The Cog Workers escrita por AllBlueSeeker


Capítulo 7
Thomas - Raízes de uma flor




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Mesmo durante a madrugada, Cervantes continuava viva e pulsante. Thomas acabara de deixar o laboratório e fechar o grande cadeado de cobre e platina. A fome era absurda, e todos no Refúgio provavelmente estariam dormindo. Passou na ponta dos pés pelo saguão que ressoava o ronco do Dr. McConnor e empurrou a porta com os ombros para que ela não rangesse. Lá fora, o vento frio passava pela cidade livremente. De onde ele vinha? Thomas ainda não tinha ideia. Resolveu tomar a direita e seguir morro abaixo para a cidade, onde pequenos prédios coloridos por diversas luzes, e pessoas nas ruas impediam que Cervantes ficasse em silêncio. Um cheiro incrível tomou suas vias respiratórias e o guiou até uma barraquinha onde um pedaço enorme de carne ficava fixado em um semicírculo de resistências horizontais. Interessado, ele pediu um e recebeu um sanduíche abarrotado de pedaços de carne. Quatro foram a cota para saciar o vácuo no interior do estômago. O jovem agradeceu, pagou ao simpático churrasqueiro e seguiu seu caminho. Cervantes era como uma cidade de brinquedo guardada em uma caixa: Bonitinha, bem cuidada e fechada num espaço incrivelmente bizarro, mesmo sendo os restos do que deveria ter sido um dia. Um pouco mais ao norte, havia um lago com uma pequena ilha conectada às margens por pontes de madeira com iluminação à gás. O lago era limpo, e alguns peixes apareciam se migalhas de pão fossem atiradas na água. Desde carpas até peixes mais comuns, o brilho da luz nas escamas fazia parecer que o lago era recoberto de ouro e prata. De repente, seus olhos foram recobertos por suas luvas de lã com os dedos cortados:

   -Epa! Quem é?

Ninguém respondeu. Pairou a mão sobre a chave que ficava num coldre de couro que ele arrumou para si:

  -Vou repetir mais uma vez: Quem é que está aí? 

A mão agarrou a chave pelo cabo e tentou dar uma estocada para atrás, mas acertou o nada. Ele sentiu as mãos que cobriam seus olhos deslizarem para a esquerda antes de soltarem seu rosto. O riso da jovem asiática o deixou desconfortável:

—N-não é como se eu tivesse errado. Eu só sabia que era você, e não quis te machucar. 

—Claro, claro, me machucar. O que está fazendo aqui, tão tarde?

—Eu acabei de sair do laboratório, e tava morto de fome. Pensei em comer alguma coisa e caçar meu sono. Mas algo melhor do que sono apareceu. -ele a encarou, com um sorriso de canto

Ela sorriu, tirando a franja dos olhos:

—A Dama tem razão. Eu acho que vou ficar apaixonada por você, se não parar de ser assim.

—Eu não vou parar de ser eu mesmo. Pode tentar forçar se quiser.

—Eu te desafio para um duelo, moço. 

—Eu recuso. Sua espada vai partir a minha chave em duas. 

—Eu tenho outras armas. Pode usar a que quiser, é só pegar.

—Mas fazer isso lá no Refúgio vai fazer um pouco de barulho, não acha?

—Eu tenho uma casa aqui.

—U-uma casa?!

—É. Eu comprei um porão de uma loja e o fiz de centro de treinamento. Quando estou um pouco fora do normal, eu durmo lá. É bem confortável e quieto. E aí, vai correr como uma mariquinha?

—Pra que lado fica?

—Um pouco atrás, sobre a alfaiataria Flowers and Needles. É uma portinha de ferro que fica nos fundos.

Os dois tomaram o rumo de lá. Para um porão de alfaiataria, era um lugar bem amplo e cheio de decorações que remetiam às origens de Haruka. Antes de subirem sobre o chão revestido com pedaços de bambu:

—Tire as botas. -ela apontou para os próprios pés

—Tem algum motivo específico pra fazer isso?

—Bom, você pode sujar tudo e lidar com a fúria dos Deuses... E a lâmina da Aosora. Ou pode seguir o costume do meu povo.

Ele não pensou duas vezes: largou as botas ao lado das dela. Os dois seguiram por entre os "cômodos" até o espaço maior nos fundos: Lá, três estantes estava abarrotadas de armas brancas: Desde espadins a alabardas e marretas. Perto delas havia uma roda de pedra para amolar, bonecos de palha e de madeira, e uma mesa de ervas e curativos para quaisquer erros:

—Aqui é um lugar bem grande, pra um porão. E você deixou ele bem decorado. Uau, estou impressionado! Japoneses gostam de flores, bambu e tecidos tanto assim?

—A casa da vovó era quase assim. Só não tinha energia elétrica. E talvez tantas armas... -Haruka sorriu, tocando os indicadores envergonhada - Digamos que eu tenha uma certa... Compulsa. 

—A Sarah detestaria essa casa. Ela prefere atirar. Me lembro de quando ela ganhou um bodoque que o papai fez com restos de um reparo para o governo. Eu nunca tive tantas marcas de pedrinhas no corpo como tive naquele dia. 

—Sua irmã parece ser uma garota agradável. Gostaria de conhecê-la.

—"Agradável". A Sarah é o peso que eu carrego nas costas... Ou carregava. 

—Você acha que ela também se foi?

—Nem pensar. A Morte não aguentaria minha irmã por 5 minutos. Ela deve estar lá em cima em algum lugar. Um dia vamos nos ver de novo, e eu prometo apresentar você pra ela. -ele cruzou os braços

—Você se importa com ela um pouco demais, não acha? -ela sorriu com a mão no rosto

—Eu? Pfff... Não seja besta. Como se eu ligasse pra bocó ruiva. 

—Quer beber um pouco de chá? Talvez algo quente te anime.

—Lutar me animaria muito agora. Vamos apostar o que?

—Nossas habilidades não são o suficiente? -a jovem indagou

—Isso é óbvio, mas eu tô falando de um prêmio. Prêmios sempre são motivadores.

—Certo, então prepare pra me vencer. Estou tentando pensar em algum prêmio.

—Não é divertido lutar sem saber o que está em jogo... -Thomas deu de ombros

A garota pôs os braços na cintura e os balançou como se fossem asas de ave. Seus lábios moviam-se em silêncio enquanto os olhos fitavam Thomas desprezando-a. Furioso, ele puxou uma espada de bambu da pilha de armas:

—Chega, você me irritou. Vamos lutar.

—Você sabe que, furioso, não vai conseguir se concentrar. Desconcentrado, vai perder bem rápido. -ela sacou a katana pôs-se em posição de combate. 

Ele avançou rápido numa estocada, mas ela desviou e o acertou com o punho da espada e foi para o outro extremo do campo de treinamento. Thomas se recompôs e deu outra investida e atrasou se ataque, aproveitando da reação natural da garota: Ela tentou acertá-lo com um chute, mas ele segurou sua perna e a derrubou no chão. Sorrindo, vitorioso, ele pôs a espada de bambu nos ombros e tomou rumo para o outro lado. Ela, mais esperta, deu-lhe uma rasteira e o segurou pelos pulsos com uma mão, enquanto mantinha a parte traseira da lâmina no pescoço:

—Eu quase achei que tinha pegado leve demais com você.

—Eu nunca disse que não sabia lutar. Você me subestimou, moça. E aí, eu venci?

—A primeira rodada, sim. Não o treinamento, porque eu não lutei a sério. Mas agora, nós dois devemos estar cansados. Quer dormir aqui?

—A minha cama é lá em cima. E eu teria que dormir com você e...

—Ei ei ei ei ei, apressadinho. Eu nunca disse que você teria que dormir comigo. Não coloque a carroça na frente dos animais. Você pode dormir nas almofadas da sala de chá, e eu vou dormir na MINHA cama. Boa noite!

—O que quer dizer com "apressadinho"? Espere, Nana! Ah... merda. 

—Se você tentar abrir a porta, eu juro que vou cortá-lo ao meio!

Thomas nem procurou sair do lugar, e dormiu ali mesmo. Um sono que pareceu durar minutos, durou pouquíssimas horas até ser acordado pelo cheiro de ervas vindo de algum lugar da casa. Recompôs-se e caminhou seguindo o cheiro de menta. Encontrou a garota em roupas diferentes das usuais. Era um robe enorme e branco:

—Bom dia, moço. Pensei ter dito pra você dormir sobre as almofadas. Seu rosto está todo listrado. -ela riu

—Faltou muito combustível pra me tirar dali. E que horas são? Parece que eu não dormi nada.

—Já é de manhã. Quer um pouco de chá?

—Chá? Nah, obrigado. Eu vou comer lá em cima.

—Desculpe se meus gostos orientais não agradam você, senhor ocidente. -ela bebericou do chá - Antes que eu me esqueça: Você não deve dizer a ninguém sobre esse lugar, tudo bem?

—Por que não?

—Porque aqui é o meu cantinho. Único lugar onde os meus costumes prevalecem, e eu me sinto em casa. Já faz bastante tempo desde que eu tive que vir pra cá. Quer ouvir uma história?

—Se for só pra ouvir a sua voz,Nana,eu quero. Mas quero café.

—E-eu não tenho café, desculpe. -ela escondeu o rosto nas mangas longas da roupa - D-de qualquer forma, isso aconteceu há muito tempo. A vila onde eu morava era linda, e vivia de plantio e gado. Eu morava com meus avós. Um dia, quando eu tinha cinco anos, decidi andar sozinha atrás de um bando de coelhinhos que eu tinha visto sair da floresta, e acabei me perdendo no porto. Entrei em um navio por engano e vim parar aqui. Fiz amizade com um dos mercadores, e ele me escondeu entre os peixes. Era tão fedido que só há poucos meses eu consegui tirar aquela nhaca do meu cabelo. Daí,a gente foi pego por uma tempestade e fomos jogados para dentro do continente até chegarmos aqui, nesta terra. Como eu era uma clandestina, ele me trouxe até Cervantes e me deixou com uma senhora no mercado. Essa senhora já morreu. Mas enquanto eu estava com ela, ela estava bem e me fazia um picadinho de frutas sempre ao final do dia com as frutas que não eram vendidas. Não era a coisa de maior qualidade que eu já tinha comido, ou que eu fosse acostumada a comer, mas era da bondade dela. Um dia, a senhora Jolyne me viu e começou a brincar comigo.

—Ela tem coração?! MEU DEUS! 

—Tem, e como. Ela é a minha figura materna. Um dia, ela foi comprar frutas e me chamou. Eu fui até ela e percebi que ela estava grávida. Não prestei muita atenção, mas parece que ela estava pagando a mais para a senhora por mim, e a senhora estava recusando ávidamente. Mas me lembro que ela se virou com um sorriso e me perguntou se eu queria uma casa pra morar, e uma cama bem confortável pra dormir. Perguntou sobre os meus pais, mas eu disse que não tinha ninguém. Anos depois é que contei dos meus avós, e soube que a minha vila tinha sido destruída por guerrilheiros contrários ao Shogun em uma disputa com o exército. Provavelmente eles se foram no meio da confusão, e desde então eu estou sozinha. Gosto dos McConnor, mas eles são ocidentais demais pra mim. Eu aprendi a lutar no bar, com homens que passavam de caravana. Meu mestre é um chinês que nunca me disse o nome dele, mas eu o chamava de Mestre Lao. Era o primeiro nome que me veio à cabeça, e ele aceitou ser chamado assim. Eu o conheci com 9 anos, e ele me treinou até os 13. Ele parou de aparecer aqui em Cervantes já faz algum tempo.

—Q-Quantos anos você tem?

—Quinze anos. 

—Uau.

—O que foi? 

—N-nada não... -ele tentou disfarçar a explosão hemorrágica a caminho

—Ah é, minha roupa está folgada e já faz um bom tempo que você estava olhando. Vou buscar a Aosora. -ela sorriu, irônica

—N-n-n-n-n-n-não é o que parece! E-eu nem teria percebido se você não tivesse falado sobre isso. É que eu tava prestando atenção na sua história e... Não convenci, né?

—Nem um pouco.

—Merda.

—Mas foi uma boa tentativa. Vou perdoar dessa vez.

—Nana, por que você se isola aqui? É mais legal ficar com outras pessoas. 

—De fato, mas eu gosto do ambiente oriental que esse lugar tem. Provavelmente aqui, os outros iriam atropelar o visual para colocar suas coisas como fazem lá em cima. Meu quarto lá é quase um santuário, mas ainda sim a Dama coloca as coisas dela lá, porque sabe que ninguém entra no meu quarto. E você dorme lá também. Aqui, é o meu pequeno Japão. 

—Pois eu vou dormir aqui todos os dias, até você parar de querer ficar sozinha.

—O que faz você pensar que eu permitiria isso?

—O que faz VOCÊ pensar que você precisa permitir isso? Se não fosse com a minha cara, teria deixado eu me curar deitado na sua cama? Você não vai fechar nenhuma porta de ferro pra mim, porque eu vou estourar todas elas com uma bala de canhão.

—Tsh... -ela sorriu e bebeu mais do chá - Nem eu mesma sei porque fiz aquilo, ou porque gosto de ficar perto de você.

—Viu? Você gosta de ficar perto de pessoas. Eu sou uma pessoa.

—Não é tão simples assim. 

—Você não vai parar de retrucar e aceitar que eu estou certo?

—Você pode me forçar, se quiser. Só não garanto que vá funcionar.

—Certo, você venceu. -Thomas pôs-se de joelhos - Vou encarar você até você desistir de retrucar tudo o que eu digo.

—E isso vai funcionar como, bobo? -ela sorriu, virando o rosto e corpo frente a frente com o garoto

—Vamos, continue a retrucar. Eu vou dormir aqui, e isso é um fato.

—Você é um apressado, além de abusado. Nos damos bem, mas não me lembro de sermos amigos para você se sentir liberto assim comigo.

—Isso é hipocrisia sua. Você foi atrás de mim de madrugada. Você disse para vir pra cá. Não venha se colocar como a intangível aqui. Nós somos amigos justamente por nos darmos tão bem. 

Ela perdeu o olhar por alguns instantes, sem resposta:

—Sabe, Thomas, talvez você tenha sido a primeira pessoa a ficar tão perto de mim em anos. Digo, tão perto assim. Obrigada.

Ele sorriu e descruzou os braços:

—E aí, vai parar de retrucar?

—Vou. Ah é, você esqueceu seu prêmio por ter vencido ontem. É melhor você ir, senão vai se atrasar pro café da manhã lá de cima

Ela o puxou pelos suspensórios e deu seu primeiro beijo:

—Agora some, eu quero tomar meu chá quietinha. Seu incômodo. -ela sorriu e mostrou a língua

Desconsertado, ele calçou as botas de qualquer jeito e subiu as escadas, fechando as portinholas de ferro logo em seguida. 


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