Angel Melody escrita por Bruno hulliger


Capítulo 2
Cântico da incapacidade




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  Nos dias que se seguiram após a morte da irmã de Sophia, vários jornalistas e repórteres das cidades vizinhas iam até a casa garota, em busca de informações e de um depoimento sobre o que havia acontecido no acidente. Melody por sua vez, sempre desviava o olhar das câmeras; trancava as portas de entrada da casa e quase nunca saía de lá. Mas era difícil para a garota manter esse ritmo. A casa era velha e pobre, mas ainda assim, era formada por dois andares, que eram divididos em cômodos bem grandes. O quarto da cadeirante ficava no segundo andar, mas sua família já havia adaptado algo para facilitar a locomoção da menina: uma rampa! Sim, o que antes era uma escada tornou-se uma rampa adaptada, contando inclusive com apoios para as mãos (no caso de uma necessidade de Sophi).  

  Mesmo com adaptações espalhadas pela casa, a vida sem sua irmã era algo completamente surreal. O ali e agora parecia ser apenas um sonho distópico... A necessidade levou até Sophia um enviado de sua tia: Décio; corpulento e alto, o homem de dezenove anos chegava a ser um pouco intimidador para Sophia, mesmo ela sabendo que ele não lhe faria nenhum mal. O primo ficaria encarregado dos cuidados da menor até que Helena (a tia) cuidasse dos preparativos e as arrumações de sua casa, para torná-la mais acessível a um deficiente. Ele, por sua vez, ficou encarregado de fazer todo o trabalho que antes era de Alice: empurrar a cadeira de rodas em morros altos, fazer o almoço e a janta,entre outras coisas que, segundo ele, nunca teria de fazer em sua vida.

  Por cerca de três dias, Décio teve um trabalho extra: expulsar os jornalistas, sedentos por informações. Mas essa não era uma tarefa fácil; eles eram persistentes, pacientes, além de muito convincentes. Algumas vezes, eles quase conseguiram com que o rapaz dissesse algo sobre o acidente da prima, mas ele logo hesitou; pois se lembrou que Sophia ficaria chateada com ele caso dissesse alguma coisa em rede nacional...

 Diariamente, a ação de tomar banho se repetia da mesma forma e sempre ao mesmo horário. Claro, tomar banho é algo normal para todos, mas, por alguma razão, parecia que todo o universo gostava de complicar a vida da menina. Décio, por sua vez, não precisava dar banho nela — qualquer um pode, pelo menos, se esfregar sozinho — mas em compensação, o jovem ajudava-a a se despir. Argh... Só de Melody pensar nisso ela já se sentia envergonhada. Ser vista nua por uma pessoa que conhece há pouco tempo é muito diferente do que fazer fisioterapia com um doutor especializado. — MUITO diferente mesmo!! — Mas afinal, ela não podia ficar cheirando mal o resto de sua vida! Ela tinha que fazer isso! Por mais estranho ou vergonhoso que pudesse ser...

  Depois do banho, a garota estava vermelha como um pimentão, de tanta vergonha que havia passado. Já o rapaz por sua vez, aparentava estar um pouco mais calmo que ela.

                                             ***

  Depois deste dia vieram outros, e logo Décio teria de voltar para sua casa. Ele era um rapaz estudioso e bom aluno, e agora estava tentando cursar alguma faculdade, mas isso era mais difícil do que ele pensava. Antes de cursar algo, ele devia passar em algum concurso público que pudesse lhe dar uma bolsa de estudos – como o ENEM, por exemplo. Mas já fazia dois anos que ele tentava, e nada! Pelo menos Décio não pensava em desistir. Ele era tão teimoso quanto os jornalistas que ficavam atormentando Sophia. “Eu vou conseguir! Sei que vou conseguir! Eu só preciso me esforçar um pouco mais...” pensava o rapaz. Mas enquanto ele cuidava de Sophia, não podia estudar... O bem estar dela vem em primeiro lugar! Disse sua mãe quando lhe pediu para cuidar da garota.

  Ele estava (literalmente) se sacrificando por outra pessoa. O que era muito bom. Mas, ele estava (ao mesmo tempo) perdendo a chance de estudar para conseguir uma vaga em uma universidade; e isso, para ele, era injustificável! “Por que ficar cuidando de outra pessoa se eu estou sendo prejudicado por isso?” refletia Décio. Então, ele se decidiu: “vou fugir desse lugar e voltar para casa; não me importo com essa menina hoje, e não vou me importar amanhã. Afinal, ela é defeituosa assim por que ela merece! Vou sair desse lugar amanhã mesmo!!”. Infelizmente, ele não se importava com a saúde e nem com o bem-estar da prima. Ele era egoísta, e acabaria fazendo Melody sofrer por causa disso...

  A noite não demorou a chegar, e logo, os primos já estavam se preparando para dormir -- Décio dormiria no quarto de Alice, assim como já fazia desde os dias anteriores. Aquela era uma noite clara, iluminada pela luz da lua, que estava em seu estágio de nova. Sophia observava o céu pela única janela de seu quarto; havia poucas estrelas visíveis, o que era bem comum de acontecer em uma cidade com tantas luzes acesas. A garota imaginava se a irmã estava olhando para ela naquele momento. Ela também imaginava seus pais ao lado de Alice, acenando para ela. Esse pode parecer um pensamento infantil e imaturo, mas para Melody, sonhar como uma criança era muito bom! Crianças não têm preocupações; ainda são inocentes, e costumam sonhar alto! Infelizmente, depois que crescem, muitas delas deixam de sonhar alto, passam a desacreditar em seus antigos sonhos e desejos... Da mesma forma que aconteceu com Sophia. Quando criança, ela sonhava em poder andar, correr, brincar etc.; mas ela sempre foi privada desses desejos... “Onde já se viu? Um paraplégico querendo andar! Ora garota, esqueça disso. Vá estudar e se esforçar na escola! É a melhor coisa que alguém como você pode fazer”... Sim, alguém já disse isso para ela. E para uma criança tão inocente, essas palavras surtiram um grande efeito sobre sua vida. Entre eles estava: a descrença de poder andar algum dia.

  Essa descrença fez com que ela parasse de se esforçar nos tratamentos de fisioterapia. Afinal, ela não vai voltar a andar, então por que se esforçar em algo tão inútil?

  “Vá para a cama Sophia, a partir de amanhã você vai voltar à escola; então, uma boa noite de sono é de muita ajuda.”, falou Décio, entrando no quarto. Ele disse essas palavras com um falso sorriso no rosto.

  “Tá bom...” ela controlou a cadeira de rodas até a cama. Parou-a de lado, e usando a força das mãos ela conseguiu sair da cadeira de rodas e sentar-se na cama. Depois disso, ela se deitou. Enquanto estava deitada ela imaginava como seria voltar à escola depois de tudo o que aconteceu...

  “Boa noite” falou o rapaz, já saindo do quarto quando...

  “... Espere!”

  “O que foi?”

  “Pode me responder uma pergunta...? Eu atrapalho sua vida?” perguntou, com sua voz meiga e calma.

  Décio ficou em silêncio, mas depois lhe respondeu que “não”. Obviamente aquilo era uma mentira... Ele não gostava da garota, e odiava ter que cuidar dela. Porém, para o rapaz, tudo estaria acabado no dia seguinte, pois este era o dia em que ele iria fugir daquela “prisão”. Queira a cadeirante, ou não.


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