A Redenção do Tordo escrita por IsabelaThorntonDarcyMellark


Capítulo 65
A alegria de segurá-la nos braços


Notas iniciais do capítulo

Olá, pessoal!

Escrever esse capítulo foi um longo processo, porque, com as devidas adaptações à fic, foi inteiramente elaborado a partir de experiências reais — vivências pessoais e de amigas com filhos, assim como relatos que li e ouvi —, de modo que tudo o que descrevi, até mesmo as partes que parecem ser bem fantasiosas, são absolutamente verdadeiras.

Afinal, assim são os nascimentos, momentos ao mesmo tempo comuns e extraordinários, naturais e mágicos…

Espero que gostem do nascimento da Willow!



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"Quando a senti pela primeira vez se agitando dentro de mim, fui consumida por um terror que parecia tão velho quanto a própria vida. Apenas a alegria de segurá-la nos braços pôde fazer com que o superasse." (Katniss Everdeen, em "A esperança").

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Por Katniss

Acordo com um aperto gigante no peito e com uma indagação rondando o pensamento: será que é hoje? Uma ansiedade impiedosa me avassala.

Ou será que despertei, na verdade, por causa de uma contração? Definitivamente sim.

Parece que estão espremendo meu estômago, mas não há nenhum desconforto além disso.

No entanto, logo depois, sinto uma contração bem forte, diferente das outras. Uma dor aguda se irradia para a lombar.

Meu coração dispara, como uma intuição.

A sensação logo passa. No entanto, o pressentimento fica. Espero alguns minutos ainda deitada, mas não volta a acontecer. O que incomoda agora é essa dor repentina nas costas.

Pode ser o colchão do quarto de hóspedes, onde eu e Peeta estamos dormindo há alguns dias, para evitar os degraus da escada até nosso quarto. Mais um dos cuidados extremos dele.

Reparo mais uma vez a enorme transformação que a natureza perpetrou em meu corpo. Nos últimos meses, é impressionante o esticão que minha barriga sofreu. Eu me pergunto com que tamanho nossa filha nascerá.

Saio da cama lentamente, pelo esforço de me movimentar com meu ventre exageradamente grande. Os pés estão menos inchados pelo descanso da noite, mas, ainda assim, pesados o suficiente para reduzirem minha agilidade a um nível exasperante, principalmente para alguém que pretende apenas ser independente o bastante para calçar os próprios chinelos e iniciar mais um dia.

Apesar disso, agradeço a minha lentidão forçada, por me fazer poupar a minha coluna, já que a dor lombar aumenta gradativamente.

Depois de um banho quente, o incômodo arrefece, mas continua doendo. Além disso, ainda impressionada com aquele presságio, o estado de alerta com o qual despertei não me abandona.

Tudo me sobressalta. O gato derrubando algo da cabeceira da cama, o apito da chaleira, a batedeira acionada na cozinha, o abrir e fechar do forno de uma manhã rotineira com Peeta confeitando bolos em casa, já que não quer me deixar sozinha por um segundo sequer.

A cada som que escuto, meu coração palpita forte.

— Está tudo bem?

Apesar de a pergunta ser feita pela voz doce que só me traz segurança, minhas pernas amolecem e os batimentos cardíacos mais uma vez aceleram, pela simples quebra do silêncio.

Viro-me em direção à porta do quarto, onde Peeta esta de pé agora. O que me acalma é ganhar esse sorriso do homem que se mantém forte e continua distribuindo amor e esperança, mesmo nesses tempos difíceis de se conviver com meu humor oscilante.

Basta seu olhar amoroso sobre mim para o mundo se aquietar, porém mesmo esse olhar calmante se transforma em uma expressão preocupada, quando apoio minhas mãos na lombar.

— É só uma dor chata aqui.

Ele se aproxima, esfregando as mãos uma na outra para aquecê-las. Seus braços me envolvem e se esticam para alcançar o local que apontei, vencendo a distância, que aumenta de tamanho a cada centímetro que minha circunferência ganha com o avanço da gravidez.

O alívio é imediato quando ele ergue minha blusa e massageia levemente minhas costas. Fecho os olhos, relaxando com a sensação agradável de seus dedos em minha pele.

— Acordei com um pressentimento. — Torno a encarar Peeta, quando o movimento de suas mãos esmorece de repente. — E com uma contração.

Peeta ergue as sobrancelhas.

— Não me diga que... Não está muito cedo ainda? Você mal chegou a 37 semanas.

— Foi uma daquelas contrações de treinamento. Tenho sentido algumas ultimamente.

A obstetra já havia nos falado sobre essas contrações de treinamento, que são normais e não indicam trabalho de parto. Tal como ela descreveu, são indolores e parecem uma pressão no útero.

— Então, posso ir tranquilo fazer a entrega do bolo? Sua mãe já está a caminho para me render.

Sim, graças ao zelo de Peeta, a palavra solidão não existe mais em meu dicionário. E, também graças a ele, agora temos um carro. Peeta o comprou, dizendo que serviria para as entregas da padaria, porém sei que foi pensando principalmente nas idas ao hospital.

— Você pode trazer algumas amoras quando voltar? Elas são deliciosas nessa época do ano. Se pudesse, eu mesma iria colher uma por uma.

— Mas você não pode.

Seus lábios calam meu protesto, antes que eu o profira.

— Promete que não vai fazer esforços desnecessários? — Peeta suplica.

— Defina esforços desnecessários.

— Esse é um conceito muito amplo, quando se trata do pedido de um marido preocupado com sua esposa grávida — desconversa ele, antes de deixar um beijo demorado em meu ventre. — Só me espera chegar, que ajudo no que for preciso.

Eu o sigo até a cozinha e seguro a porta para ele passar com o bolo. Só então entro sorrateiramente na despensa, à procura dos cookies que Elliot e Maysilee contrabandearam pra mim.

A janela, muito alta, permite que eu ouça a movimentação na área externa da casa, sem que se saiba da minha presença aqui.

Não vejo, mas imagino o que ocorre lá fora. Pelos sons das vozes, com certeza minha mãe encontrou Peeta e está o ajudando a colocar o bolo no carro de entregas.

— Tudo tranquilo essa manhã? — pergunta ela.

— Katniss está com dores na lombar e teve uma contração de treinamento — enumera Peeta.

— Isso é normal.

— E já faz alguns dias que ela não para de organizar e reorganizar tudo — resmunga ele.

Estou mesmo numa rotina de arrumação incessante em cada cômodo de nossa casa há cerca de uma semana.

— Isso também é normal.

— O que significa esse comportamento? — Peeta pergunta.

— É algo natural que surge no final da gravidez. Essa necessidade de preparar um lar para o recém-nascido é puro instinto de proteção.

— Mas ainda faltam algumas semanas, não?

— Os bebês não se importam com o número de semanas de gestação e quase sempre criam seu próprio cronograma. E, se essa menina for parecida com a mãe, ninguém vai dizer a ela com quantas semanas virá ao mundo.

— Você acha que a Willow vai nascer antes do previsto?

— Já lidei com mulheres grávidas o suficiente para saber que Katniss está muito perto de dar à luz. A bebê já se encaixou na posição do parto, sinal de que realmente pode acontecer a qualquer momento.

— Ela vai ficar bem, não vai?

— É claro que sim. As duas estão ótimas. Só é preciso ajudar Katniss a evitar açúcar e farinha branca, pois quem tem uma taxa menor de glicose no sangue pode ter um parto mais tranquilo — aconselha ela e imediatamente abandono o pacote de cookies que estava prestes a abrir.

— Tarefa difícil para um padeiro — observa Peeta.

— Katniss vai agradecer, isso sim... Não estaremos livres de ouvi-la dizer algumas coisas desagradáveis, especialmente para você, quando as contrações de verdade começarem, mas, se tomar esse cuidado, vai ouvir por menos tempo. Afinal, no instante em que a Willow estiver nos braços dela, tudo estará perfeitamente bem.

— Alguma chance de acontecer um parto em casa como o da Annie?

O único parto que Peeta presenciou foi o da Annie, na casa dela, e isso o marcou bastante. Finn veio ao mundo de modo completamente natural e num ambiente mais do que acolhedor. Por isso, ele tem conversado muito comigo a respeito de seguir esse exemplo, porém acho que nunca vou me convencer a viver essa experiência longe do hospital, especialmente depois de presenciar tantas tragédias familiares aqui no Distrito 12.

Essa é a única coisa com a qual não concordamos. Detesto deixá-lo triste, porém é um ponto em relação ao qual não consigo negociar.

— O parto da Annie foi realmente um acontecimento lindo. Até eu, que já participei de tantos, preciso reconhecer que deixou uma forte impressão em mim. Por isso, entendo a sua vontade de vivenciar algo parecido com o nascimento da sua filha. No entanto, Katniss viu o que eu vi. Antes dos jogos, não foram poucas as mulheres da Costura que perderam suas vidas durante o parto. Em outras tantas vezes, era o bebê quem não resistia.

A essa altura, as lágrimas já correm soltas pela minha face. Minha mãe foi certeira ao resumir os meus maiores receios, porém ainda me sinto mal por minha vontade não convergir com a de Peeta a respeito de algo tão importante.

— Isso a impressionou bastante mesmo — concorda ele.

— Então, apesar de, na minha opinião, ser viável o parto domiciliar, essa escolha é somente dela, Peeta.

— Está certo — resigna-se ele. — Obrigado pela ajuda com o bolo... E com tudo.

Escuto o agradecimento de Peeta e, logo depois, o baque da porta do carro se fechando.

O som do motor vai se afastando e, em seguida, minha mãe abre a porta de entrada. Saio da despensa e, nem bem pousa os olhos em mim, ela sabe que ouvi o teor de sua conversa recente com Peeta. Minha mãe se aproxima a passos largos e desliza os dedos por meu rosto, enxugando minhas lágrimas.

— Mãe, eu queria ser mais corajosa.

— Mais do que já é?

— Sei que a decisão sobre o parto cabe principalmente a mim e…

— Principalmente não. Cabe a você e ponto final.

— Mas não acho justo. Tudo tem que ser perfeito para a Willow. E para o Peeta também.

— Entendo, querida — afirma. — Em seu lugar, não estaria com menos questionamentos.

— Não? — indago.

— Você dará à luz em breve. É perfeitamente aceitável estar preocupada. Quero que saiba que, não importa qual seja a sua escolha, estarei ao seu lado, assim como o Peeta. E o que decidir será o melhor para a Willow também.

Minha mãe apoia minha cabeça em seu ombro. Depois de afagar meus cabelos por um bom tempo, suas mãos ladeiam o meu rosto.

— Agora, Katniss, para acalmar de vez seu coração, diz pra mim... O que é que está faltando arrumar na sua casa já perfeitamente organizada?

Abro um sorriso ante a sua tentativa de me animar.

— É verdade que é normal essa compulsão por arrumação no final da gravidez?

— Sim. Tudo isso tem uma explicação científica. São esses hormônios em ebulição de que você tanto fala. Estradiol, prostraglandina, prolactina, ocitocina e outros tantos. Todos estão aí em rebuliço por bons motivos. Por isso, além de ajudar você na arrumação, é meu dever também reforçar a questão de evitar doces e pães, Senhora Mellark — orienta ela, meneando a cabeça em direção à despensa, de onde saí.

— Já que não posso comer besteiras, o único prazer que me resta é continuar a arrumar a casa.

Assim, apesar dos apelos de Peeta para não fazer esforços desnecessários, consigo convencer a minha mãe de que ainda preciso ajeitar algumas coisas.

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Passeio pelo quarto da Willow, desdobrando e redobrando cada peça de roupa dela guardada nas gavetas.

Praticamente não foi preciso comprar nada, pois recebemos muitos presentes de todos os cantos de Panem.

Depois da entrevista em que eu e Peeta revelamos que a bebê é uma menina, os mimos para a Willow se multiplicaram.

As poucas peças que comprei foram roupinhas com frases com a palavra "papai", as quais tento manter escondidas do Peeta, para fazer algumas surpresas para ele futuramente.

— Katniss, por que você não descansa um pouco? — indaga minha mãe, surgindo na porta do quarto da bebê, com uma taça de salada de frutas para mim. — As roupinhas já estão separadas por tipo e tamanho.

— Não sei, mãe. É mais forte que eu.

Ela ri e acaba por assumir a arrumação do quarto, enquanto saboreio as frutas que ela trouxe. Só faltam algumas amoras nesse lanche delicioso.

— Acho melhor que esses vestidinhos fiquem em cabides. Vou buscar alguns no outro quarto — aviso e sigo em direção ao fim do corredor, porém interrompo meus passos em frente ao estúdio de Peeta.

Ainda não havia visto, mas o quadro em que ele está trabalhando atualmente é uma silhueta de uma mulher grávida, recostada em um salgueiro com a folhagem do final do outono. O rosto dela está voltado para o céu e, do lugar onde está a criança, irradiam feixes coloridos de luz. Sorrio ao pensar que, a qualquer momento, estarei segurando a minha menina.

O barulho vindo da porta de entrada me apressa a voltar ao quarto da Willow para ocultar as roupinhas de bebê que não quero que Peeta veja.

— Mãe, vá até lá embaixo, por favor, e distraia o Peeta o quanto puder.

— Farei o possível.

Puxo completamente a gaveta para esconder as peças minúsculas o mais depressa que posso, mas estão todas espalhadas pelos móveis do cômodo. Ainda não havia guardado nem metade, quando mais uma pontada na região lombar e uma forte pressão no abdômen me impedem de concluir a tarefa. Sem raciocinar, eu me apoio na gaveta em falso e tudo desmorona num estrondo.

— Peeta! — chamo e, num piscar de olhos, ele já está na porta do quarto, com a expressão aliviada por me ver de pé.

— O que houve?

— Pode me ajudar? — peço, falando baixinho. — A gaveta caiu.

— Caiu? Assim, do nada? — Peeta questiona, mas já sabe a resposta.

Observo o estado do quarto e da gaveta em si, abarrotada de roupinhas de bebê, com algumas peças no chão, e não parece que a estrutura apenas tombou sem nenhuma interferência.

— Aposto que você estava fazendo algo clandestinamente. Esforços desnecessários.

— Obrigada — agradeço, disfarçando, quando ele se agacha para arrumar minimamente a bagunça.

— Por que não me esperou? Avisei que estaria aqui pra ajudar você.

— Você estava ocupado.

Ele franze a testa para mim, sem acreditar.

— Fui e voltei o mais rápido que pude. Até me adiantei, para ficar à sua disposição por mais tempo ainda.

— Pois é... Essa é a explicação. Você chegou cedo demais — confesso, enquanto o auxilio a recolocar as peças na gaveta. — Apenas não queria que visse essas roupinhas aqui. Não ainda.

Exibo alguns pequenos macacões, colocando-os sobre minha barriga, e Peeta dá risadas ao ler as frases.

— Mal posso esperar para ver a Willow vestida com essas roupas.

— Pretendia fazer surpresa pra você. Se eu tivesse ouvido o barulho do carro chegando, acho que conseguiria esconder todas a tempo.

— Deixei o carro na padaria. A garotada adora quando dou autorização para lavarem a lataria.

— Imagino que seja muito generoso nas recompensas.

O sorriso satisfeito que Peeta dá não me escapa, enquanto ele continua a reunir as roupinhas espalhadas pelo chão.

— Você ainda não me disse o que aconteceu para essa gaveta cair.

— Continuo tendo falsas contrações.

— Por que não me disse antes?

— Porque elas são falsas

— Mas vai haver um momento em que serão reais. E quero acompanhar tudo ao seu lado. Vamos ao hospital?

— Minha mãe pode me examinar.

— Estava me despedindo dela pouco antes de ouvir o barulho da gaveta. Ela até insistiu em ficar, pois acredita que a bebê nascerá logo, só que insisti mais ainda para ela ir pra casa descansar um pouco. Se ela estiver certa, e acredito que sim, seu parto exigirá muito dela também.

— Você tem razão. Quanto a isso — pontuo. — Já quanto a ir ao hospital, não sei, pois não estou com contrações dolorosas, nem regulares. Portanto, não é trabalho de parto.

Mal termino a frase, preciso me curvar devido ao incômodo provocado por uma nova contração, dessa vez bem dolorida. Meu argumento para não ir ao hospital e as roupinhas que estou segurando caem por terra.

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Meu ventre está realmente grande e quase não me deixa ver os meus pés. Caminho com dificuldade em direção ao centro da cidade.

— Por que as grávidas têm que andar desse jeito? Fico cada vez mais desengonçada.

— Falta pouco. — Peeta deixa um beijo em minha têmpora, após murmurar esse pedido de paciência.

Não posso rebater. Afinal, ele faz tudo ao seu alcance para o meu bem-estar e se ofereceu para buscar o carro. No entanto, eu me recusei a usá-lo hoje, já que aproveito qualquer oportunidade para me movimentar um pouco.

— Nem posso reclamar. Fui eu que quis caminhar até o hospital. Só de pensar que, não vai demorar muito, farei esse trajeto novamente e…

— Katniss — interrompe-me Peeta, colocando-se diante de mim. — Você não precisa fazer isso. Já falei que…

— Não, Peeta. Por favor, vi muitas pessoas perderem seus bebês, muitas mães não resistirem por falta de atendimento médico. Não consigo imaginar nossa filha nascendo em casa.

— Ia comentar sobre o carro. — Ele libera minha passagem. — Mas prometo encerrar esse assunto também.

Peeta fita o chão e volta a caminhar ao meu lado.

— Não precisa prometer nada. Eu é que prometo conversar com a médica sobre as minhas opções — concedo e Peeta mal contém sua alegria em saber que não descartei completamente a possibilidade de um parto fora do hospital. — E pode ir lá buscar o carro, por favor.

O sorriso dele se transforma no ar presunçoso de quem já previa que eu pediria uma carona.

— Estamos perto da casa de Delly e Thom. Vou pedir a ela pra você ficar por lá, enquanto me espera. 

— Não precisa. Estou bem.

— Então, você fica aqui? Já volto! — avisa ele e segue em direção à padaria.

— Você não vai em casa pegar as chaves do carro?

— Trouxe comigo.

Peeta retira o chaveiro do bolso da calça e o sacode no ar. Ele não só previa, como tinha certeza de que eu desistiria da longa caminhada.

— Não demore, por favor! — Reúno o que resta da minha dignidade para, ao menos, dar a ordem final, ao que Peeta reage com bom humor, pondo-se a correr. Ele só desacelera ao olhar para trás uma última vez, acenando antes de virar a esquina.

— Katniss?

Depois de alguns minutos, ouço a voz de Delly atrás de mim, espantada ao me ver de pé na calçada. Estou parada praticamente em frente à casa dela.

— Estou esperando o Peeta voltar da padaria com o carro.

— Vou buscar uma cadeira pra você.

Quando ela retorna trazendo a cadeira, vem acompanhada dos filhos Lily e Thomas. O pequeno dá passinhos desajeitados, ajudado pela irmã.

— Como eles cresceram, Delly! Lily está tão responsável, cuidando do caçula. E o Thomas já está andando!

Delly olha embevecida para a cena encantadora, concordando com a cabeça.

— Passa tão rápido, você vai ver — afirma ela, enquanto me ajuda a sentar na cadeira. — E onde o Peeta está com a cabeça ao deixar você aqui sozinha em seu estado?

— Peeta é um cabeça dura, Delly — acuso. — E eu sou mais ainda. Ele não quer nem que eu venha ao hospital caminhando e me neguei a vir de carro, mas me rendi no meio do caminho.

— Oh, Katniss, já estive em seu lugar... Ele faz isso para o seu bem.

— Não se preocupe, Delly. Não vou brigar com o Peeta. Ele pode ser cabeça-dura, mas tem toda a razão.

— Tia Katniss, sua barriga está gigante! — repara Lily.

— Sim, Lily, está enorme. É sinal de que logo, logo você estará ajudando a Willow a dar os primeiros passos também.

Suspiro, tentando não demonstrar o desconforto que sinto quando chega mais uma contração desagradável.

— Você já está na fase de arrumar tudo o tempo todo?

— Ai, sim! Nada parece estar no lugar certo.

— Sei como é e pode me chamar para ir lá ajudar na organização — oferece ela.

— Obrigada, Delly.

— Está muito perto, né? Todas as minhas gestações foram de risco e não foi possível levá-las até o fim antes de ter que fazer uma cesariana. Gostaria muito de ter vivido a experiência do trabalho de parto.

— Sério? Estou apavorada com a ideia.

— Lembro de que, ainda na época da escola, li em algum livro que, durante o trabalho de parto, o corpo feminino produz mais endorfina do que qualquer pessoa produziria em toda a sua vida. A dor deve ser excruciante, mas a natureza cuida para ser um dos momentos mais felizes da vida da mulher.

— A natureza é mesmo fantástica.

— Como que deve ser isso, hein? Será que é como uma dose cavalar de morfináceos?

— Estou prestes a descobrir.

— Meus pais me contavam histórias lindas sobre os dias em que eu e Blaine nascemos. Imaginava viver essa viagem para me tornar mãe no meu cantinho, cercada de pessoas queridas, num ambiente familiar... Mas ficou só na imaginação mesmo, porque não tive escolha.

— No final das contas, o importante é que Lily e Thomas estão aqui e estão bem. Cada dia mais lindos.

— Verdade! Faria tudo de novo, quantas cirurgias fossem necessárias para tê-los aqui comigo. Com direito a tudo! Encararia mesa de cirurgia, camisola hospitalar, touca no cabelo, bisturi, agulhas…

Ela continuaria a tagarelar, se Peeta não houvesse buzinado, anunciando sua chegada.

Delly me ajuda a entrar no carro, enquanto as crianças acenam para nós na calçada, e eu e Peeta partimos para o hospital.

A narrativa de Delly me impressionou e me tocou profundamente.

Não sei explicar. Só sei que, quanto mais nos aproximamos do hospital, mais distante quero ficar dele.

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Excessivamente iluminada, estéril, fria, cheirando a desinfetante e inquietude. Sim, até meus sentimentos estão impregnados por esse odor característico do ambiente hospitalar.

A sala de exames é exatamente assim. Um espaço compacto, repleto de equipamentos médicos: uma cama ginecológica, uma máquina de ultrassom, vários monitores e um suporte de medicação intravenosa de metal. Tão pouco convidativa quanto uma sala de parto deve parecer.

Quando a Dra. Melissa me libera, dizendo que tive apenas contrações de treinamento e ainda não estou em trabalho de parto, Peeta finalmente respira fundo, erguendo-se da cadeira para sairmos daqui o quanto antes.

— Não tão rápido, Sr. Mellark. Gostaria de conversar com vocês no meu consultório — avisa a Dra. Melissa, com suas mãos esterilizadas, cobertas por luvas, e um sorriso atrás da máscara. — Aguardo vocês.

Ela sai da sala de exames, atravessando a cortina que a separa do consultório ao lado. Enquanto me visto, Peeta espirra algumas vezes.

— Acho que estou com alergia a esse cheiro de hospital. Não estou aguentando esse odor de éter, medicamentos e produtos de limpeza.

— É melhor providenciar um antialérgico. Em breve, você vai passar um bom tempo por aqui.

— Já contei que, no dia em que o Finn nasceu, preparei uma fornada de biscoitos e a casa da Annie ficou tomada por aquele aroma maravilhoso de baunilha e chocolate? Isso, sim, é uma ótima forma de ser recepcionado nesse mundo, não acha?

O lampejo de humor que brilha em seu rosto ofusca qualquer apreensão que a sugestão possa provocar em mim.

— Sem dúvidas — concordo, rindo, enquanto ele me ajuda a recolocar o vestido. — Daqui a pouco, você vai querer que a Willow nasça na padaria.

— Eu ouvi direito? Na padaria? — A voz da médica atravessa o tecido que separa as duas salas e Peeta arregala os olhos.

— Não resisti, Dra. Melissa — admito, ao puxar o cortinado para entrarmos em seu consultório. — É que o Peeta gostaria muito que a bebê nascesse em casa, mas não aderi a essa ideia. Fico imaginando as mais diversas tragédias. E não adianta quantas vezes ele diga que tudo vai acabar bem.

— Já atendi alguns partos em casa aqui no Distrito 12. Parece que este era o costume daqui.

— Não diria que era um costume. Era a falta de opções mesmo — recordo.

— Sim, mas agora realmente é uma opção e não significa que, por não ser no hospital, não é algo seguro. Só não posso garantir que seja assim na padaria. — A médica olha diretamente para Peeta. — E essa deve ser uma escolha da gestante.

Nesse clima descontraído, explico exatamente o que quero. Um parto o mais natural e respeitoso possível e me sinto verdadeiramente ouvida e respeitada, quando ela me garante que, não importa o local escolhido, toda a equipe se esforçará para que isso aconteça.

— Já houve o encaixe da cabeça da bebê. Seu corpo já está emitindo os sinais de que ela vai nascer logo, mas ainda não há nenhuma dilatação. As contrações do trabalho de parto são regulares, endurecem toda a barriga e costumam vir acompanhadas de dor, evoluindo até se tornarem mais fortes e ocorrendo em intervalos cada vez menores. Por exemplo, quando há pelo menos duas contrações regulares, com duração de cerca de 60 segundos, no intervalo de 10 minutos — esclarece a médica. — Então, explicados os detalhes, agora é só aguardar... Se a bolsa se romper antes de o trabalho de parto começar, não precisam se apavorar e correr para o hospital, se for esta a opção. Não aconselho que venham para cá muito antes de as contrações estarem ritmadas, pois em casa você tem mais liberdade de movimento para encontrar a melhor posição para suportar o desconforto delas.

— Agradeço os esclarecimentos, Dra. Melissa — digo.

— Acho que vejo vocês aqui em breve.

Não faço qualquer observação em réplica.

O momento de decidir se aproxima, porém não sei qual a resposta. Agora, vejo tudo por uma perspectiva completamente diferente. Apenas sorrio discretamente em despedida. Peeta me encara, intrigado, mas também nada diz.

Eu e ele caminhamos em silêncio pelos corredores, ainda mais gélidos do que quando chegamos. Na porta de saída, quando o calor do sol da manhã de outono toca nossa pele, ele se anima a falar:

— Mesmo aqui no hospital, a Willow será muito bem recepcionada. Ela nem vai ligar para o cheiro forte, quando estiver nos seus braços.

Peeta beija minha testa, antes de abrir a porta do carro pra mim. Continuo sem comentar nada. A vinda ao hospital me deixou com ainda mais incertezas. Saí de casa com a convicção de que seria exatamente aqui. No entanto, depois de ouvir Delly e a médica, a dúvida se instalou em mim.

— Ninguém pode tirar de você o direito de decidir. E ninguém, muito menos eu, pode deixá-la mal por exercer seu direito. Não importa como vai acontecer o parto — lembra ele. — No fim, teremos a nossa criança conosco.

— Estou cheia de dúvidas ainda, mas, se for aqui no hospital, você ficaria desapontado? — Quero saber.

— Nem um pouco.

Ele responde sem titubear, o que me tranquiliza. Peeta hesita apenas para entrar no veículo.

— Você se incomoda se eu seguir o caminho mais longo até em casa? — indaga.

— Pela floresta?

— Sim. Você mesma colherá suas amoras.

O semblante preocupado dele dá lugar a um suspiro aliviado, quando vê minha reação positiva à sugestão maravilhosa que fez.

Peeta sabe que não consigo me imaginar longe da floresta. É uma questão de sobrevivência mental e ele entende perfeitamente.

— O que eu faria sem você? — questiono.

— Não pretendo que você descubra nem tão cedo a resposta para essa pergunta.

Entro no carro o mais depressa que consigo. Peeta logo dá a partida.

— Esse não é um esforço desnecessário? — questiono.

— Há umas árvores bem próximas da cerca. O esforço necessário será mínimo.

Peeta guia o veículo até onde está reunido um grupo de garotos e garotas, dentre eles Elliot e Maysilee — os gêmeos de Effie e Haymitch —, e Luke e Leo — os filhos de Delly e Thom. Eles estão próximos da cerca, munidos com ferramentas e cestos.

— O que está acontecendo?

— Também sei fazer algumas surpresas — revela Peeta antes de sair do automóvel e abrir a porta pra mim. — Hoje a tarefa da meninada não foi apenas lavar o carro.

Tão logo piso no chão, Maysilee vem me entregar uma cesta com frutas vermelhas recém-colhidas.

— Missão cumprida, tio Peeta! — Maysilee exclama. — Ainda deixei as mais apetitosas pra você apanhar, tia Katniss.

— Vá em frente — encoraja-me Peeta. — Hora de colher suas amoras.

A menina me pega pela mão e me ampara até a amoreira mais próxima e, só então, vejo que os meninos estão cavando um grande buraco, numa clareira a alguns metros da cerca.

Enquanto coleto algumas amoras maduras ao meu alcance, observo Peeta ser rodeado pelas crianças e esvaziar sua carteira, distribuindo cédulas a todas, que se despedem rapidamente de nós e saem em disparada em direção à cidade.

Luke é o último a correr, pois, antes de ir, deixa com Peeta a pá que estava usando.

— Qual a explicação pra isso? — pergunto.

As árvores de amanhã estão nas sementes que cultivamos hoje. — Peeta faz um gesto para eu esperar e vai até a mala do carro. De dentro dela, retira uma pequena árvore. — Um cliente me ofereceu uma muda de salgueiro há alguns dias e levou à padaria esta manhã. Estava planejando mostrá-la a você depois de plantada, mas, de última hora, na saída do hospital, pensei que você gostaria de participar.

— Pensou certo — afirmo, já com a boca cheia de amoras.

Levo algumas frutas para dividir com ele, enquanto centraliza a raiz na cavidade feita pela garotada.

Eu me sento numa grande rocha do lado oposto da clareira e observo Peeta cercar o pequeno tronco com muita terra.

— Agora, o toque final! — Peeta anuncia, enxugando a testa com o antebraço.

Ele retorna ao veículo e traz uma placa. Peeta me mostra os dizeres, delicadamente pintados por ele, antes de fincá-la no chão.

"Willow,

Que hoje e sempre exista um sonho em seu coração, amor em sua caminhada e felicidade em sua vida."

Peeta limpa as mãos precariamente em sua calça e as estende a mim, para me erguer. Bastam poucas palavras para descrever o que presencio, quando o rosto dele ocupa minha visão.

Amor. Carinho. Dedicação. Troca. Respeito.

Que olhar, que cuidado!

O que era apenas um pressentimento, que estava me deixando apreensiva, agora é uma quentura boa no coração, por saber que não falta nada para a Willow conhecer o pai e ter esse mesmo olhar sobre ela.

Afinal, minha bolsa se rompe. A sensação imediata é de muito alívio, como se estivesse sendo liberada de uma pressão enorme.

Água. Mais água, muita água. As cólicas já dão o ar da graça.

— No primeiro ano após plantar, é preciso regar o salgueiro frequentemente — continua Peeta, sem se dar conta do ocorrido. — Essa é uma tarefa que gostaria de cumprir junto com a Willow... Preciso deixar você em casa e voltar aqui com um grande balde.

— Não. Você não vai poder.

— É claro que v…

Aponto para a terra molhada ao redor dos meus pés e ele vê a poça formada por um líquido claro e turvo, que só aumenta, em razão do gotejamento que escorre incessantemente por minhas pernas.

— Katniss, é o que estou pensando? — Peeta pergunta e confirmo.

— Chegou o momento de conhecê-la.

Não quero transparecer, mas estou em pânico.

Peeta fica em silêncio durante vários segundos. Os olhos dele estão arregalados, fixos nos meus, como se buscassem alguma coisa, enquanto assente freneticamente.

— Chave do carro? — Ele passa as mãos pelos bolsos.

— Ficou na ignição.

— Nossa casa fica naquela direção. — murmura, meio desnorteado. — Consigo chegar em cinco minutos.

Ele fala para si mesmo e sai correndo.

— Não se esqueça de mim aqui!

Ele olha para trás e, dessa vez, não diz nada. Ainda está chocado demais para falar.

— Tudo bem? — pergunto, enquanto ele olha direto para minha barriga.

— Tudo bem — responde ele, mas seu queixo treme. — Quer que eu a pegue no colo? Está sentindo alguma dor?

— Não. Não ainda. Vem aqui.

Parece que o instinto paterno dele fala mais alto e o deixa mais consciente do que está acontecendo. Peeta se aproxima e afago seu rosto com as pontas dos dedos.

— Já voltou ao planeta Terra? — Dou risada, beijando a ponta do seu nariz.

Ele concorda e me dá um sorriso vacilante.

— Ninguém avisou desse frio na barriga — sussurra.

— E não dá para voltar atrás, Peeta.

— De jeito nenhum.

— Foi um longo caminho até aqui.

— Foi sim e é só o começo. Vai dar tudo certo, Katniss! — Peeta tenta me tranquilizar, mas sua voz embargada o trai.

— Vai sim — repito, esforçando-me para acreditar nessa frase, porém ainda é quase impossível me livrar do medo que ecoa em minha mente.

Peeta me envolve em seus braços com todo o zelo do mundo. Quando me solta, com o dedo em riste, ele se agacha à minha frente.

Senhorita Willow, não pense que não percebi que, quando sua mãe mencionou que poderia nascer na padaria, você não se manifestou... Mas bastou chegar à floresta e você se apressou para sair daí.

— Ponto pra mim, então?

— Ponto para a família toda. Vou ganhar mais uma linda caçadora.

— Foi lindo esse gesto de plantar uma árvore... E exatamente quando ela decidiu nascer.

Basta mencionar o nascimento da Willow para acionar o estado de prontidão dele.

— Quer voltar ao hospital? — indaga e balanço a cabeça em negativa.

— Acho que é melhor esperar as contrações ritmarem.

E falando nelas... Eu me inclino imediatamente, numa tentativa de minimizar a dor. E que dor!

O que começa como uma cólica leve vai se acentuando. Fecho bem os olhos e me concentro em inspirar e expirar, porém até respirar dói. Peeta me ajuda a me sentar de novo.

— Katniss, você está bem? — questiona ele lentamente e com toda a cautela. Assinto. — Ainda sente dor?

— Já passou — admito, com um arquejo.

— Tem certeza? — pergunta de novo e confirmo. — Ótimo — diz, tentando manter a serenidade. — Vamos?

Peeta estende o braço para que eu possa me apoiar nele e andar devagar até o carro.

— Como você consegue ficar tão calma?

— Não estou calma — resmungo, engolindo em seco.

Ele beija meus cabelos. Caminhar até o carro não é incômodo, a princípio. De qualquer modo, vou lentamente, já que a última contração me mostrou que as próximas vão deixar de ser apenas desconfortáveis e se tornar cada vez mais dolorosas.

— Vou acomodar você no banco traseiro, pois é onde há mais espaço para se movimentar.

— Tudo bem, mas acho que a próxima contração ainda vai demorar — opino.

No entanto, eu me encontro bufando de dor muito antes de chegar em nosso destino. Uma grande contração me faz contorcer o meu rosto. Um grito desponta em minha garganta, porém consigo detê-lo.

— Tem certeza de que não quer voltar ao hospital? — pergunta, enquanto o carro passa por um buraco na rua e chio de dor.

Nego rapidamente com a cabeça e continuo minha respiração soprada.

Pelo retrovisor, Peeta me olha nos olhos, lamentando-se em silêncio pelo fato de não estar se portando como o mais perito dos motoristas. Em geral, ele dirige muito bem, mas está bastante ansioso para chegar à nossa casa.

— Desculpas — suplica ele. — Quer que eu pare?

— Sim — murmuro só com os lábios, sem fôlego.

Apesar da minha resposta afirmativa, ele pisa no acelerador. Num sobressalto, gira o volante e invade com duas rodas a calçada da estrada deserta, freando bruscamente até o carro parar.

Estou lutando com a dor em meio a tudo isso, com as mãos segurando minha barriga protetoramente, e não sei se meu corpo está tenso por causa da contração ou devido ao choque.

— Katniss, você está bem?

Peeta ri de nervoso, e muito aliviado, quando olha pra trás e vê que nada de ruim aconteceu.

Enfim, relaxo e solto o corpo outra vez no banco do carro.

— Se queria fazer um teste cardíaco antes do parto, acho que passei…

— Errei o pedal. Fiquei apavorado ao ver você se contorcendo de dor.

— Hoje posso dizer, sem medo de exagerar, que quase tive um filho por andar de carro com você.

— Então, você está me agradecendo por acelerar o trabalho de parto?

— Quase isso.

— Não acredito que coloquei a vida de vocês em risco.

— Na verdade, você estava indo bem devagar. Foi só o susto com o solavanco mesmo.

— E não acredito que você não está berrando comigo.

Respiro fundo, tentando me manter manter gentil e razoável.

— É parte de um propósito — digo e ele faz uma expressão de curiosidade. — Sempre me lembro de você e da minha mãe dizendo que a Annie enfrentou o parto com muita dignidade. E ela própria me disse que você a ajudou muito a recepcionar o Finn da forma mais respeitosa possível. Então, estou tentando não gritar e não praguejar.

— Katniss, você não é a Annie. E isso é maravilhoso! Se quiser esbravejar, não há nada de errado nisso. Cada um tem a sua forma de expressar a dor que está sentindo... E a Annie apertava bastante meus dedos.

Sento-me na beirada do assento para alcançar a mão dele. Deposito um beijo em sua palma.

— Não consigo imaginar viver esse momento sem você — reconheço e, no mesmo instante, a minha memória e a de Peeta encontram a ausência de nosso amigo Finnick no nascimento do próprio filho.

— A partir de agora, não pretendo deixar você um minuto sequer, Katniss. Você não vai me expulsar, vai?

— Peeta, vou precisar da sua mão para esmagar durante o parto.

Peeta entrelaça nossos dedos com todo o cuidado, como se eu fosse quebrar a qualquer momento, sem aviso, ou talvez como se eu fosse quebrar a mão dele. Com aviso.

— Gritar também é uma opção. — Ele sorri de lado.

— Posso até gritar, mas não vou praguejar.

— Ótimo! Gritos liberados. Dignidade mantida. — Peeta se vira para frente e apoia aos mãos no volante. — Vou dar a partida novamente. Pronta?

— Você já se lembra onde é o freio e o acelerador?

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Peeta estaciona o carro em frente à nossa casa e Greasy Sae está atravessando o portão de entrada da Aldeia dos Vitoriosos.

— Greasy Sae! — Peeta chama, quando já está me auxiliando a sair do carro, e ela se aproxima do veículo.

— Vim justamente fazer uma visita a vocês.

— Veio na hora certa. A bolsa da Katniss estourou.

A expressão de alegria que ela faz é algo que vou estimar para sempre.

— Só me digam como posso ajudar.

Peeta descreve rapidamente quais os planos dele. Telefonema para minha mãe, banho, almoço, malas, aviso aos amigos e à sua equipe na padaria, espera para o trabalho de parto engrenar, ida ao hospital.

Greasy Sae ouve tudo calada, enquanto me escora até a sala-de-estar.

— Avisarei a todos, só me deem a agenda de telefones. E não vou chamar sua mãe agora. Ela precisa descansar. — Greasy Sae ergue a mão antes que Peeta proteste. — Katniss, você deveria dormir um pouco antes de, você sabe, trazer sua bebê ao mundo e, Peeta, você tem que respirar fundo e desacelerar.

Peeta obedece ao comando dela, puxando o ar e soltando, em meio a uma risada.

— Não sei se vou conseguir dormir, por causa da dor.

— Minha querida, o parto é uma boa hora! Pela minha experiência, só posso dizer o seguinte... Fique amiga da dor, pois é através dela que sua filha virá ao mundo. E não é só o Peeta que precisa respirar fundo. Você também. A respiração é que vai ajudar você a se desligar de todo o resto e se concentrar no que realmente importa. E não reprima o seu desejo de chorar ou gritar — orienta a senhora e Peeta olha de esguelha para mim, para confirmar que ouvi o conselho que ele já havia me dado.

A partir de agora, mantenho essas coisas muito claras na cabeça: que é preciso me concentrar muito na minha respiração, pois será o fio condutor de todo o processo, e que a dor faz parte desse processo, mas é possível administrá-la ou, como disse Greasy Sae, ficar amiga dela e ter liberdade para expressar a intensidade do que sinto, chorando e gritando, se preciso for.

Peeta não é inteiramente obediente a Greasy Sae e já está correndo pela casa atrás de agenda, papel e caneta para entregar a ela. Greasy Sae se prontifica a telefonar para todos e a preparar algo leve para eu me alimentar mais tarde, mas ordena que Peeta tome uma ducha relaxante e se junte a mim num cochilo também. E nossa velha amiga não deixa margem à negociação, nem mesmo quando ele propõe fazer a massa do pão preferido dela.

Então, Peeta me ajuda a tirar o vestido para uma chuveirada. Após o banho, observo meu ventre avultado.

— Você poderia facilitar para a mamãe, Willow — diz Peeta, com a boca colada em minha barriga. — Assim, ela não vai destruir meus dedos.

Prossigo a conversa com nossa filha:

— O mundo aqui fora não é sempre acolhedor como a barriga da mamãe, mas acho que você vai gostar da nossa casa, do seu quarto. Seu pai pintou a Campina, com muitas flores, borboletas e um salgueiro — balbucio carinhosamente. — Sabia que eu e seu pai temos um livro de memórias? Você fará parte dele. Espero que possa escrever uma bela história, a mais linda de todas, a história da sua vida, esta que você já começou a escrever... Estou muito feliz, porque você está quase chegando pra encher ainda mais nossas vidas de amor e alegria.

Peeta sorri e me entrega um vestido confortável. Depois, ele me cobre com um lençol quando me deito na cama.

Tiro um cochilo. No entanto, desperto em busca de ar, certa de ter ficado sem ele — ou de ter perdido a habilidade de mantê-lo dentro de mim.

— Estou aqui, Katniss.

Então, o ar me atinge, enchendo meu peito. Dentro, fora. Dentro, fora.

É o Peeta, ele está aqui, deitado à minha frente. Beijo seus lábios por um longo tempo. Com dificuldade, sento-me na cama, minha mão na dele.

— Já vai se levantar?

— Preciso me movimentar um pouco. A sensação é de que estou deitada nessa cama há cinco anos.

— Permita-me!

Peeta se põe à minha frente e me apoio em seus braços para me erguer.

Ele delicadamente afivela um relógio em meu pulso esquerdo.

— Para monitorar os intervalos entre as contrações — explica.

— A última coisa em que vou pensar entre uma e outra é em ver as horas.

Peeta me abraça por trás, com suas mãos sobre minha barriga.

— Então, serei seu relógio. E ainda vou oferecer minha mão para você esmagar.

Ele gira as palmas das mãos para cima, nas quais apoio as minhas.

— Assim está melhor — concedo e me viro para ele. — Sabia que, quando apertamos as mãos pela primeira vez, achei sua mão tão sólida e quente quanto aqueles pães que você jogou pra mim? Você me olhou bem em meus olhos e apertou minha mão com o que parecia ser uma confiança absoluta. Ou talvez fosse apenas um espasmo nervoso.

— Talvez uma mistura de vários desses fatores. O nervosismo e a confiança de que protegeria você com a minha vida.

— Eu amo você — sussurro. — E amo as suas mãos.

— Eu amo você da cabeça aos pés. — Ele se inclina para a frente, beija-me suavemente e me aninha em seus braços.

Ficamos assim, embalados pelo som de nossas respirações, em silêncio, pois palavras não são necessárias. Mais unidos que nunca. Pela nossa filha, pelos anos que teremos pela frente, como uma família.

Por dentro, meus desejos se misturam. Quero que o tempo pare e imploro ao mundo que nos deixe estar aqui, assim, mas também quero que as horas se acelerem e que a grande mudança que sempre temi e que agora anseio aconteça logo.

— Docinho?

O chamado de Haymitch vem do corredor e rouba o momento, mas como é bom ouvir a voz dele.

Sorrindo sob a soleira da porta, ele nos dá um breve aceno de cabeça.

— Greasy Sae pediu pra avisar que sua mãe já está a caminho. Ela também fez um caldo de abóbora pra você — informa.

— Estou faminta.

— Mas comi tudo — brinca Haymitch.

— Sem graça.

— Vou guardar distância, lindinha, pois temo pela minha integridade física, se permanecermos muito próximos enquanto você entra em trabalho de parto.

— Pode confessar que é porque existe um coração mole batendo no seu peito.

— Talvez... Mas estarei por perto, celebrando a chegada da Willow. — Apesar da brincadeira, identifico a preocupação velada e a emoção em seu jeito de falar.

— Obrigado, Haymitch — agradece Peeta.

— Que seja bem-vinda a pequena Faísca! — Haymitch simula o gesto de um brinde no ar, às gargalhadas, e nos deixa a sós novamente.

Não respondo nada, pois uma contração me toma de assalto. A primeira coisa que faço é segurar firmemente as mãos de Peeta.

— Você realmente estava falando sério sobre esmagar minha mão, não é?

— Se a tendência da dor é piorar, diga adeus a seus dedos inteiros.

— Eles são meu instrumento de trabalho!

— Não por muito tempo.

— Tudo bem! — Peeta ergue as mãos e olha para elas com um ar penalizado. — Só estava checando a informação… Agora preciso alimentar vocês.

Ele vai até a cozinha e me traz uma tigela do caldo preparado por Greasy Sae.

Depois de saciada, novamente me deito. A partir de então, Peeta cronometra tudo. A duração das contrações e o intervalo até a próxima.

Minha mãe chega e se senta na beirada da cama, conversa comigo e com a Willow, acariciando minha barriga, enquanto conta as contrações. Finalmente, mede a dilatação. Dois centímetros.

Ela calcula que o processo vai longe. A previsão é de que a bebê nasça só à noite mesmo. Respiro fundo e juro a mim mesma que aguentarei firme.

Greasy Sae me oferece água, pergunta se tenho fome, mas eu, tal qual um bicho aninhado, não gosto da ideia de me mexer muito e sair da posição em que estou. No entanto, minha mãe me ensina que me movimentar e andar podem ajudar a bebê a descer e a dilatar o colo do útero.

— Ouça o seu corpo e mude de posição sempre que sentir que ficará mais confortável.

Brinco com as posturas e as respirações enquanto fluem os minutos. Eu me levanto e me sento, caminho e paro. A todo instante sinto câimbras, pontadas, pressão. É perceptível a urgência da Willow em sua chegada. Assim é até o início da tarde.

Aproveito os lapsos entre uma contração e outra para relaxar e descansar. O tempo avança e as contrações ainda permanecem irregulares, mas já incomodam muito mais do que antes.

Minha mãe explica que a Willow está se encolhendo do lado direito do útero, a fim de liberar a circulação da artéria aorta para facilitar o trabalho de parto. Eu me emociono com a perfeição da natureza.

As contrações aumentam e exigem outras posições do meu corpo, que está esperando para dar o máximo dele para minha filha. Eu me sinto preparada, física e emocionalmente, mas também me sinto temerosa.

Invencível e vulnerável, tudo ao mesmo tempo.

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Decido me preparar para sair, porém levo ainda alguns instantes para deixar o quarto. Não parece certo.

Os intervalos entre as contrações vão diminuindo. Vinte, quinze, dez minutos. E elas se intensificam quando começo a me aprontar para ir ao hospital. É desconfortável vestir roupa, calçar sandálias. Sinto os incômodos naquele momento como que querendo impedir meu corpo de se movimentar rumo a parir longe do meu ninho, longe da minha casa.

Ouço as vozes de Elliot e Maysilee, vindas da cozinha, numa conversa animada com Greasy Sae, e eles perguntam por mim. É a minha deixa para tomar coragem e sair.

Atravesso a porta do quarto de hóspedes, com a ajuda de Peeta, e Dandelion enrodilha-se em meu pé direito, tornando-se mais um obstáculo à minha partida.

Sigo arrastando o gato até a sala-de-estar. É quando ergo os olhos e vejo que, no parapeito da janela, os pequenos botões das prímulas se abriram. Em algum momento desse dia, elas floriram.

Justamente hoje. Prim. Minha irmã está comigo no momento em que mais preciso dela.

— Peeta, não vamos a lugar algum. Nossa filha nascerá aqui.

— Mas o que…

— Olhe pela janela.

— As prímulas desabrocharam!

Todo o seu rosto se ilumina ao chegar à mesma conclusão que eu e também pela perspectiva de permanecermos em casa.

— Se Prim estivesse aqui, ela estaria ajudando também — menciona Greasy Sae, visivelmente emocionada.

— Primrose... Ela está, sim — garanto.

Algumas lágrimas resvalam pelo meu rosto e nada têm nada a ver com qualquer dor. Peeta se aproxima sem perguntas e me abraça. Ele sabe o motivo do meu pranto e me sussurra ao ouvido:

— Agora sei que você não tem mais dúvidas.

Só então percebo que minha mãe havia saído do quarto e assiste a tudo. Ela também está com o rosto banhado em lágrimas. Suas mãos trêmulas tentam em vão diminuir o fluxo.

— Mãe... Greasy Sae... O parto será aqui. Posso contar com vocês? Tenho vocês e Peeta comigo. E Prim. Isso me basta.

— Se existe algo que faço questão absoluta é de ajudar a trazer minha neta ao mundo. Por você, pela Willow, pelo Peeta e, principalmente, por Primrose — anuncia minha mãe.

— Conte comigo, minha menina. Agora uma mulher, uma mãe! — Greasy Sae endossa.

— Também podemos ajudar — oferece Maysilee, para minha surpresa e emoção.

Effie e Haymitch sorriem orgulhosos.

Elliot vai até o lado de fora e traz para a sala-de-estar dois dos vasinhos com prímulas em flor. Em seguida, Peeta fecha as cortinas.

Tudo acontecerá em nosso lar. É um dia como outro qualquer para o mundo lá fora, porém, aqui dentro, nossas vidas estão mudando para sempre.

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Após a decisão de permanecer em casa, ficamos nós, lanchando e conversando.

Minha mãe fala sobre as novas preparações dela. Sae conta casos engraçados das suas gestações. Effie e Haymitch relembram histórias com os filhos. Peeta dá risada de tudo, enquanto ando, sento, agarro as costas da cadeira ou me curvo sobre a pia. Entre uma contração e outra, tento acompanhar a conversa.

Dandelion não sai do meu lado. Onde vou, ele vai atrás, miando. Parece que sabe que algo especial está acontecendo.

Peeta tem a ideia de orientar Elliot e Maysilee a fazerem uma massa de pão, enquanto ele serve de apoio pra mim.

Eu me sinto com dupla personalidade. Estou ótima, rindo, no maior papo com todos e, de repente, vem uma contração. A fisionomia se transforma, a respiração muda, o corpo se contrai, as mãos precisam espremer algo — principalmente as pobres mãos do Peeta —, a dor aumenta, aumenta, aumenta e... pronto.

A conversa continua de onde parou e seguimos em frente, pois, nos intervalos entre as contrações fortes, tudo volta ao normal. Sou outra pessoa. Sorrio e me tranquilizo.

Minha mãe acompanha tudo, de maneira tranquila e eficiente. Ela checa de tempos em tempos em qual posição a bebê está.

Na hora das contorções, Effie quase fura o chão de tanto andar de um lado para o outro, enquanto choramingo de dor. Lá pelas tantas, ela trina:

— Por favor, alguém dá uma anestesia nela!

Chego bem perto de dizer que nunca concordei tanto com sua opinião, porém me lembro de que tudo vai passar e de que é um processo necessário pra trazer minha bebê ao mundo de modo natural.

— Katniss está indo tão bem — pontua Greasy Sae.

— Então, dá uma anestesia em mim, porque não aguento mais!

— Estou bem — asseguro.

— Mas você não pode tomar nem um remedinho? — insiste.

Depois desse último questionamento, Haymitch faz o favor de levá-la para casa. Os gêmeos também vão com eles. A massa de pão que fizeram fica descansando, reservada para ser assada mais tarde.

A casa mais vazia é mesmo bom nesse momento. Até aqui, as contrações estavam perfeitamente suportáveis. No entanto, já não consigo uma posição que alivie a dor, só revezo entre me recostar na parede e me pendurar em Peeta. Não sei quanto tempo aguentaria sem começar a berrar e assustar Elliot e Maysilee.

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— Sinto muito, Katniss — lamenta minha mãe após me examinar. — Você ainda está com cinco centímetros.

— Estou com cinco centímetros há tanto tempo — resmungo e sinto Peeta acariciar meu cabelo suado. — Mas a sensação é de quinze centímetros.

Peeta começa a andar de um lado para o outro. Anda um pouco mais. Anda de novo. Quanto mais Peeta precisa andar pra lá e pra cá?

Cada vez que gemo de dor, ele volta pra perto, angustiado, esperançoso, sem absolutamente nenhuma ideia do que mais pode fazer para suavizar minha dor.

— Peeta, vá dar um passeio — digo, entre suspiros. — Eu amo você, mas não aguento mais sua aflição.

— Katniss, é difícil ver você em tanta agonia... Qual mão você vai esmagar?

— Talvez uma dessas toalhas sirva.

Não fosse o fato de ele ter me entregado logo uma das peças de tecido felpudo, eu poderia pensar que Peeta ficou magoado com a sugestão de substituí-lo por um pedaço de pano.

De qualquer maneira, ele vai para o corredor. E recomeça a andar. Peeta nunca foi um caminhante silencioso, de modo que sei que não foi passear muito longe.

— Quanto tempo tenho até a próxima contração? — pergunto à minha mãe.

Peeta assoma na porta, com os olhos nos ponteiros em seu pulso.

— Três minutos — comunica.

Sinto o início da contração mais cedo do que o esperado, o que é uma coisa boa, e me preparo para controlar a respiração. Agarro e torço a toalha, porém não é a mesma coisa.

— Peeta, volta aqui!

Rapidamente, ele está ao meu lado. Enquanto me inclino para a frente, apertando meu estômago, alcanço a mão dele, já estendida pra mim.

— Respire fundo — aconselha, contando os segundos no relógio. — Está quase no fim.

Concordo com a cabeça e suspiro, colocando minha cabeça no travesseiro lentamente, quando a dor desvanece.

— Acabou — digo. — Por enquanto, pelo menos.

— Você quer que eu pegue mais água? — Peeta pergunta.

— Isso seria ótimo — assinto e ele beija minha bochecha.

— Eu já volto — avisa.

Minha mãe espera Peeta sair e se acerca da cama.

— Se a dilatação continuar estagnada, é mais seguro irmos para o hospital, filha.

Por um momento, duvido de que conseguirei continuar sem alguma intervenção. No entanto, o pensamento se esfuma quando Greasy Sae traz o pequeno vaso de prímulas para a cabeceira da cama.

Confio no meu corpo e no trabalho que ele tem a fazer. Respiro fundo e me entrego de vez.

— O que posso fazer para ajudar?

Greasy Sae me encara. Seus olhos parecem cansados, no entanto também vejo neles uma força descomunal. Ela e minha mãe se entreolham, com a experiência de já terem feito isso juntas por muitas vezes.

Então, a velha senhora parte em busca do banco mais baixo que temos em casa, como o que minha mãe sempre levava com ela quando ia auxiliar um parto, desde que me entendo por gente.

Peeta traz a água pra mim e me ajuda a sair da cama. Greasy Sae encontra a banqueta que servirá para eu fazer alguns exercícios indicados por ela e minha mãe.

Agacho, levanto. Uma vez e outras mais. Apesar de ser algo bastante penoso, é como virar uma chave, para o meu corpo e o meu cérebro.

Poucas contrações depois, estou quase surtando de dor, mas alcanço seis centímetros de dilatação. O esforço é recompensado, pois vou de seis pra dez centímetros muito rápido.

De repente, tenho a famosa vontade de fazer força. Isso é sinal de que não falta muito.

Greasy Sae ajeita a cama para o parto. A melhor posição é sentada sobre uma montanha de travesseiros, que também apoiam minhas as costas.

Peeta fica ao me lado, sempre me dando suporte. A cada contração, dilacero os dedos de suas mãos.

— Você pode colocar os pães no forno, Peeta? — imploro. — A Willow estará aqui em breve.

— Não se preocupe com isso agora, Katniss.

Cadê. O. Aroma. De. Pão. Assado. Pela. Casa? — questiono pausadamente, em contraste com minha impaciência.

Peeta afasta os cabelos molhados do meu rosto e beija minha testa, fazendo um som de concordância.

— Já entendi. Willow vai ter tudo a que tem direito. — Peeta se afasta até a porta, para ir até a cozinha. — Volto logo.

E ele retorna depressa mesmo, bem a tempo de me sustentar num momento de cólica extrema.

Com Peeta sentado à minha frente, seu rosto ocupa minha visão, assim como meu coração é preenchido pelo amor que sinto por ele e por sua presença aqui, abrandando momentaneamente minha dor.

Meu corpo todo treme a cada espasmo. Posso sentir minha energia toda centrada no útero. Com uma profusão de hormônios atuando: ocitocina, prolactina, endorfina, adrenalina e não sei mais qual ina, começo a urrar de dor e de delírio.

Vivencio a diferença entre dor e sofrimento, os quais normalmente estão associados. Estou com muita dor, um dos maiores suplícios físicos que já senti — e não foram poucos —, porém não estou sofrendo.

Dor é uma definição objetiva, concreta, mas sofrimento é algo subjetivo. Já tive momentos sem nenhuma dor e muito sofrimento, enquanto hoje a dor é imensa, mas não sofro nada. Ao contrário, é a dor mais libertadora e mais prazerosa que existe. Sim, isso é possível.

De qualquer modo, nada havia me preparado para sua intensidade. Nenhum relato, nada. É algo que rasga por dentro. A cada contração — e o intervalo entre elas é cada vez mais curto — acho que não vou aguentar a próxima.

— Não vou conseguir — resmungo.

Greasy Sae fica na minha frente, com uma expressão pacífica e tão convincente, que realmente me fortalece.

— Já conseguiu. Está chegando ao fim.

No cômodo pouco iluminado, olho para minha mãe e a vejo serena, sem elevar a voz ou fazer qualquer movimento brusco. Sua entonação é tranquila ao me dizer:

— Agora é necessário fazer força de expulsão para suportar a dor das novas contrações.

— É hora de empurrar — pede Peeta em voz baixa.

Balanço a cabeça.

— Não consigo.

— Consegue, sim. Só preciso que você conte comigo e se deligue de todo o resto — prossegue ele.

Peeta continua falando em tom baixo, mas com firmeza, e isso é exatamente o que preciso. Ele não desvia os olhos dos meus em nenhum momento.

De fato, quanto mais me desconecto de tudo ao meu redor, mais fácil é enfrentar a dor.

Inicio a contagem das respirações — um, dois, três, quatro, cinco, seis — e tento mantê-las ritmadas e lentas, de forma que, quando chega na décima, sei que já está acabando a contração.

A contagem cria um transe. Engraçado que, mesmo com essa contínua marcação do tempo, não consigo precisar a passagem das horas e minutos, pois pra mim tudo se passa numa dimensão em que os ponteiros do relógio nada significam.

A dor atinge um nível absurdo. Já não raciocino mais. O corpo pede e faço força, porém acho que as coisas não estão progredindo. No entanto, ouço palavras de alento e incentivo, essenciais nesse momento.

Bebo muita, muita água. Acho que o suficiente para esgotar o reservatório de casa. Copos e mais copos, sempre repostos por Greasy Sae.

Uma, duas, dez contrações. Estou exausta.

— Peeta, faz massagem nas minhas costas, pelo amor à sua filha.

Seu toque é extremamente gentil, mas a reta final é muito difícil. Um desgaste imenso. Uma dor indescritível. Um intenso processo de entrega, sempre amparada por Peeta.

— Você está indo muito bem! Ela está encaixada, numa posição favorável. A descida dela está no tempo ideal! — Minha mãe me encoraja.

Parte do meu cérebro acha que é só pra me animar, porém todo o resto do meu corpo acredita com uma voracidade incrível.

— Calma, não briga com a contração. Pode se entregar! — recomenda Greasy Sae. — Respira.

Quando a dor chega, é difícil manter o foco e retomar o controle. Começa a bater uma ansiedade violenta, por mais que eu tente me manter calma. Isso piora quando o aroma de pão tostado se espalha pela casa e Willow ainda não nasceu.

— Alguém pode por favor desligar o forno? Senão minha filha vai nascer sentindo cheiro de pão esturricado! — reclamo.

Peeta não se abala. Ao contrário, começa a rir da nossa piada interna.

— É bom lembrar que a Willow só está aqui por causa de uns bons pães queimados — brinca ele e me desmonta.

Só Peeta pra me fazer rir em meio a toda a tensão que estou sentindo.

Greasy Sae atende meu apelo, mesmo sem compreender por completo nossas últimas frases, já que vai até a cozinha com ar de interrogação no rosto.

— Obrigada, Sa… — solto um ruído meio estrangulado, que poderia vir a ser uma palavra mas é um gemido em alto volume com a contração pungente.

Minha mãe me lembra de respirar.

— Quando a dor vier sem piedade, concentre-se na respiração.

Tento seguir o conselho, mas é complicado. Fico atordoada, sem saber se faço força, se puxo o ar ou se aperto os dentes.

Peeta ao meu lado inspira e expira em alto volume, para que eu possa retomar as respirações. Nos intervalos, ele sussurra palavras de alento no meu ouvido.

De vez em quando, nos momentos em que penso em me desesperar, Greasy Sae repete os incentivos, com uma voz baixinha e suave, totalmente diferente de como ela é numa conversa normal. Ela fala comigo de uma forma tão em paz e tão tranquila, que acredito e toco em frente:

— Calma, respira, está acabando! — repito pra mim mesma. — Coragem!

Minha mãe diz que Willow não está totalmente centralizada e pede para que Peeta faça pressão com a mão na lateral esquerda da minha barriga na próxima contração.

Dou o sinal e neste momento ela fala para eu e Peeta fazermos força. Willow está coroando! Outra contração e minha mãe continua:

— Vamos lá! Vocês três juntos…

Entre muita força, alguns dedos esmagados e uma dor tão intensa e, ao mesmo tempo, tão especial, ouço minha mãe dizer:

— Já posso vê-la!

Meu coração se enche de esperança. Tiro energia não sei de onde e tento aproveitar ao máximo a contração seguinte.

Somos eu, Peeta e Willow mais unidos do que nunca nesse momento. A bebê desce mais um pouco. Mais uma contração.

— De novo, os três juntos!

Minha mãe mantém as mãos em concha para receber a neta.

Quando parte do pequeno tronco da minha bebê escapa de dentro de mim, minha mãe me surpreende ao dizer:

— Você mesma pode puxar sua filha, Katniss... Vem amparar a Willow, Peeta.

Estendo as mãos e seguro seu corpinho quente por baixo de seus bracinhos agitados.

Enquanto Peeta apoia a cabecinha e o pescoço ainda sem firmeza, trago-a imediatamente para o meu peito, ainda com o cordão umbilical intacto e coberta de vérnix.

É tão maravilhosamente bom ter o Peeta diante de mim e presenciar os olhos dele encontrarem a Willow pela primeira vez.

E então... nada. Silêncio.

Até que acontece o primeiro suspiro carregado de ar, o choque nos pulmões e a sua reação ao contato com o mundo externo.

O véu da quietude é repentinamente perfurado por seu choro agudo. A melodia mais aguardada de todas.

Levei meses pensando no que diria neste momento, porém só consigo chorar, sorrir e agradecer:

— Obrigada, filha! Obrigada, meu amor!

Seu pranto é suavizado pelo primeiro toque, pelo beijo em seus dedos pequeninos, pelo enlace do abraço em seu corpo miúdo.

Não há palavras para descrever o que é segurar a Willow e ver e ouvir que ela nasceu perfeita e bem.

Qualquer resquício de dor desaparece, quando ela abre os olhos — lindos, azuis, como os do pai — e ficamos ali, examinando uma à outra, cheirando, tocando, totalmente alheias ao que está acontecendo no resto do cômodo.

Nasce a minha filha! E nasce uma nova Katniss, uma nova mulher. Renasço como mãe.

Peeta recosta a cabeça em meu ombro e Willow agarra seu polegar, quando ele acaricia sua mãozinha.

— Oi — sussurra Peeta, olhando para ela, sem conseguir proferir uma frase completa. Por fim, suas lágrimas rolam. — Bem-vinda ao mundo, Willow... Espero por você há tanto tempo! E você é mais linda do que jamais sonhei.

Nada atrapalha nossos primeiros instantes. Ficamos juntos, cansados, ofegantes. Mãe, pai e filha, recém-nascidos, catalogando nossas primeiras impressões.

Nesse momento, acontece uma profusão de registros. Exalo amor e emoção.

Willow fica aconchegada no meu colo, que será o seu abrigo e o seu refúgio enquanto eu viver.

Minha primeira sensação poderia ser de estranhamento, o que dizem ser absolutamente natural. No entanto, quando olho nos olhinhos da Willow, surge um sentimento intenso de familiaridade.

É como se eu já a conhecesse há muito, muito tempo. Como já pode existir tanta intimidade com essa criaturinha minúscula com pulmões tão potentes?

— Ela é perfeita — derrete-se Greasy Sae, cobrindo a Willow com uma manta delicada.

Corro os olhos pelo quarto, em busca da minha mãe, que ainda não havia falado mais nada.

— Mãe? Está tudo bem?

Minha mãe permanece em silêncio por alguns segundos, apenas sorri. É um sorriso cansado, mas que diz muita coisa.

— Ela é como você quando bebê, Katniss — balbucia finalmente. — Já auxiliei centenas de partos. Nenhuma emoção é igual a essa.

— Obrigada por estar aqui, mãe.

— Você não precisa agradecer. Eu sim, a vocês dois, por me trazerem de volta ao meu lar... E por me darem uma neta tão linda.

Minha mãe se aproxima, esquentando as mãos uma na outra para tocar as costinhas da Willow. Talvez o intuito inicial dela fosse apenas examinar a bebê e checar se está respirando normalmente — e ela realmente confirma a regularidade de suas respirações curtas, uma após a outra. No entanto, o que nos outros partos que ela auxilia é apenas um exame, hoje transforma-se num toque prolongado de amor, de oferta de carinho, de descoberta, de promessas. Cada subida e descida do minúsculo peito da Willow faz uma lágrima de alegria descer do rosto de sua avó emocionada.

— Eu amo vocês. Minha família — declara ela, fitando meus olhos, antes de se virar para Peeta. — Gostaria que você tivesse a presença da sua família nesse momento também, Peeta.

— Eu tive sim... O cheiro de pão pela casa. Herança do meu pai. Até posso ouvir as broncas da minha mãe por quase deixar a fornada queimar... E vocês, é claro, são minha família, que acabou de aumentar.

Quando Peeta termina de falar, Greasy Sae o abraça longamente. Em seguida, ela e minha mãe demonstram que é hora de nos deixarem um pouco a sós.

Greasy Sae anuncia que vai trazer algo para eu comer e minha mãe avisa que vai entrar em contato com a médica, para que eu e Willow sejamos examinadas o quanto antes.

Ambas saem do quarto no mesmo minuto e logo Peeta retorna para junto de mim.

— Posso? — pede ele.

Com todo o cuidado, entrego a bebê ao pai ansioso e admiro com um prazer imensurável a felicidade dele na primeira vez em que acalenta a filha nos braços.

Willow contorce o rostinho com intenção de chorar, porém Peeta emite um chiado suave que a acalma. No entanto, quem começa a chorar é ele próprio, acariciando com o olhar cada traço de sua face.

Por alguns segundos, Peeta olha pra mim.

— Eu amo você.

Meneio a cabeça para mostrar que eu o ouvi, mas minha voz é roubada no momento. Pela preciosidade desse instante. Peeta inala profundamente, então sussurra:

— Não tenho palavras agora.

Ofereço somente um sorriso em troca, porque também não tenho. Este silêncio é perfeito. É muito melhor do que palavras.

Hoje um pedaço de mim nasceu. Um pedaço de Peeta. Um inteiro de nós.

Nossa filha.

O amor que nasceu e me fez renascer e vai prosseguir comigo. Nas risadas gostosas, no cuidado incondicional, na presença calorosa, nas dificuldades também. É um sentimento tão significativo e transformador, que me ajuda a redescobrir a minha essência e quer trazer à tona o meu melhor.

Esse amor está em mim e é por mim também. Uma reconciliação comigo mesma, que tentei tantas vezes e falhei, mas que aconteceu hoje. 

E a razão disso tudo está arrancando sorrisos e soluços do pai, que agora captura um de seus pés diminutos para deixar nele um beijo afetuoso.

Peeta se senta diante de mim na cama e me devolve a bebê cautelosamente. Depois, une sua testa à minha. Eu e ele. E nossa bebê entre nós, nossa Willow.

A alegria de segurá-la nos braços me faz superar o terror que me consumia e que parecia tão velho quanto a própria vida.

— Nossa filha, Peeta... Nossa menina é a minha redenção.


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Notas finais do capítulo

Ufa! Depois dessa frase final, tenho uma sensação boa de dever cumprido.

Não se preocupem, pois pretendo continuar, quero continuar, mas, se não der... já fico muito feliz de ter chegado até aqui.

Agradeço muito a quem acompanha e incentiva. Cada capítulo publicado é uma pequena vitória pessoal (no caso desse capítulo: um parto!) e vocês me ajudam muito! 

Sem contar as inspirações... 

Foi na história da Fernanda em que me baseei para escrever as duas gestações perdidas e o final feliz da Delly, com cesariana, agulhas e tudo o mais!

A mamãe que plantou uma árvore no dia em que a filha nasceu se chama Cristiane.

Foi a gatinha da Laura que não saiu do pé dela durante seu trabalho de parto.

A passagem do capítulo sobre as prímulas que floriram foi inspirada no parto domiciliar da Rita, que viu um lírio se abrir num pequeno altar que tem em casa, horas antes do nascimento do filho.

Foi a Ana Paula quem recusou um “remedinho” e superou todos os medos e dores em seu lindo parto natural.

A mamãe que teve a ajuda do papai para empurrar a barriga no final do parto foi a Renata.

A emoção de pegar a bebê e puxá-la por completo para fora do próprio útero quem viveu foi a Suelen.

Agradeço a elas por compartilharem esses momentos únicos que tentei narrar aqui.

Obrigada a todas as mamães e parturientes que conheci... Esse capítulo tem um pouquinho dos partos de cada uma.

E obrigada, marido e filho! Por me fazerem viver as emoções desse primeiro olhar, desse primeiro cheiro, desse primeiro toque... O capítulo tem um muitão de nós também.

Beijos! Até o próximo!

Isabela.



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