueldade que fizeram a ti, era por eu não ter conseguido salvá-lo antes do destino que se sucede. Por não ter te libertado antes, por ter sido fraca, por ter tido medo de meu pai e de meus irmãos. Perdoe-me, sou a maior culpada, pois eu era a única pessoa sensata que viu todo o seu sofrer e a única culpada pela morte de minha família. -Chorou apertando a neve com força em suas pequenas e frágeis mãos.

Olhei-a admirado e ao mesmo tempo indignado, o que ela havia feito? Aquela doce dama aquém estou tentando matar foi quem mostrou-me o caminho para a liberdade, com isso inconscientemente condenou a si e sua família a própria morte. Ela não merece morrer, mesmo assim pergunto-me se não tivesse sido desta forma se eu conseguiria matá-la? A algo nela que me faz recuar, por mais que tenha ferido enfurecidamente essa jovem dama, não consigo matá-la. Estranhamente vê-la ensanguentada e indefesa me causa um certo desconforto neste pedaço de carne pulsante que ainda posso chamar de coração, será isso o amor? Amor que nunca senti. Talvez amor, tenham sido os cuidados que Alissha teve comigo quando fiquei debilitado enumeras vezes? Aquilo é o que os cristãos chamam de caridade, mas será esse o tal amor de Deus? As indagações me deixam ainda mais confuso. Olho-a trêmula pelo frio, o vestido branco encardido, os delicados pés descalços e avermelhados sobre a neve, seus lindos cabelos desgrenhados, o olhar a me encarar como se quisesse entrar em mim e descobrir meus pensamentos, o rosto antes apavorado agora sereno como se fosse um anjo retratado em um quadro. Não posso deixar de achá-la bela, em meio tantas divagações me aproximei, arranquei um pedaço da manga de minha camisa e tentando ser delicado, mas fracassando amarrei em torno de seu abdômen, ela gemeu de dor, a ergui tentando cuidado. Falei próximo ao seu ouvido em um sussurro, sem poder evitar, a senti se arrepiar, não soube dizer o motivo, talvez medo, repulsa.

— Não me importo. À culpa não foi sua, mas não posso me desculpar pela morte de seus pais, não sei se me entenderá. Mas não quero que me entenda. Sou grato por tudo mi lady. Me perdoe por tentar matá-la, deixe-me cuidar de ti agora.

A suspendi no colo e passei a caminhar com os finos braços em torno de meu pescoço e a cabeça repousada em meus ombros. O cheiro vindo de sua pele e cabelos entranhavam por meu nariz, era um cheiro doce como o das rosas desabrochando no primor da primavera.  

— Desmond eu te perdoo, sei que não quer o meu perdão, mas o tem junto a minha compreensão. Minha situação é difícil, peço a Deus que me perdoe por meus pensamentos e escolhas.

— Teu Deus é farsante! Como pode dizer as pessoas para cometer crimes, escravizar aqueles os quais julgam inferiores, exigir impostos caros dos mais pobres, matar pessoas por mero capricho, explorar crianças? Como quer o perdão desse Deus? Eu não acredito no teu Deus!

Continuei a seguir calado. Por dentro o coração pulsando em ódio, Corroendo a ferida que ardia em mim.

— Este não é o meu Deus. Essas são as atrocidades que os homens cometem por ganância, poder e dinheiro. O meu Deus é onipotentemente bom e justo. Ele é senhor da luz e do amor e esta e a prova de que mesmo que existam pessoas ruins sempre existiram as boas, porque eu acredito no amor e só o amor salva. – Proferiu calmamente.

—Chega de besteiras. Quando seus pais me escravizaram o seu Deus bom esteve lá? Não! Quando eu matei sua família o seu Deus esteve lá? Não Alissha! Então cale a boca, se não eu a deixo aqui na neve ferida para que sirva de alimento para os lobos.

— Um dia você entenderá... – Olhou-me nos fundos dos olhos com lágrimas.

 Olhar que me desarmou e incomodou, não gostava de vê-la triste. Desviei o olhar, a ignorei e continuei a seguir levando-a em meu colo, tentando mantê-la aquecida sobre meu peito.

Andei alguns quilômetros pela mata fechada e escura do inverno rigoroso que se sucedia, passava por cima de galhos e pedras; algumas vezes desviava outras com apenas uma mão retirava os galhos das árvores que atrapalhavam nossa passagem. Alissha permanecia quieta aninhada em meu colo como uma criança no colo de seu progenitor.

A face rosada perdera a palidez do frio e do desespero. Não havia mais temor em seus lindos olhos azuis-claros como o mar, eles inspiravam tranquilidade. A face serena contrastava com minha figura rude. Perguntava-me o porquê dela se importar tanto comigo. Alissha era uma jovem dama da sociedade, filha de um importante lord, criada com todo o luxo e conforto, poderia ter o que quisesse. Tinha tudo para se tornar uma mulher mesquinha como todas àquelas mulheres gananciosas, e aqueles cruéis aristocratas de todo o reino. Ela definitivamente era o oposto; ajudava os pobres escondida de sua imunda família, dava dinheiro de seu para alimentar os mendigos, distribuía grãos quando o inverno rigoroso chegava e o feudo exigia mais da metade dos grãos armazenados pelos camponeses, pois no inverno produziam pouco, sendo obrigados a dar a maior parte de suas produções aos senhores sobrando apenas migalhas para si mesmos. Alissha alfabetizava as crianças pobres e órfãs da mesma forma que quando éramos crianças e ensinava-me tudo o que aprendia escondida. Impressionante, tínhamos quase a mesma idade, somente dois anos de diferença sendo eu o mais velho. Ela era paciente, eu não gostava da presença dela que áleas, sempre me incomodou, mas descobri que precisava aprender, sonhando no que faria no dia em que fosse livre, sorri amargo, é incrível que como crianças miseráveis ainda conseguem sonhar. Sem conversar acabarei por aceitar os ensinamentos da pequena menina de traços angelicais, ela não indagava meu silêncio quase profundo cortado apenas pelas sílabas repetidas, a leitura e a língua do latim, ela sempre me elogiava quando conseguia aprender.

Acho que fui um bom aluno, nunca reclamava e sempre aprendia sem dificuldades.

Já estávamos saindo da floresta, a frente havia um bosque coberto de neve fora do limite da cidade, apenas precisava atravessá-lo e entrar na outra parte da floresta, onde havia uma cabana de madeira que foi de Sr. Roman; um dois empregados de Lord Von Bonali que era ferreiro e ensinou-me o ofício. Roman era um homem de bom coração, não possuía família, quando jovem serviu ao exército, com a idade já elevada não lhes servia, então viu-se obrigado a sair e seguir a vida como ferreiro, antes de morrer me deu a chave e disse-me que assim que fosse um homem livre que fizesse de sua antiga casa minha morada. Ele ainda mantinha a esperança de que um dia eu pudesse ler livre, a esperança que eu mesmo já havia perdido.

Estávamos passando pelo último galho de árvore caído antes de entrar no bosque quando avistei no meio de uma moita, uma linda gazânia de cor laranja nas pontas e brancas no centro, instintivamente, eu que nunca fui de me importar com certas frivolidades arranquei a linda flor que resistente ao frio ainda mantém-se bela, assim como a linda donzela que adormecera em meus braços sem que eu percebesse.

Coloquei a flor em seus cabelos, Alissha ficou ainda mais bela que o possível, às cores laranja e branca contrastavam com seus fios castanhos claros como se fosse uma ninfa moldando um quadro vivo da natureza, gostaria de ser um pintor e retratá-la com toda a sua beleza e pureza.

Meus devaneios talvez sejam o cansaço, mas não posso deixar de admitir que meu coração não acelere ao pensar nela, será que ela também sente o mesmo? Será isso uma doença? Mesmo que fostes por motivos fortes e justos, eu que assassinei sua família a sangue frio, não sou digno de ter seu amor, só isso é o suficiente para que me rejeite.

Quando tudo isso acabar ela se casará com um nobre e eu se não conseguir fugir serei morto sem que haja prisão, não haverá provisão divina meu pecado será pago com a morte.

Instintivamente acariciei a face alva, deslizei meus dedos ásperos pelos delicados e finos lábios rosados, acariciei os fios castanhos claros de seu cabelo ajeitando a flor sobre eles, ela acordou, deixando-me sem jeito, me sorriu, e pondo a mão sobre o cabelo retirou a flor e a cheirou. Não proferi palavra alguma, apressei os passos e saímos da mata fechada, ela me olhava com os olhos azuis marítimos bem claros sorrindo para mim. Como poderia estar feliz? Estava ferida e suja por sangue, como conseguia confiar em mim, como eu poderia não ser repugnante para ela? Ela era um sonho ou um pesadelo no qual estava imerso, mas se fosse? Não quero acordar. O som doce de sua voz tirou-me de meus devaneios lunáticos sem coerência.

— Está flor é tão linda e perfumada. Veja só, permaneceu perfeita mesmo sobre a neve, está tão frio.

Ela girava a flor e sorria para mim, tal cena era reconfortante, pois estava ferida, não era tão grave, mas para uma dama que sempre viveu cercada por luxo deveria estar sentindo uma dor angustiante. Mas não reclamava apenas fitava-me, seus olhos ainda eram tristes, entretanto inspiravam confiança.  Permaneci em silêncio avançando o mais rápido que podia pela clareira aberta no bosque, faltava pouco, se conseguisse entrar na floresta de tinta, a fuga seria perfeita, eu estaria em fim livre e trataria de seus ferimentos. Assim que Alissha se recuperasse poderia voltar para corvus. Tal afirmativa incomodou-me, mas aquela era a pura verdade, não posso me iludir com pensamentos mesquinhos e utópicos.

— Logo chegaremos, aguente só mais um pouco. – Se algo acontecesse a ela, jamais poderia me perdoar.

— Tudo bem, confio em você Desmond. Não se preocupe meus ferimentos não doem tanto.

Instintivamente um sorriso de satisfação brotou em meus lábios, mal podia me lembrar de quando foi à última vez em que sorri. Era inevitável admirá-la, diante tanto sofrimento e dor ela se mantém firme e forte, é uma mulher de coração tão nobre quanto o título que sua família impunha.

A nevasca recomeçou violenta, Alissha se segurou firme a mim, ainda sorrindo girando a pequena flor nos dedos, enquanto eu acelerava o passo preocupado.

Como pode um ser humano ser tão doce quanto Alissha? Se todo o resto assim o fosse a humanidade valeria á pena, será que era sobre isso que Alissha falava ao mencionar o seu Deus? Impossível, nunca existirá ninguém como ela; uma dama da alta corte sorrindo feito criança apenas por uma simplória flor, nem Sr. Roman que para mim era como um pai, não era um homem bom, ele me contou as atrocidades que viu e cometeu nas guerras, como ele mesmo disse, jamais iria para o paraíso e mesmo no inferno, o diabo o expulsaria para que não houvesse competição pelo trono. E é por isso que nesta terra habitam mais demônios que o inferno, todos de carne e ossos para lembrar de que ainda somos homens e um coração que vive na linha da emoção e da razão, e é este fato que nos torna mais humanos que desumanos. Porém o homem tem um lado bestial que muitas vezes se expandi para toda a sua alma, afastando sua humanidade a não ser aquela que vemos por fora – A escultura humana do corpo.

O vento ficou mais forte, abraço o corpo frágil e gélido um pouco mais para tentar aquecê-la. Como pode eu, um ser tão rude apaixonar-me por um anjo? Tendo matado sua miserável família, mesmo que por justiça? Ela me perdoou, não parece sentir medo ou remorso, como pude feri-la? Eu a amo, pois se isso que sinto por dentro é amor, sim eu a amo.

Havíamos chegado à metade do vale, pude sentir a terra tremer por debaixo de meus pés, uma nuvem cinza subiu aos céus, saída do interior da floresta e revoou sobre nós, eram corvos, alguma coisa tinha de errado e estava certo, eram eles, a cavalaria de Lord Benjamin.

Alissha pareceu pressentir e olhou nos meus olhos assustada, fiquei calado e Prossegui, meu silêncio foi cortado pela voz receosa da jovem dama.

—Corvos são mal pressagio.

—Não se preocupe comigo e ficará segura.

O rastro de sangue deixado pelos ferimentos de Alissha os atraiu até nós, pude ouvir cada vês mais perto o som da cavalaria e o chão tremer.

Ouvi um grito distante e logo uma flecha caiu atrás do meu pé esquerdo, iniciei a corrida mantendo-a firme em meus braços.

Ela fitou-me e disse: - Me deixe aqui e vá! Eles não irão me fazer mal.

Seus belos olhos anis encheram-se de lágrimas e dentro deles eu pude ver um mar revolto, tão triste. Ondas sem saída chocando-se contra o rochedo, ondas escorrendo pela face pálida... Limpei e levei a boca, queria sentir aquele gosto tão salgado.

A verdade é que não queria deixá-la, mais tinha que buscar ser mais racional naquele momento e a razão era fugir e deixá-la. Sei que ficaria bem, mais não poderia deixar de me preocupar com Lord Benjamin, seu noivo.

O casamento era arranjado, ela não o amava, tal fato não era segredo, mas sua opinião não era levada em conta, o título e o nome da família eram mais importantes, em nosso tempo os nobres não se casavam pelo amor, o dever vinha em primeiro lugar, o amor era para a santidade e o amor carnal era apenas para a manutenção da ordem familiar. Alissha e Benjamin eram prometidos desde a infância e a hora da promessa ser cumprida já estava batendo a porta como o solstício de verão, mas sem a beleza dos dias de sol, mas com a frieza e tristeza dos bosques de neves fartas e com os animais entocados em suas tocas seguros de predadores.

Atualmente Lord Benjamin era chefe da guarda real e senhor de muitos feudos, um homem cruel, repugnante.

— Não se case com ele! – Exigi. Como se ela pudesse escolher. Ri internamente de mim mesmo, sou um tolo escravo fugitivo, um ninguém, mais meu orgulho masculino falou mais alto e eu não pude evitar. – Virei buscá-la.

Olhei para trás eram apenas homens a pé, comecei a correr e Alissha chorando foi em direção aos homens, me preocupei, mas sabia que não iriam atirar mais flechas, pois Alissha poderia ser atingida e não era isso que queriam, afinal, estavam vindo resgatá-la. Comecei a ouvir o som dos cavalos, então a voz de Lord Benjamin fez-se presente.

— Maldito seja vós escravo!  Seu crime não ficará empuni, pagará com sua inútil vida. – Falou ao longe, sua voz ecoando por todo o ambiente, fazendo-a se propagar repetidas vezes.

Virei-me transtornado, sentindo o ódio percorrer cada centímetro de minhas veias, esquentando meu corpo inteiro. Benjamin estava assentado sobre seu corcel negro e pomposo, no meio de sua tropa, rodeado por seus soldados. Ergueu a espada em minha direção, exibindo um sorriso vitorioso com escárnio.

— E quem irá me matar, você? Não acredito que uma mocinha como você- Cuspi. - Irá fazê-lo sozinho, se quer conseguir. Vai mandar sua meia dúzia de cães raivosos matar-me? – Sorri desdenhoso.

Olhou-me com ódio, abri os braços fazendo uma reverencia.

— Vai embora! Agora! – Alissha gritou-me.

— O quê!? Alissha está o mandando embora, ele matou sua família e quase tentou matá-la? – Falou incrédulo.

— Não! Ele poupou-me a vida, infelizmente meus familiares pagaram com suas vidas, mas eu o perdoou. Ele não é de todo mal.

— Esta louca! Isso é uma blasfêmia, venha logo Alissha vou matá-lo.

Alissha olhou-me assustada, retribui o olhar sério e com apenas um aceno de cabeça disse para seguir em frente.

Poderia ter dado as costas e fugido, entretanto meu sangue fervia clamando vingança. Benjamin era um assassino cruel e frio, tão monstruoso quanto eu próprio tornei-me. Desde que o rei pôs poderes em suas mãos ele aniquilava sem piedade quem cruzasse seu caminho, executava inocentes, desde mulheres, idosos e crianças, ninguém escapava de seu julgamento injusto. Senti medo ao pensar em Alissha em seus braços, no que ele poderia fazer a ela, apesar de que mal maior fizera eu a matar sua família, mas não havia arrependimento, se tivesse que fazer outra vez, faria sem temor, sem misericórdia.

O amor por Alissha dizia para continuar a seguir, apertei meus punhos com força e virei-me, mas uma flecha veio em minha direção, meus sentidos aguçados pressentiram-na em um movimento rápido a peguei quebrando-a em minhas mãos.

Benjamin ordenou que seus homens me matassem, vieram seis correndo em minha direção, apanhei meu punhal e parti para cima deles, tomei a espada de um ao chutá-lo no estômago fincando- a em seu próprio pescoço. Joguei o punhal contra outro que vinha em minha direção acertando-o no peito, fazendo-o tombar sobre os próprios joelhos lentamente. Faltavam quatro e os arqueiros recomeçaram a atirar, ouvi o grito de Alissha enquanto pegava o escudo de outro soldado a quem havia acabado de matar para proteger-me, Benjamin a impedia de vir em minha direção.

Imbecis, as flechas acertaram dois de seus subordinados um na testa que morreu no mesmo instante e o outro no joelho que tombou ajoelhado perto de mim, decepei-lhe a cabeça com o escudo, fazendo o sangue espirrar sobre mim mesmo, e sobre a neve a deixando vermelha. E veio o último homem com uma clava em mãos ao tentar acertar-me, acertou o próprio chão, dando-me a oportunidade de chutar-lhe a face, peguei sua arma e com ela o matei esmagando seu crânio.

Como um bárbaro, ergui a clava e a espada no ar, um grunhido rouco e animalesco saiu de minha garganta, reverenciei outra vez Lord Benjamin que abismado olhava-me incrédulo.

Sorria, sentindo o desejo de morte arder dentro do peito. Mais homens vieram em minha direção, um grupo de oito, e acabaram todos mortos como seus antecessores.

Ao longe Alissha olhava-me aterrorizada, não era para menos eu havia acabado de me transformar novamente na fera que estava adormecida em mim. Amaldiçoei-me, aquele pobre anjo de coração puro não merecia presenciar grotesca cena, tão pouco sentir qualquer sentimento de bondade por um animal feito eu.

— Leve-a daqui! – Ordenei. – Ela não merece assistir esta cena deplorável.

— Agora se sente envergonhado, escravo? Depois de ter matado a família de minha futura dama? – Falou desdenhoso. As duas últimas palavras foram bem pronunciadas irritando-me ainda mais.

Benjamin chamou um de seus subordinados e lhe disse algo, logo o homem estava tentando levar Alissha consigo segurando-a pelo braço, enquanto ela relutava em não ir. Ele a afastava pouco a pouco necessitando usar força, pois ela se debatia e gritava.

Meu coração sangrava por dentro, porém era a coisa certa a ser feita, ela não merecia presenciar tal cena, tão pouco viver ao lado de um monstro feito eu que não era digno de seu amor, e que jamais seria.

Fitava-me enquanto era arrastada e ao longe podia ver suas lágrimas caindo. Maldito, desprezível ser. Eu era o único culpado de todo o seu sofrimento. Ignorei todos aqueles homens logo atrás de mim, todos dispostos a levar minha cabeça até os pés de seu comandante, segui em frente a passos largos, sem me importar com suas presenças.

— Como se atreve a fugir? Maldito escravo, esta desdenhando de minha ordem?!

— Hã... Acha que vou me entregar assim, tão fácil?! – Retruquei com um meio sorriso amargo.  – Não tenho tempo para brincadeiras.

— É mesmo um covarde escravo, se escondeu até onde pôde atrás de uma dama, mas viu que não tinha escolhas e decidiu deixá-la para trás a fim de se salvar, mas não vai escapar!

— Como ousa a me chamar de covarde? Você é um ser desprezível que não faz nada com suas próprias mãos, mas se é o que realmente quer, então venha maldito, mande sua tropa vir e te entregarei todos seus soldados mortos!

Após ter dito tais palavras, foi isso que Lord Benjamin fizera. Ordenou que todos seus soldados viessem em minha direção, famintos por minha cabeça, exceto os arqueiros que continuaram em guarda. No entanto faminto estava eu, desisti de ir embora, resolvi ficar e lutar mataria a todos, principalmente Benjamin.

A árdua luta recomeçou outra vez e o pequeno exército de vinte homens vieram em minha direção, furiosos, todos montados em cavalos, lancei a clava nas patas dianteiras de um dos animais que caiu levando seu montador consigo e alguns outros que viam atrás de si, tropeçaram antes que pudessem parar. Logo apanhei outra espada que estava ao chão lançando-me enfurecido sobre a cavalaria que se aproximava.
Não sei quantos minutos se passaram eu ainda estava de pé, firme e muito mais forte que antes. Metade de mim era ódio à outra era amor. Homens tombavam aos meus pés uns sem cabeça, outros agonizando com seus estômagos e corações sangrando. Eu era um monstro encurralado, uma besta selvagem matando meus perseguidores, fazendo-os cair na própria armadilha. Logo haviam apenas cinco homens todos se entre olharam assustados  e recuaram um pouco para trás como se eu fosse a própria personificação da besta, talvez fosse.

— O que estão fazendo? Tragam-me a cabeça deste homem! Seus filhos da puta! – Esbravejou.

—Muito bem... – Prosseguiu. - Eu darei cem moedas de ouro para aquele que me trouxer a cabeça deste escravo!

Os homens se viraram em minha direção entreolharam-se e vieram até mim. Fiquei cercado pelos cincos e em questão de minutos decepei suas cabeças e parte de membros, logo caíram por cima de mim, me ergui da pequena montanha de cadáveres com uma espada em punhos grunhindo feito um animal.

— E agora Lord Benjamin mande seus arqueiros! –Ordenei em um som gutural.

O imundo lord fitava-me enfurecido, sem dizer uma única palavra, ergueu o braço e com as mãos retas abaixou em minha direção em uma reverencia debochada. O grupo restante de sete arqueiros lançaram suas flechas, me protegi com um escudo enquanto mantinha-me abaixado e fui andando mais para frente onde tinha outro escudo. O peguei e num movimento rápido me ergui e o atirei feito um disco em direção aos arqueiros que tombaram sem cabeça.

Do grupo de sete restaram apenas três que vieram andando lentamente, dois largaram seus arcos e flechas pegando uma espécie de arma; eram duas correntes entrelaçadas com duas foices pequenas em cada ponta, eles a giravam num movimento sincrônico e sorriam friamente, aqueles dois miseráveis eram irmãos; os dois ruivos com longos cabelos emaranhados e uma espessa barba ruiva, olhos azuis, tinham a mesma face, e não escondiam no rosto as marcas de seus antepassados das antigas tribos germânicas. Através de seus olhos eu via dois bárbaros feito eu, mas eu era o que mais odiava, o que tinha motivos para não temer a porra da morte.

— Venham! - Gritei.

Armei-me com duas espadas enquanto os dois pares iguais vinham em minha direção correndo, a ponta da foice raspou meu braço esquerdo, puxei a corrente e a foice voltou num sincronismo acrobático em minha direção, desviei com maestria, chutei o dono da arma que caiu, lancei uma espada, para desviar, o imbecil não calculou a direção certa e morreu atingido na cabeça por sua própria arma. O outro gêmeo grunhiu enfurecido ao ver o irmão tombar sem vida e veio em minha direção. Com a arma de seu irmão morto em minhas mãos a arremessei em direção a ele, o objeto mortal o rodeou e lhe cortou o pescoço, fazendo-o tombar lentamente sobre a neve diante a meus pés, o último arqueiro fugiu assustado, fazendo com que Benjamin tomado de ódio lança-se uma espada em sua direção, matando-o pelas costas sem nenhum remorso. Apenas gargalhei, ria de raiva ou até mesmo diversão, tão desgraçado quanto à própria vida do arqueiro que agonizava sufocado em seu próprio sangue.

—Já chega! Não se dá trabalho de um homem para ratos. – Esbravejou.

Após descer do cavalo desembaiou a espada e a ergueu no ar. - Maldito, vou esfolá-lo vivo! – Seu olhar altivo exalava ódio.

— Até que em fim terei a honra de acabar com você, Lord Benjamin. -Proferi em deboche.

O jovem lorde desceu de seu corcel, os olhos azuis acinzentados inflamavam ódio, enquanto na face prevalecia a arrogância e impiedade. Desmond mantinha-se firme olhando-o nos fundos dos olhos, tomou a postura de luta com duas espadas em mãos, sua face amorenada pela forja era rígida e cruel; face de quem estava disposto a matar ou morrer por seu desejo, em um nítido convite de morte ao lorde.

O tempo era de ódio, de terror, de selvageria e morte. O cheiro ocre de sangue intensificava gradativamente pelo ambiente entranhando pelas narinas, enquanto o sol surgia por detrás das nuvens ainda tímido no fim rigoroso de inverno que se esvaia, feito as folhas secas das copas das árvores espalhadas pelo vento, junto ao cheiro de sangue dos corpos que jaziam por cima do lago congelado. A visão era atormentadora, como se a deusa da morte tivesse passado pelo campo de batalha e deixado sua benção, arrastando todos os seres vivos que protagonizavam tal cena.

À medida que Benjamin se aproximava de Desmond, Alissha ao longe tentava se soltar do único guarda que restou, o qual ficou encarregado de impedir sua volta ao lago. A jovem donzela lutava para se soltar, cansada mordeu seu algoz e retornou correndo ao campo de batalha, o homem a seguiu e ambos pararam na borda do lago e ficaram a observar os dois homens frente a frente a se enfrentarem, como os homens escravizados no antigo anfiteatro de Roma n’outro lado das muralhas invernais dos trópicos gelados feito duas feras.

O coração da jovem batia acelerado, ficou imóvel sem se importar com a força que o homem ao seu lado fazia ao apertar seus braços.

Lord Benjamin ergueu sua espada indo em direção a Desmond que lançou uma das espadas em punho ao chão, fazendo-a cair de ponta sobre o gelo, ficando apenas com uma das armas, em seguida ergueu-a em direção ao oponente. Benjamin deu o primeiro golpe o qual foi defendido por Desmond que o empurrou para trás e contra-atacou. As lâminas afiadas bailavam no ar em um movimento sincrônico, no qual entravam em atrito e soltavam faísca, diante a tamanha força que os dois homens empunhavam. Ambos vinham nos olhos um do outro a sede animalesca de sangue.

Com um golpe Desmond acertou o ombro direito de Benjamin, fazendo-o recuar alguns passos pondo a mão esquerda sobre o ferimento profundo que sangrava, no entanto o moreno não recuou partindo outra vez para cima do Lord que defendeu o ataque e lhe deu uma joelhada na altura do estômago, fazendo Desmond cuspir um pouco de sangue. Benjamin sorriu permanecendo na postura de ataque, o moreno também sorriu com os dentes sujos pelo próprio sangue, em um riso frouxo de sarcasmo e ódio.

Á margem do lago Alissha apertava as mãos em sinal de oração, pedindo ao Deus dos cristãos no qual sua família havia se convertido e aos deuses protetores de seu reino e de seus antepassados esquecidos publicamente, mais ainda existentes no culto do lar, longe do poder papal. Talvez a junção de sua fé católica sobre um panteão de antigos deuses pagãos, pudessem ouvir suas preces na qual pedia proteção e misericórdia para Desmond.

A luta ficava cada vez mais violenta, as espadas tilintavam em fúria, outro golpe dado por Desmond acertou a coxa direita e o abdômen de Benjamin, que já não recuava e contra atacava. Os dois homens eram exímios lutadores, Benjamin ficava cada vez mais surpreso, sabia que Desmond era tão bom quanto si e àquilo o preocupava.

—Não posso negar escravo que és bom com a espada. Quem lhe ensinou a lutar? Não é permitido aos escravos aprender esgrima.  – Perguntou ofegante, após atacar Desmond e ser bloqueado mais uma vez.

— Isso não é conveniente agora, o homem que me ensinou, os vermes já trataram de comer-lhe a carne. – Respondeu ríspido dando uma cabeçada em Benjamin o derrubando. 

Benjamin caído no chão deu um chute em Desmond fazendo-o cair, com a espada em punho Desmond cravou-a no braço esquerdo de Benjamin que soltou um grunhido rouco de dor.

—Filho de uma puta... – Proferiu em um grunhido. Ao tentar se levantar Desmond ergueu-se mais rápido e apoiou o pé direito sob o peito do lorde, apontando sua espada pingando sangue contra a face de Benjamin, a lâmina gotejava sobre a barba loira bem moldada.

— Foda-se! dizem que minha mãe é uma puta mesmo. Isso não me ofende Lorde. –Cuspiu a última palavra em um sorriso de escárnio.

—Hahahaha... É sério que minha vida vai acabar aqui em um lugar esquecido pelos deuses e pelas mãos imundas de um escravo assassino? Sem dúvidas é mesmo um monstro, matou uma família inteira covardemente e acabou com meu exército de trinta homens, mais isso ainda não é o suficiente. Escravo. 

Benjamin parecia olhar fixamente nas íris verdes do moreno, mas não era para ele que o lorde olhava, mas sim para o outro lado da margem do lago congelado, onde estavam Alissha e o último dos arqueiros que ficou com para protegê-la.

O arqueiro estava apontando para a cabeça de Desmond que estava de costas. O moreno percebeu o olhar do lorde e virou a cabeça ainda apoiado sobre o Loiro e sorriu. Ele não tinha medo da morte, só tinha uma única razão a que não voltaria a ser escravo, olhou para Alissha de relance, amava  a nobre, mas sabia que dela não era digno, morrer ali ou sumir era o seu melhor destino. Virou-se novamente para Benjamin.

—Ele vai atirar? Então que faça agora!

O arqueiro atirou a flecha rapidamente acertando Desmond no ombro direito na direção do coração errando a mira da cabeça, antes que ele desse o golpe de misericórdia no lorde. Benjamin rolou para o lado e ergueu-se dando um soco na face do moreno que recuou alguns passos para trás. 

Na margem Alissha desesperava atirou-se contra o arqueiro tentando tirar o arco de suas mãos.

—Não! Não vai matá-lo de forma tão covarde! –Gritava a moça aflita arranhando o homem alto de tez preocupada.

—Solte-me milady. Dizia tentando empurrá-la.

—Isso é um duelo!

O arqueiro a jogou longe sobre o lago congelado, Alissha se levantou com dificuldades, sentindo dor no braço direito, pois a queda a fez cair de mau jeito.

—Desgraçado! Seu porco covarde!-Esbravejou Desmond cuspindo o sangue que subia de sua garganta.

 Retirou a flecha sem transparecer a dor, sua expressão era horrenda, seu ódio era maior que a dor. Partiu grunhindo contra Benjamin acertando dois golpes de espada na forma de xis no peito do lorde e lhe desferiu uma joelhada na altura do estômago fazendo-o cair outra vez.

Benjamin estava esgotado e aterrorizado nunca tinha visto um homem tão forte e cheio de ódio. Aquela era a face de um assassino, os olhos não eram mais verdes, estavam vermelhos, ele era um monstro, um assassino.

— O que está esperando Zach?! Acerte-o! – Ordenou.

— Não! – Gritou a nobre em desespero.

Alissha foi correndo em direção aos dois homens, sabia que não tinha forças para deter o arqueiro, a única coisa que poderia fazer era ser o escudo de Desmond.

Era um querer que vinha do fundo do coração, um querer sem querer, sem dever, não era culpa que sentia por sua família ter feito Desmond de cativo, era algo a mais, era amor. Não aguentaria vê-lo morrer, não iria permitir que o matassem, e se tivesse que dar sua vida no lugar da dele que os deuses a levassem e não Desmond. Ele merecia viver tudo que não pôde viver ao longo de seus vinte e cinco anos, merecia viver pelos dois.

O arqueiro atirava mirando na direção de Desmond que não se importava e continuava indo contra Benjamin que cansado que se defendia em desespero, suava frio não mais pelo fervor da batalha, aquilo era medo e Desmond sabia muito bem o que era uma expressão de medo ele amava aquilo, pois fazia o lembrar de que era algo a mais que um escravo de merda, que era um homem com sentimentos e seu sentimento era o ódio. O ódio que o manteve vivo por todos aqueles anos miseráveis, não se importava com mais nada quando atingia o auge de suas emoções mais nefastas.

Benjamin havia cansado, nesta brecha Desmond arrancou a espada das mãos do lorde com apenas um golpe de espada fazendo-a cair sobre a neve.

Uma flecha atingiu-o na canela esquerda, outra no quadril, e ele parecia não sentir dor.

Alissha corria desesperada atrapalhando a mira do arqueiro que permanecia em estados de nervos, deveria matar aquele homem, mas não poderia matar a nobre, não sabia o que fazer.

—Zach mate-o! – Implorava lorde Benjamin arrastando-se de costas.

— Senhor e milady !?

—Não importa, apenas acerte-o!

O arqueiro então começou atirar na direção de Desmond, Alissha já estava alcançando-os quando uma flecha a acertou no braço esquerdo arrancando um grito fino, mas ela continuou. Desmond olhou para trás e a viu, naquele breve instante, o tom avermelhado das íris desapareceu dando lugar aos orbes verdes absinto. 

—Fique longe, milady – Pediu, segurando-a, de forma rápida a abraçou e sem avisar arrancou a flecha de seu braço. A moça gritou.

—Perdoe-me por isso. Saí daqui eu imploro.

Benjamin ergueu-se com raiva, sentia-se envergonhado por está naquela situação desconfortável, um dos melhores espadachins de todo o reino, sendo quase morto por um mero escravo, além de ter sua noiva amolecida pelo homem que assassinou sua família. Não se e importava com mais nada, se ela morresse diria que foi o escravo, e se ela sobrevivesse à trancaria em um convento para mulheres loucas e usufruiria de sua fortuna cansando-se outra vez. Na breve distração de Desmond pegou a espada fincada no lago e partiu para cima do moreno. Alissha viu e jogou-se contra a espada sendo ferida no abdômen já ferido, desta vez o golpe transpassou-lhe o órgão profundamente, Desmond a segurou pela cintura. Benjamin estava aterrorizado, não queria matá-la.

—Alissha!- Um grito rouco de dor escapou por entre a garganta do moreno, tão alto que ecoou pela floresta. Pela primeira vez desde seus doze anos uma lágrima desceu por sua face, os olhos de Alissha mantinham-se fixos ao seu.

— Não Alissha aguente, por favor....

O desespero o tomou, entregando-se ao instinto assassino outra vez. Desmond caminhou rápido na direção de lorde Benjamin segurando a mão que o outro empunhava a espada e lhe deu uma joelhada no estômago, dando em seguida uma cotovelada no rosto, por fim retirou a espada de suas mãos e a enfiou no coração do lorde, o qual sangrava de boca aberta, com os olhos estatelados, Desmond cravou ainda mais fundo a espada no órgão sentindo-o parar de bater para em seguida retira-la do ferimento e com um único golpe decepou-lhe a cabeça, fazendo com que o corpo tombasse sem vida á seus pés. 

Olhou para o outro lado da margem do rio onde se encontrava o arqueiro empunhando o arco, o qual atirou sua última flecha que Desmond pegou no ar com maestria, deixando o arqueiro admirado.

O moreno sorriu ao ver um escudo caído próximo de si, o pegou fazendo-o de disco e o arremessou na direção a Zach que tombou decapitado a margem do lago feito seu antigo lorde.

Desmond começou a sentir o efeito do ferimento profundo em seu pulmão e tossiu um pouco de sangue.

Olhou para a cena digna de guerrilha sobre o lago congelado que começou a trincar no lugar de onde Lorde Benjamin havia retirado à espada. Correu os olhos sobre Alissha que o fitava tremula e pálida, ela lhe sorriu docemente, fazendo com que os olhos verdes cor de absinto do moreno encheram-se de lágrimas, cautelosamente ele a pegou no colo e foi andando de forma rápida tentando não por peso sobre o lago que começava a descongelar a alguns metros atrás de si.

—Desmond... –Alissha proferiu baixo em um sussurro.

—Não diga nada meu anjo...

O moreno a fitou tentando sorrir, mas os olhos rasos d´agua o denunciavam e começavam a transbordar pelo leito das pálpebras inferiores, como o lago voltando ao seu fluxo normal.

Delicadamente Desmond a colocou sobre a margem, retirando algumas flechas da pele de alabastro da moça, que se encontrava agora quase tão pálida quanto à neve que começava a derreter, revelando um pouco da relva verde que se revelava à medida que a neve derretia.

Desmond e Alissha se abraçaram feridos e exaustos, ambos sabiam que seus ferimentos não tinham já não tinham cura. Sabiam que morreriam ali, sem ninguém, sem socorro, tinham apenas um ao outro, e era isso o que queriam.

 Apenas a chegada da tarde com um fraco raio solar despertando por entre as nuvens, seriam suas testemunhas, junto aos deuses e os poucos animais que estavam ali por perto. 

O moreno tomou a mão da nobre e a beijou pela última vez, olhando nos orbes azuis tal como o oceano antártico.

—Milady... Perdoe-me. - A voz era grave, porém baixa devido aos ferimentos que deixavam sua respiração descompassada.   

—Não é necessário pedir perdão... Porque não foi embora?

—Peço perdão justamente por não ter ido, se eu tivesse ido, você não estaria morrendo, isso é minha culpa.

—Desmond eu não te culpo, eu te agradeço, pois minha sentença de morte já estava decretada. Eu não amava Lord Benjamin... Nos casaríamos apenas para manter o compromisso entre nossas famílias e a ostentação do título de nobreza. Isso não é amor, é contrato. –Alissha proferia com pesar em meio a fala fraca.  

—Mas você estaria viva.

— Não Desmond... Eu estaria morta. Me entregar a ele sem amor seria me entregar a morte, eu jamais estaria viva, você não entende?

—Milady eu... Compreendo. Pensei de forma semelhante quando decidi lutar, perder você para lorde Benjamin seria minha morte...

Alissha sorriu e tocou-lhe a face ternamente, os dedos frios e acetinados, passearam languidamente por cada traço, como se estivesse os memorizando, e talvez estivesse. Desmond fechou os olhos e se limitou a sentir as pequenas mãos delicadas sobre sua face rude, agora com traços mais suavizados, pois em meio todo o caos sentia-se leve. Acariciou os cabelos da jovem nobre, sentindo o perfume de sua pele, tocou-lhe os lábios finos, a jovem então o beijou tomando-o de surpresa um beijo tímido e leve ao qual Desmond sucumbiu e entregou-se, foi a melhor sensação da sua vida. Era incrível como conseguiam se sentir mais livre do que nunca. Ele pela escravidão imposta desde cedo e ela pelas obrigações de mulher que a sociedade e sua família a empunhavam. Sua vida era diferente, seria heresia se comparar a todo sofrimento de Desmond, por outro lado não se via tão distante, pois sua vida também não a pertencia, seu destino foi traçado quando nasceu e não podia dizer não. As mulheres de seu tempo em suas condições jamais poderiam ter voz.

Alissha se afastou e sorriu para Desmond que com as faces levemente coradas retribuiu.

—Esse é o amor do qual se referiu mais cedo? Porque acabei de descobri-lo milady.

—Sim, meu amor... – A jovem continuou. -   Isso é o amor.

Aconchegaram-se um ao outro, permitindo pela última vez sentirem a textura mútua dos lábios se tocando, Alissha acariciou os cabelos curtos e negros como as asas do corvo que representava a cidade de Corvus.

Beijaram-se pela eternidade, enquanto os mares das íris azuis e verdes fundiam-se uma n´outra, abraçando-se fortemente, sem desviar os olhares por um só instante juntando as mãos entrelaçadas entre o tórax um do outro e assim entregaram-se ao sono eterno que apenas a morte poderia lhes proporcionar.  

 

 

 

23/06/2013


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Notas finais do capítulo

Obrigada por chegar até aqui! Nos veremos em breve na última parte.

Dark.



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