A Redenção do Tordo escrita por IsabelaThorntonDarcyMellark


Capítulo 64
Gratidão


Notas iniciais do capítulo

Oi, pessoal!

Primeiramente, gostaria de agradecer as manifestações de carinho que recebi com a última publicação.

Dedico um agradecimento especial à FernandaG e à CherryGirl, que deixaram recomendações lindas! Agradeço demais o carinho!

Quanto ao capítulo… Nunca mais invento de escrever entrevistas!

Eu me confundo demais na sequência de perguntas e respostas e me perdi nas inúmeras referências que pretendia fazer às entrevistas de Peeta e Katniss com o Caesar… Tanto é assim que fiz ambos prometerem um ao outro que essa é a última entrevista que aceitam fazer na vida. O bom é que também prometeram que iriam se divertir e espalhar muito amor.

Acho até que exagerei. Overdose de amor na reta final da fic! ❤❤❤

Espero que gostem!



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Por Peeta

São quase dez da manhã e, daqui a algumas horas, eu e Katniss estaremos diante das câmeras para a entrevista com Caesar Flickerman.

No entanto, ainda restam alguns bons minutos até que alguém da equipe de TV venha nos buscar para irmos ao hotel, onde acontecerão as filmagens.

Eu e Katniss ainda estamos esparramados no sofá, comendo os pães de queijo preparados por ela, sem nenhuma pressa para começar o dia.

— E então? Já posso ser promovida à padeira?

Antes de fazer qualquer comentário, dou um longo beijo nela.

— Seu beijo é muito bom, Peeta, mas não livra você de responder à minha pergunta.

— Seu pão de queijo também é muito bom, mas você como padeira é uma ótima caçadora.

— Eu achei que havia acertado dessa vez.

— Você acertou! Como em todas as vezes — consinto e ela dá um sorriso descrente. — Só não quero misturar negócios com romance.

Estou preparado para beijá-la mais uma vez, quando ouvimos Dandelion miar junto à entrada da casa. O gato, que normalmente fica rondando junto de nós enquanto tomamos café da manhã, está agitado. Ele pula e avança sobre algumas sombras em movimento, formadas pelos raios do sol que se projetam através das frestas da porta, e estão sendo bloqueados de modo intermitente pelo que parecem ser os passos de alguém, também inquieto, do lado de fora.

Eu me aproximo do bichano e confirmo que há uma pessoa andando incessantemente para lá e para cá na calçada em frente à nossa casa.

Assim, com cautela, giro a chave na fechadura e torço a maçaneta, sob a observação atenta de Katniss.

Ao abrir a porta, do outro lado do batente, encontro Cressida, com os olhos fixos no chão, andando em zigue–zague enquanto tamborila os dedos na câmera pendurada em seu pescoço.

Ela se sobressalta quando Dandelion escapa, cruzando o pavimento e correndo próximo a seus pés, e só então ela percebe a porta aberta. Cressida não me encara de imediato. Seus olhos demoram a se elevar, porém, quando pousam em mim, é como ver apenas seu espectro por uma fração de segundos. E seu olhar diz a frase que seus lábios não estão sendo capazes de formular. Há algo que a está perturbando seriamente.

— Bom dia, Cressida. Está tudo bem? — pergunto e ela não responde. Então, insisto em ouvir alguma explicação sobre sua presença aqui, tentando não ser invasivo. — Já está na hora de irmos? Achei que fôssemos mais tarde ao hotel.

— Não, Peeta. Não está na hora ainda. Alguém da equipe deve estar aqui em quarenta minutos para levá-los. Eu… — Cressida titubeia. — Eu não deveria estar aqui.

Ela faz menção de se afastar.

— Entre, Cressida, por favor. Você parece aflita — pede Katniss, já ao meu lado, apoiando a mão em minha cintura.

Retribuo o gesto, dando um passo atrás, a fim de liberar espaço para a passagem de Cressida.

Mesmo relutante, ela ingressa em nossa casa e retira a correia da câmera de seu pescoço lentamente, virando-se para mim e Katniss apenas quando fecho a porta.

— Talvez seja um erro eu ter vindo aqui, mas não me perdoaria se não me desculpasse sobre o que aconteceu ontem.

Cressida deve estar se referindo ao fato de ela haver cortado a transmissão televisiva, logo após a chamada ao vivo comigo e com Katniss, quando o apresentador de TV fez uma piada sem graça sobre a possibilidade de nossa filha ser uma bestante.

— Não foi culpa sua, Cressida. Não havia como saber sobre a barbaridade que aquele apresentador diria — considero.

— Eu realmente não sabia, mas interrompi a transmissão. E vocês tinham o direito de resposta!

— Foi a melhor coisa que você fez. Nenhum de nós tinha condições de responder àquelas bobagens — argumenta Katniss. — Aquilo nos desestabilizou por completo naquela hora.

— Eu sei como é — externa Cressida.

— Sabe? — questiono, com genuíno interesse, não como uma afronta.

— Sei. Eu também fiquei sem chão. E gostaria de me explicar pra vocês.

Antevendo que ela precisaria de bastante tempo para expor sua versão dos fatos, eu a convido a se acomodar numa das cadeiras ao redor da mesa de jantar.

Katniss se afasta apenas para trazer até nós a bandeja que estava no sofá com os pães de queijo e se senta ao meu lado e de frente para Cressida, oferecendo as poucas unidades restantes à nossa visitante.

Cressida aquiesce e experimenta um deles.

— Esse pão de queijo está diferente — comenta ela.

— É um diferente bom ou ruim? — Katniss indaga. 

— Bom… muito bom.

— Viu? — A pergunta indignada de Katniss é dirigida a mim.

— Mas eu disse que está muito bom! — rebato.

— Falei algo errado ou perdi alguma coisa desse diálogo entre vocês? — Cressida questiona, já mais relaxada, e, em seguida, pega outro pão do tabuleiro.

— Foi a Katniss quem fez os pães hoje. Nessa última noite, eu fui a maior vítima dos pesadelos que temos desde os primeiros jogos.

Cressida cerra as pálpebras e abaixa a cabeça ao me ouvir falar em pesadelos. Quando ela abre os olhos novamente, reveza sua mirada entre mim e Katniss.

— Ontem Haymitch disse que vocês estavam bem, e que conseguiram se recuperar do choque das palavras daquele apresentador… Mas eu não fiquei em paz. Pra mim, o que aquele homem disse foi um gatilho. Nessas horas, entro em pânico e me sinto como um animal acuado, em constante estado de alerta, enxergando ameaças por todos os lados — confessa Cressida, triturando pequenos pedaços de pão com os dedos, até virarem migalhas. — Eu não vivi nem metade dos horrores pelos quais vocês passaram. Além disso, já faz tanto tempo… Ainda assim, sou assombrada por algumas recordações terríveis. A gosma preta e oleosa que jorrou pelas ruas da Capital. Túneis do subsolo. As mortes horrendas de Messala e Finnick. E, como não poderia deixar de ser, os bestantes. — Os olhos dela se desviam de nós ao proferir a última palavra, certamente se lembrando das insinuações ardilosas daquele comediante de quinta categoria, e seu punho fechado se choca contra a mesa, espalhando farelos pela toalha branca. — Não consigo me perdoar por ter impedido vocês de defenderem sua filha… Gale me falou que é uma menina. 

Sua tensão em razão do remorso e das lembranças aterradoras se dissipa drasticamente ao mencionar a nossa filha. E, só então, Cressida esboça um sorriso, que se espelha em mim e em Katniss. Lágrimas ameaçam rolar pelo rosto dela.

— Você não tem que se perdoar por nada. Esse sentimento de culpa é autodestrutivo — aconselho.

— Nós sabemos que estava tentando nos poupar de ouvir mais bobagens. E foi um reflexo. Como você disse, a palavra bestante funcionou como um gatilho. Em momentos assim, nossos instintos nos traem mesmo.

— Vocês sempre me surpreendem. São dois grandes exemplos e serão pais maravilhosos, tenho certeza. — Cressida respira fundo. — Agora eu já vou indo, porque daqui a pouco é hora de irem ao hotel. 

— Verdade, ainda temos que nos aprontar — concordo.

— Agradeço por terem ouvido meus desabafos — despede-se Cressida. — E, Peeta, acho uma boa ideia considerar incluir a receita da Katniss no cardápio da padaria.

Com uma piscadela cúmplice na direção da minha talentosa caçadora, que sorri triunfante, sentindo-se a própria padeira, ela nos deixa a sós.

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Gale e Cressida nos recepcionam na chegada ao hotel. Logo na entrada, há uma aglomeração de pessoas, na expectativa de assegurarem uma vaga no auditório para participar do evento de hoje. Dentre elas, encontramos Greasy Sae.

— Então, daqui a pouco vou confirmar o meu palpite sobre o sexo do bebê? — pergunta, quando se aproxima o suficiente para que ninguém mais possa escutá-la. — É uma menina, não é?

— Sae, você merece mesmo saber antes de todos — sussurro pra ela, em segredo. — Você acertou.

Um sorriso fica incrustado no rosto enrugado da nossa velha amiga, enquanto seu olhar amoroso vagueia até o ventre de Katniss.

— Mais tarde estarei lá no auditório para prestigiar vocês. Já garanti meu lugar!

— Obrigada pelo apoio — agradece Katniss. — E por ter ido ontem lá em nossa casa, depois do que aconteceu.

— Ah! Sinto muito que tenham passado por aquilo. — A senhora afaga os cabelos de Katniss. — Não consegui falar com vocês, mas fiquei feliz de prestar minha solidariedade. E também por encontrar esse rapaz bonito aqui. — Greasy Sae abraça Gale, quando ele se acerca a ela para deixar um beijo no topo de sua cabeça. — Foi ele que me salvou quando cheguei e me perdi aqui dentro desse hotel enorme.

— Greasy Sae foi parar lá no auditório — explica Gale.

— Isso mesmo! Entrei lá sem querer. O auditório do hotel está idêntico ao palco das entrevistas dos Jogos de que vocês participaram. Eu não sei se alguém mais teve essa impressão, mas, quando eu vi, tive até calafrios. — Greasy Sae sacode ligeiramente a cabeça e os ombros, como se quisesse afastar da memória algo bastante desagradável. — Se ontem já foi difícil pra vocês, hoje também não será tarefa fácil. Por isso, estarei aqui mais tarde e sempre, para o que precisarem.

Suas mãos enrugadas apertam carinhosamente meus ombros e ela acena em retirada. 

— E, ainda há pouco, estávamos falando em gatilhos — comenta Cressida atrás de nós, deixando claro que entreouviu as queixas de Greasy Sae a respeito da sensação ruim que lhe causou a semelhança da decoração do auditório com o antigo palco de entrevistas. — Nem estou autorizada a isso, mas, se optarem por checar tudo antes, faço questão de levá-los até lá agora mesmo.

— Eu prefiro ver — opina Katniss.

— Também acho melhor evitar qualquer impacto negativo na hora de subir ao palco.

— Eu dou cobertura — assegura Gale.

Assim, Cressida nos guia por alguns corredores ermos e Gale segue logo atrás, guardando alguns metros de distância. Subimos um lance de escada, que nos leva até a sala de controle de som e iluminação, ainda vazia, de onde se tem uma visão de todo o anfiteatro.

Eles, de fato, reconstruíram aqui o palco das entrevistas dos Jogos Vorazes. Não fiquei nem um pouco animado quando Plutarch mencionou isso ontem, porém não fazia ideia de que seria tão aterrorizante rememorar alguns dos momentos que precediam o início dos Jogos. E Katniss parece vivenciar a mesma angústia.

Quem pensa que lembranças não machucam tanto quanto ações está tão equivocado! Elas estão sempre presentes, mas algo assim tão concreto é bem perturbador.

Fico parado à porta e tento não me concentrar nos detalhes tão bem reproduzidos diante de mim, travando uma batalha perdida com o nó que se forma em minha garganta. Meus pés estão colados no chão acarpetado. Não consigo me mexer, até Katniss me levar pela mão, arrastando-me de vez para o passado.

Retorno cerca de quinze anos atrás, quando éramos tributos. Meu coração se acelera pela aflição que toma conta de mim. Eles reeditaram tudo com perfeição: os painéis com molduras iluminadas, as poltronas redondas sobre o piso espelhado, as almofadas estofadas com o mesmo vinil branco que cobria os assentos ocupados pelo entrevistador e pelos tributos.

— Uma década e meia sem Jogos Vorazes. A notícia da sua gravidez — enumera Cressida. — A maioria da equipe de TV concluiu que este seria o momento ideal para reviverem a 74ª edição dos Jogos. Tentei demovê-los da ideia, mas fui voto vencido.

Cressida segue falando, porém não absorvo muito das informações. Parece que estou revivendo a agonia de estar prestes a ingressar numa arena.

Isso me assusta, porque sei que provavelmente Katniss está se sentindo como eu e ela não passa por esses momentos sem sofrer. Sinto seu aperto em minha mão com mais força e eu respondo, segurando seus dedos mais firmemente também.

Seu olhar parece perdido enquanto passeia pelas minúcias do cenário, com uma mirada vazia e distante.

Ela não precisa me dizer nada. Não necessito perguntar nada também. Apenas ofereço meu abraço, meu ombro.

Cressida vem até onde estamos.

— Você está se sentindo bem? — Katniss acena que sim com a cabeça. De qualquer modo, Cressida tira um pequeno pedaço de tecido do bolso e enxuga o rosto dela. — Espero ter ajudado a evitar o choque de ver esse cenário apenas na hora da entrevista.

— Ajudou bastante — reconhece Katniss.

— É melhor irmos agora — avisa Gale. — A equipe de iluminação já está assumindo seus postos no palco e logo alguém estará aqui.

Olho de relance para Katniss, que sorri fracamente para mim, todavia é o suficiente para meus batimentos cardíacos recuperarem seu ritmo normal.

O passado nunca vai deixar de nos assombrar, porém temos um ao outro. A melhor coisa que esse passado me proporcionou. E temos a Willow.

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— Caesar vai conduzir a entrevista para que as informações que prendem a atenção dos telespectadores sejam divulgadas no momento certo. Ele sabe fazer isso melhor do que ninguém — elogia Plutarch, empolgado, e Caesar abana uma das mãos, como se dispensasse o comentário, porém sorri presunçosamente.

Depois de escaparmos do auditório sem que ninguém nos notasse, Fulvia nos interceptou e convocou a mim e à Katniss para um almoço com Plutarch e Caesar no restaurante do hotel. Nesse instante, estamos terminando a nossa refeição, ainda ouvindo as orientações sobre o que esperam de nós na entrevista.

— Que tipo de informações serão reservadas para o final? — questiono, torcendo para que a resposta não me dê uma indigestão.

— O sexo da criança e o nome que será escolhido.

— O nome já escolhido, na verdade — manifesta-se Katniss.

— Bem… Não foi exatamente o que planejei. — Plutarch pigarreia, sem nos encarar. — No mais, esperamos de vocês aquela típica troca de perguntas e respostas que são, ao mesmo tempo, hilárias e charmosas, além de algumas passagens emotivas para a plateia ir às lágrimas.

— Vocês querem que eu seja engraçada, encantadora e ainda faça o público chorar? — Katniss indaga, já impaciente.

— Acho que entendeu o espírito da coisa. Só preciso de mais simpatia em suas feições.

A sugestão faz Katniss ficar ainda mais emburrada.

— Katniss, não se preocupe. Você tem seus momentos! — exclama Caesar. — Quem é capaz de se esquecer de você girando no palco para se transformar na Garota em Chamas e no Tordo? É lógico que vou pedir para você dar algumas voltas hoje também. Em nome dos velhos tempos…

— Realmente vocês não se esqueceram de nenhum aspecto dos velhos tempos — retruca ela, com os olhos estreitos, e eu apoio minha mão na sua, na esperança de que não exponha nosso paradeiro de minutos atrás. — Que tal eu atirar uma flecha na direção de um antigo Idealizador dos Jogos, caso o público comece a ficar entediado?

— É disso que precisamos, Katniss! Dessa irreverência! — brada Plutarch, sem perder o bom humor. — Só preciso acrescentar ao cenário um porco assado com uma maçã na boca e uma tigela de ponche.

— Oh, não! Nada de flechas ou de qualquer demonstração das suas habilidades letais, meus caros — intervém Caesar. — É muito melhor entrevistar pessoas que não estão prestes a matar ou morrer.

— E posso dizer por experiência que é muito melhor ser entrevistado sem a ameaça de estar numa arena no dia seguinte — retruco.

As frases dos dois, mesmo ditas num tom descontraído, não chegam a amenizar o clima hostil já instalado. Talvez por serem sinal de insensibilidade e indiferença pelo que vivenciamos no passado. Ao menos, são suficientes para que eu e Katniss desistamos de argumentar, evitando um desgaste maior.

Numa troca de olhares, mesmo em silêncio, chegamos ao entendimento mútuo de que não é interessante nos perdermos em um debate com ambos. A conversa poderia passar a ter outro rumo — algo mais perigoso — e atrapalhar meus planos a respeito da mensagem final que necessito transmitir nessa entrevista, o propósito primordial em que nossa participação se tornou. 

Assim, eu e Katniss não mais os interrompemos uma única vez. Deixamos que tagarelem sobre todas as suas ideias e pretensões, enquanto acenamos com a cabeça e respondemos de modo monossilábico ocasionalmente, sempre que uma pausa na conversa exige.

— Não pretendo causar problemas, porém não prometo seguir à risca todas essas recomendações — adverte Katniss, ao final do bate papo.

— Honestamente, estava mesmo ansiando por esse comentário. Eu já deveria ter aprendido, Katniss, desde aquela ocasião no set de filmagens do Distrito 13, quando o Haymitch nos mostrou o quão equivocado eu estava ao tentar transformar você na cara da rebelião com frases prontas. Ele nos fez pensar em momentos nos quais você nos fez sentir algo real. Certamente, nunca foi uma frase ou um gesto sugeridos por mim… E foi assim, sem ouvir os meus conselhos, que você fez nascer uma revolução.

— O ideal mesmo é surpreender, principalmente a quem está conduzindo a entrevista — concorda Caesar. — E vocês dois sempre fizeram isso.

— Exatamente, Caesar. E, para isso, eu preciso que me dê uma chance de falar — apelo, encarando-o seriamente, com os lábios apertados, e espero que ele compreenda a mensagem implícita em meu pedido.

Ele considera minhas palavras e meneia a cabeça em concordância, escondendo pela primeira vez seu sorriso, que estava escancarado desde que nos sentamos à mesa com eles.

Em seguida, Caesar vira-se para Plutarch, furtivamente buscando sua aprovação, e este joga o guardanapo que está consigo sobre a mesa.

— Tudo bem. Está tudo acertado. Peço licença a vocês, pois há muito trabalho pela frente — diz Plutarch e se ergue, aguardando Caesar fazer o mesmo. — Eu gostaria de estar no lugar do Caesar para fazer apenas uma pergunta a você, Katniss.

— Por que não pergunta aqui? Pode ser uma ideia a ser usada no palco — sugere Caesar, novamente ostentando seu sorriso desmedido.

— Isso mesmo. Por que não? — Plutarch toma fôlego antes de lançar: — Será que estamos testemunhando a evolução da raça humana com o nascimento dessa criança? Pense nisso. Você também, Peeta.

No fim das contas, o questionamento é apenas uma provocação divertida. Katniss já me falou várias vezes a respeito da conversa que teve com Plutarch, quando estava prestes a retornar ao Distrito 12 depois do seu julgamento.

Na ocasião, Katniss havia lhe perguntado se ele estava se preparando para mais uma guerra e Plutarch respondeu que não, pois, naquele momento, Panem estava vivendo o período tranquilo em que todos concordavam que os horrores vividos jamais deveriam se repetir. No entanto, a princípio, Plutarch deu a entender que não acreditava que isso duraria muito tempo, já que o pensamento em prol do coletivo normalmente possui vida curta. Ao final da conversa, porém, ele concedeu à humanidade o benefício da dúvida, cogitando que, na verdade, estivéssemos testemunhando a evolução da raça humana.

Na minha opinião, já é um grande avanço poder criar minha filha sem a ameaça de que ela um dia seja levada para uma arena. Pena que toda a produção da entrevista de hoje tenha por objetivo rememorar que eu e Katniss estivemos, não só em uma, mas em duas arenas dos Jogos Vorazes.

Os dois homens dão alguns passos em direção à saída, mas Caesar se vira subitamente.

— Antes de ir — inicia ele. —, pensei em encorajá-los a mais uma daquelas declarações de amor, como na primeira entrevista do Peeta. Que tal ser a sua vez de abrir o coração, Katniss?

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Como tudo indicava, aqui estou eu, vestido em um terno preto com detalhes de chamas desenhados, exatamente como o traje que usei na entrevista da 74ª edição dos Jogos Vorazes.

Sem dúvidas, as vestes de Katniss devem seguir o mesmo estilo. Estamos dividindo a suíte presidencial para a nossa preparação, mas ela foi levada para a extremidade oposta do cômodo, separada da sala onde estou por um grande corredor.

Assim que Octavia me avisa que Katniss está pronta, vou até ela. Ouço as vozes dos outros membros da sua equipe de preparação vindo da copa.

Katniss está sozinha, diante da luxuosa sacada envidraçada. Assim como eu, ela usa uma reprodução da roupa que consolidou sua imagem como a Garota em Chamas. A única diferença é que a saia do vestido desce solta quase até o chão, partindo da cintura alta que acomoda a mais do que exuberante gravidez. No entanto, o tecido, a cor e os bordados são os mesmos.

Sua mão acaricia a barriga evidente, arredondada, crescente. Tento guardar cada detalhe desse momento enquanto caminho até onde está, sem que ela perceba. Bela de todos os ângulos e amada em todos os sentidos. Como eu lhe disse há alguns dias, Katniss grávida é a esperança personificada. É a coisa mais linda que eu já vi.

Isso dura alguns segundos, até que apoio minhas mãos em seus ombros tensos. Katniss salta um pouco para a frente, porém, quando olha para trás, parece mais tranquila.

— Esse modelo me faz lembrar do Cinna — revela.

— Você não precisa usar, se não quiser — pontuo, beijando sua bochecha. — Provavelmente, foram trazidos vários vestidos, caso este não servisse. 

— Não é isso. A memória do Cinna não me faz mal… Só me deixa triste. No fundo, a lembrança dele justamente hoje me traz o conforto que ele sempre me proporcionou nas entrevistas na Capital.

— Portia também tinha esse dom. Além do talento óbvio para as criações como estilista. Eles formavam uma bela dupla.

— Verdade.

— Então, a reação ao figurino foi positiva — faço uma afirmação, não uma pergunta, pois estou seguro disso.

Aperto meu peito contra suas costas e deslizo as mãos pelos seus braços até parar, invariavelmente, sobre seu ventre. Ambos olhamos para a extensão do horizonte do nosso Distrito. Daqui também é possível ver a multidão se encaminhando para a entrada do hotel e os telões instalados ao redor da cidade, para que aqueles que não conseguiram vaga no auditório acompanhem a entrevista.

A praça e as ruas que desembocam nela estão lotadas.

— Já está quase na hora de descer — deduz Katniss e há um tom de tensão em sua voz.

— Só para constar… Também não vou seguir nenhuma das orientações do Plutarch.

Katniss se vira para mim e sorri. Não havia sorrido de verdade desde que chegamos ao hotel.

Ela trava os braços em minha cintura e recosta a cabeça em meu peito.

— Não sei o motivo, mas saber disso me deixa muito mais calma.

A campainha do quarto ressoa. Deve ser Fulvia, para nos acompanhar ao auditório.

Katniss ergue o rosto e, mesmo que seus orbes brilhem ao me observar por alguns instantes, seu olhar se torna sombrio ao se direcionar à porta.

— Eu sei o motivo. É por causa da promessa que fizemos de proteger um ao outro. Sempre. Verdadeiro ou falso?

Ela avalia minhas palavras e, ao conectar novamente nossos olhares, surge em suas íris cinzentas a fagulha que conheço, esse fogo, essa determinação de enfrentar o que for preciso.

— Verdadeiro. Sempre.

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Depois de sair do quarto, só teremos alguns instantes até ficar frente a frente com a plateia, as câmeras e toda a Panem.

Encontramos com Effie e Haymitch na chegada do elevador ao térreo. Ele está usando um elegante fraque e Effie está reluzente, numa indumentária em que predomina a cor prateada.

— A produção tinha mesmo que fazer essa homenagem a vocês? — Haymitch rosna, apontando nossas vestimentas. — Como vocês permitiram isso?

— Acho que foi a melhor escolha — replico, até certo ponto na defensiva. — Já imaginou se eles nos fizessem usar os uniformes das arenas?

— Eu acho que estão perfeitos para a ocasião, nesses modelitos inesquecíveis! — avalia Effie.

— Sim, claro! É pra gente entender que a Garota em Chamas agora tem uma faísca dentro da barriga dela... Taí! Estava pensando em chamar essa criança de docinhozinho, lindinhazinha, mas, de agora em diante, ela será Faísca.

Como de costume, Effie ralha com ele, porém os gracejos de Haymitch servem para nos descontrair.

— Não creio que escolhemos um nome tão bonito para a nossa filha para, no fim das contas, você apelidá-la de Faísca, Haymitch — resmunga Katniss.

— Por isso mesmo, serei o tio preferido dela.

— Não duvido! — admito. — Algum último conselho?

Fiquem vivos — diz Haymitch, com uma piscadela. Sua velha piada para nós. — Brincadeiras à parte… Façam aquele apresentador pagar pela asneira que falou.

Ele nos abraça rapidamente e sou capaz de dizer que esse gesto é uma das poucas coisas que aprecio ao me lembrar do que passamos no Centro de Treinamento da Capital antes de nossas entrevistas como tributos.

Fulvia posiciona a mim e a Katniss lado a lado. Plutarch chega da direção oposta.

— Ainda lamento o fato de não aceitarem fazer a enquete com o nome do bebê. Estamos perdendo a chance de levar a nação ao delírio — alfineta. — É uma pena que o Caesar não sabe disso e ainda tem com ele uma singela lista de opções. E agora não dá mais para avisar a ele. Que situação!

— Você não desiste? — reclama Katniss.

— Prometi isso a alguns patrocinadores — finalmente Plutarch elucida o motivo da insistência. — Ninguém poderá dizer que nem ao menos tentei.

— Garanto que a história de como foi escolhido o nome vai comover todo o país — pondero, sem esconder minha chateação.

— Não tenho dúvidas! A entrevista já é um sucesso de audiência. Agora… sorriam!

Katniss esboça um sorriso relutantemente. Eu nem isso consigo fazer. Pressiono os lábios e miro o chão, enquanto ele se afasta. Cinegrafistas ocupam suas posições ao nosso redor. 

— Só posso pedir desculpas por ter aceitado nos colocar nessa situação, Katniss. É lógico que ignorariam os nossos apelos para não levar essa enquete adiante, já que existem outros interesses por trás. Que péssima ideia! Nem começou e não vejo a hora de acabar.

Katniss apenas me espreita quando solto meus dedos trêmulos da mão dela. Finjo checar os botões do meu terno, na esperança de ocultar as emoções que se agitam dentro de mim.

Três minutos, pessoal! — O anúncio reverbera pelos alto-falantes.

— Peeta — num ímpeto, Katniss se vira para mim, abandonando a marcação indicada por Fulvia. —, sobre o que Caesar falou a respeito de abrir meu coração na entrevista. Nunca fui boa com as palavras como você, mas… vou tentar.

A confissão repentina é a injeção de ânimo que eu precisava para que um sorriso voltasse a se formar no meu rosto. A expressão de alívio de Katniss eleva o meu espírito ainda mais, como só ela sabe fazer.

— Afinal de contas, a ideia não parece mais tão ruim. Mas por que me contar isso faltando minutos para a entrevista?

— Foi uma tentativa de animá-lo. Quando a ideia de fazer a entrevista surgiu, era inegável o quanto estava empolgado em poder falar sobre a gravidez. Mas, com essa sucessão de coisas desagradáveis, vi sua alegria murchar.

— É porque eu estava preocupado com você.

— E eu fiquei preocupada com você.

— Então, vai mesmo abrir seu coração?

— Só se me prometer que essa é a última vez que fazemos algo assim.

— Só se me prometer que vamos nos divertir nessa última vez.

— Você tem minha palavra, Peeta.

— E ainda vou ganhar uma declaração de amor em rede nacional? Como fiz pra você na primeira entrevista?

— Acho que não pode faltar.

Um minuto! — O derradeiro aviso nos deixa alertas, porém sem nenhuma apreensão.

Afinal, toda a carga negativa que foi se acumulando em nós ao longo do dia se esvai completamente em nossa última troca de olhares. Pouco antes de Fulvia reposicionar Katniss para a nossa entrada, com meu entusiasmo renovado, retomo a mão dela na minha.

O auditório está abarrotado de gente. Por todo o país, os aparelhos de televisão devem estar ligados. O eterno apresentador dos Jogos Vorazes, com seu rosto excessivamente maquiado, seu cabelo tingido e seu terno cintilante, encaminha-se ao palco.

Caesar Flickerman usa uma réplica do traje cerimonial azul-marinho com milhares e minúsculas lâmpadas piscando. Além disso, como em nossa primeira entrevista, seu cabelo está azulado e suas pálpebras e lábios foram pintados com idêntica tonalidade.

Ele conta algumas anedotas sobre a visita dele ao Distrito 12 para aquecer o público, todavia logo dá início aos trabalhos.

— Cidadãos de Panem… Hoje é talvez um dos dias mais especiais na história das entrevistas que realizei — anuncia Caesar. — Há duas pessoas que todos conhecem muito bem. E uma terceira a caminho… Vamos receber: Katniss Everdeen e Peeta Mellark!

Ouvimos um grande aplauso quando damos os primeiros passos em direção ao centro do palco. Caesar beija os dedos de Katniss e aperta minha mão, antes de ocuparmos nossos assentos, ela no centro e eu na extremidade oposta ao entrevistador. Em seguida, ele assume um ar sério assim que o silêncio se instala.

— Peeta e Katniss, essa não é a primeira entrevista de vocês. Não preciso lembrá-los das circunstâncias que os trouxeram por dois anos consecutivos a um palco como este.

— Com toda honestidade, prefiro não me lembrar tão vivamente dessas circunstâncias. — Aponto para o cenário e para nossas roupas enquanto desabafo. — Mas, de fato, esquecê-las não é o melhor caminho. Precisamos garantir que elas não se repitam.

— De fato — admite Caesar.

— Além disso, as circunstâncias atuais são muito mais felizes — intervém Katniss.

— Que bom que mencionou… Eu sinto que a maternidade trouxe uma aura diferente a você. É ou não é verdade, pessoal? — Ele sacode as mãos para o auditório, em busca de anuência. — Quando você apareceu aqui no palco, meu coração quase parou. 

— Esse é um jeito sutil de dizer que estou enorme?

Muitos risos do público.

— Nem em um milhão de anos eu pensaria uma coisa dessas — desconversa Caesar, acenando para as câmeras. — Agora, Katniss — recomeça ele, em tom confidencial, fazendo um diminuto movimento circular com o dedo. —, o que você me diz sobre dar uma voltinha com essa roupa?

Estendo meu braço como apoio para Katniss, querendo incentivá-la com minha ajuda para se levantar, todavia nem é necessário. Ela se ergue espontaneamente. 

— Olhem só pra isso! — Katniss exibe seu ventre avantajado.

Fico de pé ao seu lado e uno nossas mãos acima de sua cabeça, para guiá-la numa pirueta, atendendo ao apelo de Caesar.

A audiência não se contém de tanto entusiasmo. Quando ela completa o giro, coloco um braço protetor ao redor da sua cintura. Todos estão aplaudindo quando Caesar aponta em nossa direção.

— Senhoras e senhores… Os amantes desafortunados!

Suspendo o indicador em discordância.

— Preciso fazer apenas uma correção, Caesar. — Sorrio orgulhosamente, mostrando a barriga de Katniss. — Eu me sinto afortunado agora!

Caesar espera que nos sentemos novamente para perguntar:

— Como você lida com tanta euforia do Peeta, Katniss?

Ela olha para mim e balança a cabeça ligeiramente, enquanto continuo com o maior dos sorrisos no rosto.

— Eu não o culpo. Ele está tão radiante por dizer que vai ser pai de…

— De um menino ou uma menina? — interrompe Caesar.

Toda a multidão emite um som de incentivo, mas o apresentador gesticula negativamente, silenciando a plateia.

— Vamos deixar para revelar o sexo do bebê apenas na parte final.

— Nós preferimos que não. — Agora sou eu que o corto, sem deixar de ser gentil, porém não oferecendo dúvidas de que eu e Katniss daremos o tom da entrevista. — Seria péssimo ficar usando palavras enigmáticas para não deixar escapar essa informação enquanto falamos dela. Da nossa filha.

As pessoas dão assobios de contentamento com a revelação.

— Ah! Pronto! Ele não esperou nem eu respirar e já contou — graceja Caesar. — Peeta, Peeta… Você não era assim. Sempre costumava deixar a informação bombástica para o final da entrevista.

— Quem disse que eu não deixei? — provoco.

— Ora, ora. Uma boa promessa! De qualquer forma, tenho que reconhecer que será muito melhor conduzir a conversa assim, já sabendo que é uma menina. — Caesar puxa uma salva de palmas. — O tão esperado bebê é uma menina! Ela é um milagre dos Jogos Vorazes!

— Eu não colocaria dessa forma, Caesar — protesto. — Parece tão… contraditório.

— Mas vocês são contraditórios! — pressiona ele.

— Exato. Nós estamos aqui, justamente porque os Jogos Vorazes deram errado — pontua Katniss.

— Ou porque finalmente deram certo! — Minha frase não tem a intenção de contradizê-la, apenas quero enfatizar tamanho paradoxo.

— Estou bastante confuso agora. — Caesar olha de soslaio para o público, simulando desorientação, com o antebraço sobre a testa.

— Então, para desconfundir, vamos apenas dizer que ela é o nosso milagre — sentencia Katniss.

— Um Pequeno Tordo a caminho, pessoal! — Caesar conclui.

Eu e Katniss nos entreolhamos e ela apenas suspira, a ponto de desistir de debater, todavia ele insiste.

— Não creio que vocês vão contestar isso também. — Caesar finge indignação, escondendo a boca espantada com uma das mãos.

— Não nos leve a mal, Caesar. Somente queremos dizer que a nossa filha é apenas uma criança, que não tem noção do que é uma arena ou uma rebelião — explica Katniss. — É claro que um dia ela saberá o que significa esse símbolo, mas, por enquanto, eu gostaria que o tordo, para ela, fosse apenas um passarinho, que possui um belo canto e consegue reproduzir as notas das cantigas que ouve.

— Ah! A inocência das crianças! Devemos mesmo preservar a candura da sua menina… Aliás, vocês já têm ideia de nomes pra ela? Podemos selecionar alguns para fazermos a enquete que toda Panem aguarda ansiosamente.

— Na verdade, não é necessário — comunico.

— É claro que vocês já pensaram em algo… Mas nada é definitivo, não é? Esperem até eu ler a lista dos nomes mais cotados. Já podemos abrir os canais para a votação, produção?

— Caesar, você acha que todos esses nossos amigos aqui conseguem guardar um segredo? — reproduzo a pergunta irônica que fiz na entrevista do Massacre Quaternário.

Um riso emana da audiência, o que indica que todos se recordam.

— Tenho certeza absoluta disso — diz Caesar, também repetindo sua resposta de anos atrás.

— Nós já escolhemos o nome — digo tranquilamente. — Aliás, nossa filha fez isso.

A reação da plateia é de perplexidade generalizada.

— Como é possível? — Caesar quer saber. — Já entendi. Vocês estão inventando isso apenas para fugir da enquete?

— Ela se chama Willow, Caesar — adianta-se Katniss.

— Willow? É… — Caesar faz uma pausa dramática. — É diferente. Pelo menos, não está na minha lista. — Ele checa o papel que retirou do bolso, depois o dispensa. — Vocês hoje estão impossíveis! Mais rápidos e certeiros que uma flecha da Katniss. 

— Seria muito interessante mesmo que todos pudessem participar dessa enquete, mas, por incrível que pareça, de certo modo, quem fez a escolha foi mesmo a própria Willow. Peeta não está inventando uma desculpa — confidencia Katniss.

— Vocês estão me dizendo que sua filha, que nem nasceu ainda, escolheu o próprio nome? Vamos lá, Peeta e Katniss… Como vocês o selecionaram?

— Nós apenas concordamos com a opção dela — prossigo.

— A sua afirmação dá margem a que pensem que a filha de vocês é uma criança, como posso dizer… especial.

Aposto que ele se segurou para não soltar a palavra bestante, em alusão ao episódio de ontem.

— Infelizmente, você tem razão, Caesar. Mesmo antes de expormos qualquer coisa a respeito de nossa filha, já circulavam teorias de todo o tipo sobre ela. Não quero nem imaginar os absurdos que podem surgir com esse episódio da escolha do nome da Willow. Uma história sobre um momento nosso, natural e simples, que seria um prazer compartilhar com todos, mas… — Encolho os ombros, em sinal de pesar.

— Você está certo, Peeta. E não se preocupe, nós voltaremos a tocar nesse assunto, com toda a seriedade que merece.

— Obrigado, Caesar.

— No entanto, o que gostaria mesmo agora é de ouvir sobre esse momento de vocês. Sugiro que todos escutem a história antes de formarem qualquer opinião… E essa dica vale inclusive para mim — observa ele. — Tudo bem?

— Espero que sim. Mas é melhor a Katniss contar.

— Tem certeza? — Katniss hesita.

— Sim. Vocês duas são as protagonistas da história — persisto.

Sons de solidariedade ecoam da plateia, porém ela ainda não aparenta estar convencida a falar.

— Tenham dó de mim! Estou me contorcendo de tanta curiosidade — lastima-se o apresentador, como se estivesse realmente sentindo algum desconforto. — Detalhes! Detalhes!

— Bem… Uma das estrofes da música de ninar que eu cantava para Primrose termina com essa palavra.

Então, Katniss narra o que aconteceu no dia em que a bebê chutava sua barriga a cada vez que ouvia a palavra Willow, enquanto ela cantarolava para acalmá-la.

Quando termina, há algo parecido com um burburinho coletivo de admiração, emitido pelas pessoas espalhadas pelo recinto.

— Ah! Essa é realmente uma bela história — enaltece Caesar e há mesmo comoção em sua voz. A multidão está murmurando em assentimento. — Vocês não iam adorar se Katniss cantasse aqui e desse uma amostra? — pergunta ele ao público.

Alguns gritos de aprovação são ouvidos. Permito que meus olhos se fixem em Katniss o tempo suficiente para ver que o rubor em seu rosto é indisfarçável. Sua boca fica quase aberta, numa mistura de surpresa e protesto, até ela encontrar meus olhos.

Após anos vivendo em total simbiose, Katniss e eu desenvolvemos incríveis habilidades de comunicação não-verbal. E meu olhar está dizendo para ela: divirta-se!

— E por que não? — Katniss concorda e, apesar do rosto afogueado pelo acanhamento, entoa os primeiros versos da canção de ninar.

Ela permite que Caesar apoie a mão no alto de seu estômago. Por um momento, as câmeras focalizam o olhar concentrado dele, até que, num sobressalto, ele confirma que a bebê reage ao ouvir seu próprio nome. Então, fica de pé.

— É oficial, Panem! Nenhuma enquete seria melhor do que a forma como o nome da Willow foi escolhido!

A audiência, que até então estava num torpor proporcionado pelo mais puro encantamento, irrompe num aplauso efusivo. 

Caesar torna a se acomodar de modo confortável em sua cadeira e olha para mim e Katniss durante um tempo.

— Posso fazer uma pergunta indiscreta?

— Claro, você pode perguntar o que quiser. Se poderemos responder, é outra conversa — rebato e um brilho de divertimento pisca no rosto de Caesar, que não se intimida e formula seu questionamento mesmo assim.

— Por que demoraram tantos anos para pensarem em filhos?

Apesar de fazer a pergunta para nós dois, Caesar se dirige a Katniss. Como sei que esse é um assunto delicado para ela, eu mesmo respondo:

— Demora é algo relativo, Caesar. Eu e Katniss estamos juntos por anos de cumplicidade, de amizade, de romance, de apoio mútuo, de lutas também. Anos que parecem bem mais, por causa da intensidade com que vivemos cada detalhe. Anos que parecem tão pouco pelo tanto que ainda quero viver ao lado dela. Sempre. E um pouco mais. Então, só posso dizer que nossa filha não veio cedo ou tarde. Veio no tempo certo.

— Você concorda, Katniss? — Ele quer mesmo ouvir a versão dela.

Busco em suas feições algum sinal de receio, algum reflexo de insegurança, porém seu semblante está tranquilo.

— Levando em conta tudo o que fez parte de nossas vivências, muitas perguntas são difíceis de responder e muitas posturas são bastante complicadas de se justificar. E isso influenciou muito o momento da minha decisão de aceitar a vinda de um filho. Eu pensava que seria uma das mais difíceis da minha vida, impossível até. No entanto, todo o tempo que passou tornou essa decisão possível. Assim, o que alguns entendem como demora, para nós, foi o tempo necessário para isso se tornar realidade.

— E a cada dia que a bebê cresce um pouquinho, faz tudo ficar ainda mais real. Essa espera, sim, eu chamo de demora! — Aproximo meu rosto da barriga ressaltada de Katniss e me dirijo à Willow enquanto falo: — Filha, não dê ouvidos ao papai e só venha quando estiver pronta. Eu me viro por aqui com a ansiedade!

— Você conversa com a bebê? — Caesar se espanta. — Que curioso!

— Todo o tempo. E ela é bastante comunicativa, com muitos golpes e pontapés dentro da barriga da mãe. Katniss que o diga.

— Então, diga, Katniss… O que é esse mergulho em gestar, em trazer ao mundo uma nova vida?

— Há um turbilhão de mudanças que chegam com um filho. Além das transformações visíveis no meu corpo, a gestação me deixa numa montanha–russa de sentimentos. Num instante, nada tira a minha paz e, no minuto seguinte, tudo me irrita. Choro de alegria e de tristeza ao mesmo tempo. É um momento de muita reflexão e de muitas descobertas. Algumas dores, desconforto e irritação também.

— E como o Peeta lida com esse furacão de emoções? E de reclamações também?

— Não é melhor perguntar para mim, Caesar? — indago, com a mão em meu peito.

— Estou tentando arrancar a tão esperada declaração de amor da Katniss pra você — confabula Caesar, utilizando uma das mãos para esconder parte de seu rosto, a fim de simular que esse é um segredo nosso.

— Ah! Sim! Não sou eu que vou atrapalhar seus planos. — Faço de conta que confidencio de volta, com a mão em concha, num tom conspiratório.

— Voltando ao que estávamos dizendo… Katniss, como tem sido o Peeta diante desses altos e baixos da gravidez?

Antes de responder, ela sorri para mim.

— Ele tem sido muito paciente, companheiro e, sobretudo, meio desorientado, a ponto de passar por tudo isso e ainda se dizer o homem mais feliz do mundo.

— É a mais pura verdade — afirmo, recebendo com bom humor o que ela acabou de dizer.

Katniss inspira profundamente e mantém os olhos presos em suas mãos.

— Caesar, um dos motivos pelos quais aceitei ser mãe é porque será com o Peeta. É somente com ele que me vejo renovando os ciclos da vida. Quero vê-lo abraçar nossa bebê pela primeira vez e, depois, rir e chorar de tão delirantemente feliz que estará. E quero vê-lo ninar a Willow, enquanto canta pra ela dormir e, mesmo que desafine um pouco, será a performance mais linda que um dia vou presenciar. Não consigo pensar em nada mais gratificante do que fazer dele um pai.

Beijo a pele descoberta de seu ombro e inspiro seu aroma.

— Quando penso que Katniss já me surpreendeu de todas as formas, ela se supera — professo.

A plateia se derrama em suspiros e aplausos frenéticos. Como se tivesse sido encorajada, Katniss para de observar as mãos e olha diretamente para mim.

— E eu ainda nem comecei.

Essa frase deixa até Caesar surpreso.

— Os meus planos finalmente estão dando certo! Certamente, queremos ouvir mais. Continue, Katniss — incentiva Caesar.

— Peeta é incrível de tantas formas. O coração dele é maior do que tudo. Suas palavras são sempre carregadas de encorajamento, consolo e carinho. Ele é feito de paz… Só não mexa com a filha dele! — Katniss ergue o indicador, num gesto de alerta, e todos acham graça. — É um excelente ouvinte e um conselheiro ainda melhor. Podemos contar com ele sempre. Sempre mesmo. A melhor pessoa que eu conheço nesse mundo. Ele é a manifestação viva do que é o amor e a bondade. E ele é o pai da minha filha.

O sorriso estampado na face dela é contagiante.

— Gostei dessa definição do Peeta! Como é mesmo? A manifestação viva do amor e da bondade — repete Caesar. — Eu ouvi de alguém da produção uma frase dita por você ontem, Peeta, que poderia virar um slogan.

— Sim. Eu disse que Katniss grávida é a personificação da esperança — profiro cada sílaba com a voz impostada.

— Interessante. Fale-nos o que você acha disso, Katniss.

— Acho que vou dividir esse título com o Peeta. Afinal, ele trouxe a vida de volta pra mim de tantas formas. E a mais linda delas, com certeza, está aqui. — Ela acaricia o próprio ventre afetuosamente. — Então, preciso reconhecer que, para mim, Peeta é a personificação da esperança.

— Não há dúvidas de que existem muitos motivos para isso — anui Caesar. — Agora, vamos sair do campo das ideias e partir para algo mais concreto. Como será a Katniss como mãe, Peeta?

— Perfeita. — Seguro a mão dela antes que proteste. — Para isso, ela não precisa acertar sempre. Uma mãe perfeita é aquela que aprende todos os dias, com seus erros e acertos, e jamais desiste — reflito. — Sabe, Caesar, custou um tempo para Katniss fazer essa declaração de amor em público, não é? No entanto, meu cotidiano é repleto de declarações de amor rotineiro, nas entrelinhas dos pequenos gestos de cuidado, de carinho. E não será diferente com a Willow.

— E o que você tem a dizer sobre o Peeta como futuro papai, Katniss?

— A Willow tem tanto a aprender com o pai. Ela vai aprender a lutar contra injustiças, a sorrir mesmo diante das dificuldades, a ser carinhosa com todos, a perdoar e a pedir perdão, a amar incondicionalmente, a sonhar acordada e a acordar para a realidade quando necessário, a abrir as janelas e a se encantar com o pôr do sol… E acredito que será uma aprendiz dele na padaria e no estúdio de pintura.

— A Willow é uma menina de sorte. E que a sorte esteja sempre em favor dela! — Caesar fica de pé e abre os braços. — Chegou a hora de fazermos uma breve retrospectiva da vida dos nossos vitoriosos.

Em vários telões espalhados pelo local são projetadas imagens de diversos momentos da nossa trajetória até aqui, inclusive algumas das capturadas ontem.

O intervalo é importante para checar como Katniss está se sentindo. Fulvia a acompanha até uma sala de apoio, no andar térreo mesmo, para que ela possa se preparar para a segunda parte da entrevista. Eu permaneço no palco.

Agradeço a Caesar pelo modo como está conduzindo a entrevista, desenvolvendo um diálogo fácil, alternando narrativas bem–humoradas com pautas mais emotivas. Também festejamos juntos o fato de Katniss ter cumprido as promessas de que se divertiria e de que faria uma declaração de amor.

Quando Katniss retorna, fica claro que estar aqui também não está sendo um fardo para ela, além da fadiga natural em seu estado. 

— Depois de rever tantos momentos marcantes de vocês, especialmente como um casal, preciso saber… Vai sentir falta de algo da vida sem filhos, Peeta?

— De um pouco de descanso, talvez. A Willow já demonstra ser uma criança bastante ativa e nada é tão simples na paternidade. Existe a necessidade de adaptação e muitos desafios. Mas o cansaço que vier será tão bem-vindo, que acho que nem disso sentirei falta.

— E você, Katniss?

— Na verdade, já estou sentindo falta da floresta, porém é algo apenas temporário.

— Imagino que você sentirá falta de algo mais. Afinal, o Peeta terá que se dividir entre as duas mulheres da vida dele. E isso não será temporário.

— Não! De fato, a Willow vai descobrir logo o poder do abraço dele. É um abraço que acalma e cura além do corpo, pois aquece a alma. A Willow simplesmente não vai querer sair do colo do pai. 

— Não precisa se preocupar em dividir. Quando ela nascer, na verdade, tudo vai se multiplicar! E, com toda a certeza, vocês duas vão caber no meu abraço, juntinhas — asseguro a ela, envolvendo-a pelos ombros.

— Que cena maravilhosa… Essa entrevista está soando como poesia aos meus ouvidos. Quem está de acordo? — Caesar indaga e os espectadores vibram em resposta.

— Estamos nos saindo bem? — questiono.

— Evidentemente que sim. Todavia preciso fazer perguntas mais polêmicas! — Caesar faz uma pose pensativa. — Já sei. Vocês querem mais filhos no futuro?

Eu e Katniss olhamos um para o outro, porém é ela quem responde:

— Ainda não pensamos em ter outros filhos.

Katniss se dirige a Caesar e, enquanto não estou em seu campo de visão, gesticulo exageradamente em negação, tentando mostrar minha oposição, e todos riem, inclusive o entrevistador.

Quando ela se vira para mim, interessada em saber a razão das risadas, dissimulo muito mal que estive quieto no último minuto.

— O que foi, Peeta?

— Nada não. Só queria acrescentar que podíamos arranjar um cachorro — invento uma explicação. — Para proteger a Willow… e os nossos próximos filhos.

Mais gargalhadas ao fundo e dois olhos cinzentos arregalados em minha direção.

— Finalmente, um ponto de discordância entre esses dois pombinhos! — Caesar bate uma mão na outra, provocando um estalo. — Sabem o que isso significa?

— Que somos pessoas normais? — Meu questionamento serve mesmo para demonstrar a obviedade da resposta.

— Precisamente! — Caesar comemora. — Essa entrevista foi mais uma prova de que a bebê de vocês não é e nem pode ser nenhum experimento científico. Que ninguém tem nada a temer. Devemos mesmo é celebrar a gravidez da Katniss, que sela a caminhada dos amantes desafortunados. Agora afortunados, não é, Peeta? — Ele me acotovela de modo divertido. — O amor do nosso querido casal será perpetuado com a chegada da Willow.

Com essa última declaração, Caesar dá o recado sem rodeios ao outro apresentador da emissora, que, com o propósito de fazer graça, insinuou que nossa filha poderia ser uma bestante.

No entanto, é perceptível a minha necessidade de também extravasar o que estou sentindo. Compreendendo a situação, Caesar se mantém no assunto que está nas mentes de todos desde a chamada ao vivo na tarde passada e que ele acabou de trazer à tona.

— Bem, Katniss e Peeta… Depois da aparição de vocês ontem na TV, muitas pessoas me pediram para colocar em debate o tema delicado que foi abordado logo depois que vocês saíram do ar. Pensei em mil modos de formular questionamentos, porém nenhum parecia adequado. Então, vou apenas deixar a palavra com vocês.

As pessoas no auditório balançam a cabeça em concordância com a decisão dele. Depois, as lentes focalizam meu rosto e o de Katniss.

Ela se vira para mim e fico tocado pela emoção que transparece em sua face. Seus dedos agarram os meus com força, como se toda a sua energia estivesse concentrada em me dar suporte para proferir as próximas palavras.

Seria quase impossível completar uma única sentença, se não fosse a coragem que me impulsiona a proteger e defender nossa filha.

— Não existem mais as arenas dos Jogos Vorazes — começo. — No entanto, ainda existem arenas de preconceito, arenas de intolerância, arenas de falsidade. Elas matam, tanto quanto os Jogos Vorazes. Aniquilam sonhos, destroem oportunidades e tiram vidas também. Não estou defendendo a censura, pois prezo muito a liberdade de expressão que conquistamos a duras penas. Defendo, sim, a tomada de consciência ao propagar uma notícia, principalmente se feita através de um grande meio de comunicação, por um formador de opinião. A sua liberdade de expressão, caro senhor, pode levar ao aprisionamento de outros indivíduos. E vocês sabem que me refiro às prisões sem grades, que talvez sejam o confinamento mais difícil de se escapar. Então, por favor, não siga adiante com julgamentos tolos, disfarçados de brincadeiras. Eu amo brincadeiras e quero ver minha filha dar muitas risadas com elas. Risadas sadias. Brincadeiras não machucam, não depreciam, não humilham, não perturbam a paz do outro. É algo que agrega e fortalece o vínculo entre as pessoas. Quando causa sofrimento, deixa de ser uma brincadeira para se tornar uma agressão, com consequências terríveis. Ninguém e muito menos nossa filha merece viver em um mundo onde isso ainda é admitido como normal e aceitável.

Tomo fôlego e, de olhos fechados, sinto um alívio imediato por ter desabafado sobre o que oprimia meu peito desde ontem.

Quando olho de volta para Caesar, noto que está sem palavras, pela primeira vez. O rosto de Katniss está banhado em lágrimas. 

As câmeras estão focadas nas pessoas e o silêncio delas é mais desconcertante e ensurdecedor do que qualquer grito.

De repente, o assobio de quatro notas flui por todo o auditório, levando consigo a atmosfera pesada que nos cercava.

Em seguida, as mãos das pessoas à nossa frente são levadas aos lábios e se levantam, com os três dedos do meio erguidos.

Repito o gesto, porém, em vez de encostar nos meus próprios lábios, toco os dedos no ventre de Katniss, como forma de agradecimento aos amigos pelo apoio demonstrado a cada instante, e aos aqui presentes, pelo respeito e consideração. Nada se compara à alegria e ao afeto demonstrados em seus olhares, à emoção única de revelar que minha filha é uma menina para as pessoas realmente próximas, com quem ela vai conviver.

Foi providencial que a entrevista acontecesse aqui no Distrito 12. A Willow é o meu tesouro mais precioso e estará cercada de pessoas que vão zelar por ela.

O sentimento que prevalece neste momento é a gratidão.


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Notas finais do capítulo

Meu sentimento também é de pura gratidão!

Não vou mais adiar o nascimento da Willow… Nem que o próximo capítulo fique gigantesco, está decidido que ela vai nascer!

Até lá!



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