A Redenção do Tordo escrita por IsabelaThorntonDarcyMellark


Capítulo 56
Atar e desatar nós


Notas iniciais do capítulo

Oi, pessoal!

Eu sempre lamento o fato de não poder desenvolver nesta fic cenas com um personagem tão querido quanto o Finnick. 

Então, neste capítulo, extravasei toda a minha vontade, com momentos muito especiais com o filho dele. ❤

Por fim, um aviso útil: preparem os corações e os lenços (para os mais sensíveis)... 

E deixo aqui toda a gratidão para a Belisa Mellark, minha irmãzinha do coração, que me deixou uma recomendação linda e emocionante!

Boa leitura!



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Por Katniss

— Tudo aqui é tão cinza! Vocês não ficam deprimidos com tanta falta de cor nessa Aldeia dos Vitoriosos? – Johanna repara, de pé na soleira da porta, depois de deixar a mesa do almoço. — A cidade reconstruída está muito mais alegre e colorida!

A casa está cheia. Eu e Peeta nos oferecemos para ficar com Elliot e Maysilee, durante a lua de mel de Effie e Haymitch. Além disso, hospedamos Annie, Finn, Johanna e Max, que já se preparam para ir até a estação de trem, pois a viagem de volta está marcada para daqui a algumas horas.

— Você tem razão! Nós poderíamos mudar isso. Ao menos a nossa fachada, hein, Katniss? – Peeta sugere.

— Eu adorei a ideia – concordo, lançando um sorriso genuíno em sua direção.

— Esperem um segundo – murmura Peeta, quase para si mesmo, colocando a bagagem de Annie ao lado da porta. — Que tal fazermos isso juntos, crianças? Acho que a Effie adoraria se isso inspirasse seu pai a fazer o mesmo na casa de vocês.

Peeta se dirige a Elliot e Maysilee, porém os olhos de Finnick também brilham com a proposta.

— Posso ficar para ajudar, mamãe? Eu nunca pintei uma casa antes.

Com o copo ainda pousado em seus lábios, Annie engasga com o suco, porém não sei se pelo pedido de Finn ou se pela última afirmação que ele fez. Afinal, a inocência e a espontaneidade das crianças são uma fonte inesgotável de frases encantadoras e engraçadas.

Finn estende a mão com um guardanapo para a mãe do outro lado da mesa, sem Annie precisar pedir, e ela se detém alguns segundos, segurando os dedos miúdos dele com ternura.

— Meu filho, a mamãe não pode adiar a volta pra casa. Eu assumi alguns compromissos e preciso estar no Distrito 4 amanhã mesmo. E nós... Nós nunca nos separamos antes.

Está explicado. O sobressalto de Annie teve como causa o pedido feito por ele. E é perfeitamente compreensível, pois há tanta cumplicidade, carinho e cuidado entre ambos, que é mesmo difícil imaginá-los longe um do outro. Eles se comunicam pelo olhar, pelo toque, pelo modo de sorrir.

— Você não pode mesmo, mamãe?

— Eu já precisei remarcar, por causa da mudança na data do casamento dos tios Effie e Haymitch. Não posso fazer isso de novo, meu amor.

Peeta e eu trocamos olhares e eu sei que ele concorda com o convite que vou fazer.

— Annie, ele pode ficar conosco. Eu e Peeta organizamos uma semana bem divertida com Elliot e Maysilee – oferto, apoiando levemente minha mão sobre o braço dela. — Prometo seguir todas as suas recomendações, para tentar cuidar dele exatamente como você faz. E faço questão de levá-lo ao Distrito 4 assim que Effie e Haymitch chegarem.

Finn comemora antes mesmo do aval de sua mãe e vejo pela expressão em seu rosto que ela não terá coragem de negar.

— Isso se eu não sentir tanta falta do meu peixinho a ponto de vir buscá-lo antes!

O pequeno desce da cadeira e rodeia a mesa, correndo até sua mãe em seguida. Suas cabeleiras ruivas se misturam no abraço que eles trocam.

— Você vai ficar bem, mamãe? – Finn pergunta, acariciando o rosto de Annie.

— Não se preocupe, filho. A mamãe vai ficar tão bem quanto você... Só vou sentir muita saudade do meu pedacinho de gente.

Enquanto Annie dá beijos estalados em Finn, observo Elliot e Maysilee encurvando os ombros e suspirando.

— Bateu uma saudade da mamãe – queixa-se o menino.

— E do papai – completa a irmã.

Para evitar que os resmungos se transformem em uma choradeira, Max graceja, usando o mesmo tom que eles:

— Também estou com saudades do meu papai e da minha mamãe.

— Mas você já é adulto, tio Max! – Maysilee se empertiga, abandonando o ar desolado.

— Deixe-me contar um segredo pra vocês. Às vezes, demora pra gente perceber, mas é quando as pessoas ficam bem assim do meu tamanho que descobrem que, conforme a gente cresce, o amor pelo pai e pela mãe cresce junto.

— Maximus, o seu papel aqui é fazer as crianças desistirem de chorar – Peeta comenta, divertido.

— Assim você vai fazer os adultos se debulharem em lágrimas! – Johanna avalia os olhos marejados à sua volta.

— Foi bonito o que o tio Max falou – Maysilee o defende.

— Foi mesmo? Obrigado, May! Agora me respondam... Já terminaram o almoço? Quero ver quem ficou bem forte! – Max exclama e as três crianças erguem as mãos com entusiasmo. — Fortes o suficiente pra carregarem a minha mala até a estação?

Os bracinhos levantados logo perdem a animação.

— Assim não, tio Max – reclama Finn, para a descontração geral.

— Muito bem, crianças, todos escovando os dentes, agora que terminaram de comer – peço e o pequeno trio deixa a sala rumo ao banheiro.

Annie vai supervisioná-los, enquanto Johanna e Max sobem as escadas para recolherem suas malas.

Retiro a louça da mesa para levar até a pia e Peeta me intercepta no meio do caminho.

— Achei legal o convite que você fez ao Finn... A cada dia eu descubro uma Katniss diferente e me apaixono por ela. Também. Mais uma vez. De novo. Pra sempre – ele sussurra as últimas palavras, pontuando com beijos no canto da minha boca.

Antes de sumirem do nosso campo de visão no alto dos degraus, Max e Johanna começam a implicar conosco, repetindo as palavras de Peeta, com algumas alterações propositais:

— A cada hora eu descubro uma Johanna diferente e me apaixono por ela.

— A cada minuto eu descubro um Max diferente e me apaixono por ele.

— A cada segundo eu fico me perguntando o que eu fiz para merecer isso! – resmungo, entre risadas.

— Para merecer o quê? Um marido meloso ou amigos maravilhosos como nós? – Johanna pergunta debochada. — Olha que eu digo, desmiolada!

— Não tenho dúvidas disso! – retruco.

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No caminho até a estação, Annie me faz mais algumas recomendações sobre Finn, além das anotações que deixou num papel. Depois, ela dá um longo suspiro e segura minha mão.

Não sou capaz de ocultar o remorso que sinto sempre que olho pra ela. Nós estamos alguns metros atrás dos outros e ninguém pode nos escutar. É a minha chance de desabafar.

— Eu nunca tive coragem de falar com você sobre a morte do Finnick – digo apreensiva.

— É muito difícil pra você também, Katniss. Eu sei... Principalmente porque você presenciou tudo. Lembrar-se do que realmente aconteceu deve ser muito pior do que apenas imaginar.

— Mas eu preciso falar sobre isso. Você precisa saber a verdade.

— A única verdade que me interessa saber é a que Finnick conhecia. E é a que está em seu coração e que move você. A prova disso é que vou lhe confiar a vida do meu filho por uma semana.

— Eu agradeço a confiança, mas...

— Katniss, sei que vai cuidar dele como se fosse seu próprio filho. – Annie joga essa frase no ar e não tenho dúvidas de que capta a tensão que brota em mim. — Você realmente não pensa em ter filhos, mesmo com a convivência com as crianças? Você é perfeita com elas.

— Annie, eu amo todos os pequenos, mas ainda não consigo... Quando penso neles, eu fico balançada com a ideia. Mas, quando eu penso em mim, desisto.

— Por quê? Estou deixando meu filho, que é tudo pra mim, sob seus cuidados, pois eu confio que ele estará bem... Muito bem.

— Annie, eu não entendo. Você tem todos os motivos para me detestar pelo que fiz. – Solto a minha mão presa na dela e envolvo os braços ao redor do meu tronco, desconfortável. — Eu o arrastei para uma armadilha feita pra mim.

Compreendendo ao que estou me referindo, Annie vai direto ao ponto.

— Você não o arrastou para nada. Finnick queria apoiar você e eu concordei com todos os passos que ele deu. E continuo concordando.

— Como você consegue? Você tem um filho que não pôde conhecer o próprio pai.

— Ele não conhece o pai do jeito que gostaríamos que fosse. Mas Finnick está presente nas coisas mais simples da vida dele e nosso filho o ama demais. E ama tanto você também.

— Você e Finnick ficaram casados por tão pouco tempo...

— Tempo suficiente para que ele deixasse comigo sua melhor parte. – Seus olhos pousam em Finn, sentado nos ombros de Max, que caminha alguns passos à nossa frente. — Nosso filho não preenche essa ausência que ficou. Cada pessoa é única e, a todo momento, eu queria que Finnick estivesse aqui do meu lado. O que alivia esse vazio é o amor... E ele pode assumir diversas formas.

Annie se vira para mim e sorri. Eu não sei o que falar. Nem se eu soubesse, o nó em minha garganta não permitiria que eu emitisse algum som. Então, apenas espero que ela prossiga.

— Quando descobri a gravidez, depois do que havia acontecido na Capital, eu fiquei sem chão. Mas não demorou muito, entendi que, de alguma forma, um pedaço do Finnick permaneceu comigo. Então, tive forças para recomeçar... Eu gostaria de dizer que as coisas vão ficando mais fáceis com o tempo, mas isso não seria verdade. Às vezes, sinto como se fosse uma ferida aberta ainda. E todo dia é um recomeço.

— Não há como voltar atrás. O passado não pode ser refeito.

— Exatamente. Assim como nunca saberemos o que ocorreria com o esquadrão, se vocês tivessem retornado ao Distrito 13, em vez de seguir pela Capital – Annie afirma com segurança. — Coin queria você morta, Katniss. Vocês estavam se esquivando de Snow, mas acabaram se protegendo dela também. Coisas piores poderiam ter acontecido! Então, como eu disse, tudo depende agora de recomeçar. No seu caso, talvez isso signifique perdoar a si mesma antes de tudo. Você nunca vai deixar de sentir aquilo que machuca, mas não pode permitir que isso a impeça de se abrir às oportunidades que podem surgir.

Nesse instante, somos interrompidas pelos gêmeos, que correm em minha direção.

— Tia Katniss! Tia Katniss! Será que podemos caçar na floresta hoje? – Maysilee pergunta, ansiosa, com a expectativa brilhando em seu rosto.

Os olhares das crianças viajam entre mim e Peeta, agora virado para trás, também aguardando uma resposta minha.

— É melhor irmos amanhã, pois podemos sair bem cedinho de casa e aproveitar mais.

— Bem que o tio Peeta falou – murmura Elliot desanimado.

— E hoje eu preciso da ajuda de vocês para procurar o Buttercup, que está sumido desde ontem – aviso.

— Vai ser tipo uma caça, mas sem arco e flecha? – Maysilee se empolga.

— Sim! E vocês podem pedir ao tio Peeta para preparar algo bem gostoso para ser o prêmio – incentivo e, então, ambos voltam correndo para tornar a dar as mãos a Peeta e a Johanna.

— Viu como você se sai bem? – Annie enfatiza, passando seu braço pelo meu, num gesto íntimo de familiaridade ao qual não estou acostumada, mas que aceito de bom grado, especialmente depois das confidências que trocamos.

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Ao chegar em casa com Peeta e as crianças, noto pelo segundo dia consecutivo que Buttercup mal comeu ou bebeu o conteúdo dos recipientes em que, todos os dias, renovo sua comida e sua água.

Desde pequena, observo a vida selvagem na floresta e aprendi que um animal em estado terminal entende que está mais vulnerável a predadores e, por isso, busca um lugar para morrer em paz.

Então, quando percebi que Buttercup estava se tornando cada vez mais solitário e procurando se isolar, conversei com Peeta e ambos buscamos orientação profissional.

Foi quando o veterinário nos explicou que é comum que, no fim da vida, o animal doméstico instintivamente se esconda em um cômodo pouco visitado, em baixo de móveis ou no quintal. Ele pode também se recusar a comer ou a beber, ficar menos ativo e perder peso.

Por isso, tenho tomado cuidado redobrado. Até providenciei uma cama quente e macia para o gato descansar, com cobertores extras para ficar mais confortável, porém não vejo nenhum rastro dele desde antes do casamento de Effie e Haymitch.

Então, volto a pedir às crianças para fazerem uma busca por ele pelos arredores. Enquanto acontece a brincadeira, Peeta prepara uma torta de chocolate para o lanche da tarde.

Depois que os pequenos caçadores percorrem cada canto da Aldeia dos Vitoriosos – sem sucesso –, eles voltam pra casa famintos. Então, eu arrumo a grande mesa no quintal de trás e peço para aguardarem ali, enquanto Peeta traz o bolo e eu pego o suco.

Ao me aproximar da porta entreaberta, carregando a bandeja com os copos e a jarra, verifico que a única que está sentada à mesa é Maysilee.

Finn está com minha aljava de flechas nas costas, segurando o banco onde Elliot está em pé, tentando alcançar meu arco na prateleira mais alta do armário que fica na varanda.

Os três estão de costas para a porta. Peeta chega atrás de mim e espreita por sobre minha cabeça.

— Olha só o que eles estão aprontando! – sussurra ele.

— Vamos ver onde isso vai parar.

Apesar da dificuldade, os meninos continuam firmes em seu propósito de pegar o arco.

— Tia Katniss vai brigar, Elliot! – Finn adverte o amigo.

— Ela não briga, não. Ela é muito legal – Elliot me elogia.

— Mas eu ainda acho que ela não vai gostar.

— Você pensa que a tia Katniss é tão brava assim?

— Não. Eu gosto muito dela.

— Eu vou ser a primeira a atirar, tá bom, irmão? – Maysilee não está participando da ação, mas já demonstra seu apoio à operação clandestina. — Eu adoro quando a tia Katniss me ensina a atirar flechas!

— E eu adoro quando ela sorri... Não aquele sorriso triste que às vezes ela me dá. – Finn suspira de modo melancólico. — Acho que é porque eu pareço muito com o meu pai.

Peeta apoia a mão em meu ombro, quando Finn menciona sua semelhança com o pai dele.

— Seu pai é tão feio assim? – Elliot pergunta, abaixando os braços e olhando para Finn, mais interessado agora na conversa do que em pegar o arco inatingível.

— Não! Nada disso! – Finn retruca indignado. — A minha mãe falou que meu pai era muito bonito e a tia Sandy disse que ele era garboso. – Ele estufa o peito e dá alguns passos para um lado e para o outro.

Meus olhos se enchem de lágrimas, porque ver o menino se mover daquele jeito é como ver Finnick se aproximando de mim para me oferecer torrões de açúcar em troca dos meus segredos.

— Deve ser por isso que a tia Katniss fica triste, então. Essa história de ser garboso não pode ser nada boa! – Elliot busca uma explicação.

— Eu não sei o que é isso – Maysilee pontua.

— Ser garboso é uma coisa boa, sim! Tia Sandy é bem velhinha e usa essas palavras antigas – justifica Finn.

— Então, qual o problema de parecer com o seu pai? – Maysilee questiona.

— A tia Katniss conheceu o meu pai. Ele morreu quando eu ainda estava na barriga da minha mãe.

— Quando a gente tá na barriga da mãe, nem dá pra ver o lado de fora... – Elliot pondera, coçando o queixo. — Você nunca viu seu pai, então, Finn?

— Não.

— Isso é triste mesmo. – Maysilee usa um tom compreensivo.

Finn faz menção de se virar e olhar para a porta e eu e Peeta nos afastamos rapidamente da fresta.

— Eles estão demorando com o lanche – comenta Elliot.

Um barulho de um objeto caindo me impulsiona a voltar a observá-los, mas aparentemente está tudo bem. Elliot apenas derrubou o bloco de rascunhos em preto e branco de Peeta. Finnick pega o caderno do chão para folheá-lo.

— São desenhos da tia Katniss. Ela é tão linda... – Ele passa os dedos sobre o papel. — Se não fosse casada com o dindo Peeta, eu ia me casar com ela! – Finn declara e Peeta sufoca uma exclamação de surpresa atrás de mim.

— Eu posso com isso? Um pequeno traidor dentro da minha casa! – ele cochicha por sobre meu ombro.

Eu o acotovelo para que fique quieto, tomando cuidado para não derramar suco na bandeja.

— Você não tem a menor chance. A tia Katniss ama muuuito o tio Peeta – Maysilee o desencoraja. — E você teria que acordar cedinho todos os dias pra fazer pão de queijo pra ela.

— E teria que aprender a fazer pinturas – complementa Elliot.

— Calma, pessoal! É só se ela não fosse casada com o dindo Peeta! Eu sei que ele ia ficar muito chateado.

— Mas aí eu caso com ele! E fica tudo bem... – Maysilee aponta uma solução.

Agora sou eu que me sobressalto e Peeta sopra um riso em meus cabelos.

— E com quem eu vou me casar? – Elliot se preocupa.

— Você pode se casar com a mãe do Finn, Elli! – Mais uma vez a menina apresenta o desfecho perfeito para os planos deles.

— Legal! Aí eu seria o seu padrasto, Finn! – Elliot engrossa a voz e faz uma imitação perfeita de Haymitch. — Finnick, Finnick, está na hora de dormir... Finnick, meu filho, coma tudo o que está no seu prato ou vamos nos atrasar.

— Isso não daria certo. Não mesmo! – Finn desiste dos projetos mirabolantes para o futuro.

— Já sei! Por que você não pede à tia Katniss pra ter uma filha linda como ela, Finn? – Elliot aconselha.

Respiro fundo, já aguardando o comentário de Peeta, depois que ele pigarreia baixinho.

— Agora sim, estou gostando dessas ideias das crianças...

Balanço a cabeça e, só então, abro a porta por inteiro, projetando a voz para disfarçar nossa espionagem, enquanto deposito a bandeja no centro da mesa:

— Hora do lanche, crianças!

Após colocar o prato com os pedaços de bolo ao lado da jarra de suco, Peeta aperta a minha cintura e pergunta, dissimulado:

— Finn, você tem algum pedido pra fazer à tia Katniss?

Por sorte, o menino não desconfia de que escutamos toda a conversa deles e responde sinceramente:

— Eu quero pegar o arco dela que está lá no alto!

— Ah, só isso? Tem certeza? Puxa... – Peeta protesta, mas Finn confirma com a cabeça.

Peeta estica o braço para apanhar o arco e, depois de entregá-lo ao afilhado, lamenta em meu ouvido:

— Escapou dessa vez, Everdeen.

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Os dias seguintes foram bastante movimentados para os nossos hóspedes, que se dividiram entre passeios à floresta e à casa do lago, idas à padaria para fazerem pães e confeitos com Peeta, e visitas aos amigos que têm no Distrito.

E, finalmente, tivemos o dia de hoje inteiramente dedicado à pintura da nossa fachada. Para a empreitada, contamos até mesmo com o auxílio de Leo e Luke, os filhos de Delly e Thom, e de Daisy, a neta de Greasy Sae.

Peeta já havia preparado a parede na manhã anterior com tinta comum branca e as crianças ficaram com a missão de colorir tudo com materiais próprios para eles manusearem.

O lado exterior da nossa casa se transformou numa enorme tela e, a partir de agora, Johanna não pode mais reclamar da falta de cores em nossa casa, pois é impossível que fique mais colorida do que já está, ao menos até onde a estatura das crianças permitiu.

Depois do jantar, eu e Peeta estamos exaustos pela intensa atividade do dia, mas os três artistas mirins esbanjam energia.

Então, Peeta liga a televisão num canal de música e todos nos colocamos a dançar e rir pelos passos deliberadamente desengonçados dos pequenos. Eu faço par com Elliot, enquanto Maysilee ensina a coreografia típica do Distrito 12 a Finn, que nos acompanha atentamente.

De repente, somos surpreendidos por batidas na porta. E a surpresa fica ainda maior, quando Peeta gira a maçaneta e se depara com Effie e Haymitch do lado de fora.

— Nós estávamos esperando vocês no final da semana! – espanta-se ele.

— Não aguentamos de saudade das crianças – Effie explica, abrindo os braços e abaixando-se para receber os filhos.

A dupla recepciona os pais com euforia e, depois de muitos beijos, abraços, distribuição de presentes e diálogos repletos de novidades, o cansaço vence a todos e Effie e Haymitch levam o casal de gêmeos consigo.

Não sei se é o sono, mas essa noite Finn está indo dormir bem cabisbaixo. O quarto ao lado do nosso, antes ocupado pelos três, parece muito maior agora que o deixo sozinho, com um beijo de boa noite em sua testa.

Não fecho a porta totalmente, para ficar atenta a qualquer ruído.

— Será que ele vai ficar bem? Finn não tem o costume de dormir sozinho – indago a Peeta assim que entro debaixo das cobertas.

— Bom... Nós perguntamos e ele garantiu que passaria bem a noite. Você também deixou uma lanterna na cabeceira e explicou que ele poderia bater em nossa porta a qualquer hora.

— Vou deixar a luz do corredor acesa.

Levanto-me para fazer isso e dou uma última olhada no menino. Observo seu peito subir e descer, num ritmo sereno.

— Está mais tranquila agora? – Peeta questiona quando me deito novamente, de frente para ele, que me encara com um sorriso travesso, penteando meus cabelos suavemente com as pontas dos dedos.

Eu poderia ficar horas olhando nos olhos de Peeta sem dizer uma palavra, admirando seu rosto bonito, mas eu ouço o som de passos.

— Escuta só. Finn deve estar vindo pra cá – Peeta observa.

No entanto, o ranger do piso se torna mais distante e fica claro que Finn está descendo a escada.

— Vou checar – aviso.

Visto um robe por sobre a camisola e ando pelos degraus silenciosamente.

Na sala de estar, está tudo escuro e o único indício de que Finn se encontra ali é o feixe de luz que sai da lanterna e se desloca pela parede.

Buttercup escolhe esse momento para reaparecer de seu esconderijo. Ele cheira Finn com desconfiança e depois se arrasta para o tapete, inclinando a cabeça para o lado e soltando um miado.

No entanto, o bichano vê o ponto iluminado que se movimenta perto da lareira e fica tentando pegá-lo, como naquele jogo do Gato Louco que fez sucesso no bunker antibombas do Distrito 13. A grande diferença é que o meu bravo felino agora não tem um terço da sua antiga disposição.

Quase solto um suspiro de alívio por ver o menino e o gato desaparecido brincando juntos, mas consigo me aproximar sem emitir nenhum som.

Finn continua a mover o facho da lanterna ao redor do assoalho e Buttercup tenta acompanhá-lo.

Observo a cena com um aperto no peito. Diversamente da última vez que fiz essa brincadeira, agora eu sei que ele não é um animal estúpido. Buttercup é, de fato, muito inteligente, como pensava a plateia formada por adultos e crianças do Distrito 13, que não escondiam seu fascínio por ele e, inclusive, alçaram o gato ao status de celebridade, naqueles momentos de angústia durante o bombardeio promovido pela Capital, e sobre o qual Peeta nos avisou durante uma transmissão televisiva.

Devo admitir que, mesmo com o jeito arredio do bichano, Prim não estava errada em querer protegê-lo. Ele sempre fez isso por ela e, no final das contas, por mim também.

Finn continua agitando o ponto de luz para o gato e, nas oportunidades em que Buttercup sente que tem a chance de pegá-lo sob suas patas, seu pelo fica eriçado. Depois, tenta fazer piruetas, quando o garoto deixa a luz acesa totalmente fora de seu alcance, bem no alto da parede.

Suas habilidades de salto não são as mesmas de antigamente e, antes mesmo que o menino apague a lanterna, o gato fica apático por suas tentativas frustradas.

Ouço um grunhido rouco e olho para baixo para ver Buttercup tecendo o seu caminho entre meus pés. Ele abandona de vez o jogo ao perceber minha presença. Eu me abaixo para pegá-lo, acariciando-o atrás das orelhas.

Buttercup se enrola na minha barriga, depois que me sento no sofá. Sua respiração está rasa e ele parece fazer o ar entrar e sair dos pulmões com muito esforço. Observo que suas vasilhas de comida e água permanecem intocadas.

— Buttercup, estou achando que você está bem cansado depois dessa farra. Você não é mais o mesmo. E não saiu pra caçar, nem comeu nada... Está tudo bem?

O gato mia inquieto antes de saltar de cima do meu colo para o sofá, onde se esparrama, cansado e entediado.

— Tia Katniss? – A voz quase sussurrada de Finn quebra o silêncio, mas o breu continua, pois ele permanece sem ligar a lanterna.

— Oi, Finn. Vou acender a luz do abajur, pode ser?

Eu me aproximo do interruptor, mesmo sem ouvir uma resposta de Finnick. Escuto apenas ele fungar algumas vezes.

A lâmpada acesa não ilumina muito bem o ambiente, mas é o suficiente para que eu veja as grossas lágrimas manchando o rosto infantil do menino.

Seu nariz e suas bochechas estão rosados, disfarçando momentaneamente suas sardas mais claras.

— Eu não estou chorando! – Ele se apressa em anunciar, imediatamente abaixando o rosto e esfregando os olhos.

Não faço nenhum comentário, a princípio.

Buttercup ronrona e eu me acomodo melhor no assento para pegá-lo mais uma vez.

— Você pode me ajudar a cuidar do Buttercup? – solicito.

O menino fica em pé ao meu lado assim que termino de falar. Eu aponto para as tigelas de água e comida e ele pega uma de cada vez com cuidado. Aos pouquinhos, sem forçar nada, conseguimos fazer o gato se hidratar e engolir algumas porções da ração recomendada pelo veterinário.

Quando, por fim, Buttercup começa a recusar o que lhe oferecemos e deita sobre a perna de Finnick, eu retomo sutilmente o assunto relativo à sua tentativa de ocultar o choro, mesmo que suas lágrimas fossem tão evidentes.

— Eu vi você brincar com o Buttercup de um jeito que eu costumava fazer. Eu chamava de jogo do Gato Louco. Na última vez em que fiz essa brincadeira, tive uma conversa muito importante com o seu pai e, se eu me lembro bem, ele chorou algumas vezes.

— O meu pai chorou?

— Sim, meu amor. Eu vi seu pai chorar de saudades da sua mãe, que é o que eu acho que você está sentindo agora.

— Estou mesmo... Sentindo falta da mamãe.

— Então, não há problema em chorar. É natural, Finn.

— Todo mundo me diz que eu sou forte e divertido como o papai... Quando eu fico triste, não conto à mamãe, porque o papai não era assim e eu quero ser parecido com ele.

— Mas eu aposto que sua mãe nota.

— Nota sim. Nem preciso dizer que estou triste, pois a mamãe sempre percebe e faz de tudo para eu dar risada de novo.

— Eu entendo que sua mãe quer proteger você, que só quer o seu bem. Mas você pode conversar com ela, pois é normal ficar triste às vezes. Seu pai era forte e divertido, mas ele ficava triste também.

— E ele era muito corajoso, não era?

— Sim. Ele salvou a minha vida e a do seu dindo Peeta. Mais de uma vez.

— Ninguém nunca me disse que ele chorava. Nem a mamãe.

— Talvez seu pai nunca tenha chorado perto da sua mãe, porque ela só dava alegrias pra ele.

— Acho que foi por isso. Minha mãe é desse jeito mesmo – confirma Finn, balançando a cabeça para cima e para baixo. — Só fica chata às vezes, quando peço pra brincar na praia até de noite e ela não deixa... Mas eu amo muito a minha mãe e queria que ela estivesse aqui.

As íris verdes voltam a se emoldurar com a vermelhidão de quem está prestes a chorar. Tento pensar rápido em um modo de interromper esse processo e me vejo compreendendo a atitude de Annie ao evitar a todo o custo as lágrimas de seu filho.

— Sabe, Finn, nesse dia que vi seu pai chorar, eu estava longe do dindo Peeta. Como você acha que eu estava?

— Muito... Muito triste. – Finn ainda soluça um pouco.

— Por isso, seu pai me ensinou uma coisa... Espere aqui um minuto.

Quando a curiosidade dele faz cessar de vez o choro, eu me levanto e vou até o quintal em busca de algo que sirva para eu poder contar o restante da história ao garoto.

— Aprendi com seu pai a fazer e desfazer nós para me acalmar. – Mostro a ele dois pedaços de corda fina, com menos de trinta centímetros de comprimento, e o menino pega um deles. — Ele ensinou também para o dindo Peeta.

Finn senta-se ao meu lado e, sem que eu precise demonstrar o que fazer, seus dedos movem-se rapidamente, atando e desatando nós. Esse deve ser um ensinamento transmitido desde muito cedo no Distrito 4.

Ele puxa a ponta de sua corda e uma amarração complicada se torna uma linha reta de novo.

— Esse é justamente um dos nós que seu pai me ensinou. Ou, pelo menos, tentou – confesso e ele ri suavemente.

— Eu posso explicar como faz.

Finnick e eu sentamos por um tempo em silêncio, fazendo os nós florescerem entre nossos dedos e desaparecerem.

De vez em quando, temos que segurar as extremidades das cordas com nossas amarrações para que Buttercup as inspecione. Se algum nó parece suspeito para ele, o gato rouba-o com a pata, mordendo algumas vezes, para se certificar de que está morto.

Depois de longos minutos concentrado, o menino me encara, seu cabelo ruivo caindo um pouco sobre os olhos e a corda atada meio torcida em torno de seus dedos.

— Você pode me contar mais sobre o meu pai?

— Claro que posso. Seu pai era muito brincalhão... Uma vez, eu e ele pintamos o rosto com uma pomada gosmenta e demos um susto no Peeta!

— Como foi isso?

— Eu e seu pai estávamos na are... – interrompo o que estava dizendo, com receio de mencionar algo que ele não está preparado para conhecer.

— Na arena. Eu já aprendi algumas coisas sobre os Jogos Vorazes na escola, tia Katniss – revela Finn, com uma leve inquietação.

— Então... – Ainda levo um tempo para recomeçar a falar. — Eu e seu pai estávamos com uma coceira enorme pelo corpo. Foi quando o Haymitch mandou pra gente uma pomada que deixou a nós dois com um visual horrível. Era a primeira vez que seu pai não parecia tão bonito. Eu comentei algo sobre isso... Aí ele me perguntou como consegui sobreviver com a minha aparência durante tantos anos.

Sorrio, lembrando-me de que Finnick sabia fazer piada mesmo nos momentos mais críticos.

— Ele devia estar brincando, pois você é muito bonita, tia Katniss.

— Gentileza sua, Finn... De qualquer modo, eu estava realmente horrível com aquela pasta nojenta na minha pele. Mas, como a pomada funcionou rapidamente, pensei em acordar o dindo Peeta para aliviar a coceira dele também. Nesse momento, seu pai teve a ideia de dar um susto nele! E foi um baita susto...

O riso de Finn se espalha pelo cômodo.

— Eu queria ter visto a cara do dindo!

— Quer fazer isso agora?

— Será que vai dar certo?

— Tenho quase certeza de que ele já está dormindo profundamente. E eu tenho um pote do creme gosmento lá no banheiro. Eu já volto.

Finn me aguarda sentado e bate palmas quando mostro a ele o tubo em minha mão aberta. Buttercup se alvoroça ligeiramente e desce do sofá.

— Vamos? – Finn pula do assento e corre para subir as escadas, parando por tempo suficiente para jogar os braços ao redor da minha cintura.

— Obrigado por essa conversa, tia Katniss. Muito obrigado!

— Não precisa me agradecer. – Eu me abaixo para ficar na altura de seus olhos. — Sempre quis expressar minha gratidão ao seu pai, mas não pude. Acho que fiz isso através de você agora.

Eu o aperto bem junto de mim antes de subirmos os degraus lado a lado.

Deixo a lâmpada do corredor acesa e escancaro a porta do quarto. A luz fraca ilumina minimamente o local para levarmos nosso plano adiante.

Eu e Finn andamos pé ante pé e chegamos à beira da cama. Rosqueio a tampa do tubo que contém a pomada espessa e escura, e logo sinto seu cheiro pungente, uma combinação de alcatrão e agulhas de pinheiro.

Finn enruga o nariz ao sentir o aroma forte. Mesmo assim, coloco uma boa quantidade do remédio em minha mão. Começo a espalhá-lo em minha face e Finn mal contém uma risada.

O tom em minha pele já se transforma em um medonho cinza esverdeado, como se eu estivesse em decomposição.

Finnick me olha desconfiado, mas eu acho que a vontade de dar um susto no padrinho vence o receio, porque depois de um minuto ele começa a passar o creme em sua própria pele também.

Nós espalhamos generosamente, revezando-nos para esfregar a pomada no rosto um do outro.

— Vamos acordar o dindo Peeta juntos. Precisamos colocar nossos rostos bem em frente dele.

Posicionamo-nos em cada lado de Peeta, inclinando nossas cabeças até que estejam a centímetros de seu nariz, e o sacudimos.

— Peeta... Peeta, acorda – digo com uma voz suave e melodiosa.

Suas pálpebras pesadas se abrem e, ao nos ver, ele salta, dando um berro apavorado.

Finnick e eu caímos sobre a cama, gargalhando até doer a barriga. Toda vez que tentamos parar, olhamos para a nossa vítima, que tenta manter uma expressão de desdém, e recomeçamos a rir, o que acaba contagiando a Peeta também.

Quando já estamos naquele estágio em que sobram somente os suspiros depois das risadas, o menino boceja com vontade.

— Finn, você quer dormir aqui com a gente? – proponho. — A cama é bem espaçosa.

— Posso? De verdade?

— Desde que vocês tirem essa gosma do rosto – Peeta impõe sua condição.

— Legal! – comemora o menino.

Pego Finn no colo e o levo até a suíte.

— Foi mesmo muito engraçado, não foi? – o menino sussurra em meu ouvido, mas Peeta escuta, de qualquer modo.

— Ei, vocês dois, não teve graça nenhuma! – resmunga ele, enquanto vai até o armário providenciar mais um travesseiro.

Depois que limpo nossas faces, retorno ao quarto com Finn praticamente adormecido em meu ombro.

Peeta não está na cama. Então, deito o menino com facilidade no meio do colchão. Pouco depois, Peeta retorna, carregando Buttercup, que está bem aconchegado e estranhamente quieto em seus braços.

— Ele estava miando muito lá embaixo, sem motivo aparente. Será que está sentindo alguma dor?

— Buttercup não está se alimentando direito e está se isolando de novo.

— Espero estar enganado, mas...

— Esses são os sinais sobre os quais o veterinário falou – admito, fazendo minguar as minhas esperanças de que ele estivesse melhor, depois de vê-lo brincar com Finn ainda há pouco. — Será que fui negligente com ele?

— Katniss, nem cogite isso. Você está monitorando as tigelas de água e comida do gato constantemente. Ele sumiu e nós o buscamos por toda a parte.

— Hoje eu fiquei animada com o comportamento dele com o Finn. Ele parecia bem-disposto... De qualquer modo, irei com ele ao veterinário amanhã de manhã. Na parte da tarde, podemos levá-lo conosco para a Campina.

Peeta põe o gato na cama também. Eu me deito ao lado de Finn e fico atenta ao comportamento de Buttercup aos meus pés.

O ronco fraco do gato preenche o silêncio da noite. As pausas no ritmo de seu fôlego superficial sugerem que ele está tendo dificuldades em respirar.

Eu me sento no colchão, envolvo Buttercup num abraço e digo-lhe o quanto sou grata por tê-lo comigo. Ele me cutuca com o nariz achatado e pisca os olhos da cor de abóbora podre.

Sussurro desculpas sufocadas em sua orelha arrancada pela metade e peço seu perdão pelos tempos em que minha vontade era de afogá-lo num balde. Para a minha sorte, ele demonstrou nos últimos anos que me desculpou por aquela vez em que realmente tentei fazer isso.

Procuro absorver tudo sobre ele, nesse curto intervalo de uma noite, consciente de que não nos resta muito tempo juntos. Os animais de estimação são verdadeiros companheiros, com manias, características e aromas totalmente únicos, os quais somente quem convive com eles conhece e aprende a amar, por mais irritantes que sejam.

Eu estava preocupada com os pesadelos que poderia ter durante a noite, já que Finn está dividindo o quarto conosco. No entanto, não posso ter pesadelos, se não consigo dormir.

Em vez disso, acaricio incansavelmente o corpo magro de Buttercup e apenas adormeço quando a extrema fadiga me domina.

Antes de perder a consciência em algum momento já próximo do amanhecer, observo Buttercup se esgueirar para junto de Peeta, que logo ajeita sua posição de dormir, sempre mantendo uma postura protetora. Admiro os dois juntos. Minha família.

¸.•*'¨'*•.¸¸.•*'¨'*•.¸¸.•*'¨'*•.¸

Quando acordo, encontro Peeta e Finn de pé ao lado da cama, banhados e vestidos. O menino carrega Buttercup no colo e Peeta segura uma mochila.

— Bom dia, dorminhoca. Liguei para o veterinário, mas a secretária dele informou que ele não estará na clínica hoje e só fará atendimentos amanhã. Então, que tal irmos com Finn e Buttercup para a Campina agora mesmo? Já preparei tudo.

— Bom dia, tia Katniss! – Finn põe o gato ao meu lado e faço um cafuné nos pelos amarelados dele.

— Oi, Finn. Você dormiu bem?

— Dormi sim.

— Estava pensando que podemos adiantar sua volta pra casa. Estou sentindo falta da minha mãe, como você, e já que ela mora no Distrito 4 também...

— Eu quero voltar pra casa, mas também não quero ir embora. Que confuso!

— É uma confusão boa, pelo menos. Fico feliz que se sinta bem aqui.

Ele assente e logo sai, levando Buttercup com ele e sendo seguido pelo padrinho, que beija o topo da minha cabeça antes de ir.

Eu me espreguiço para levantar. Assim que me arrumo e desço as escadas, tiro o telefone do gancho e pergunto a Finn:

— Quer falar com a sua mãe?

O garoto aguarda animado enquanto disco o número e entrego o aparelho a ele ao sinal de que a ligação se completou.

Enquanto o menino está ao telefone, confidencio a Peeta que gostaria de mostrar a ele o livro de memórias.

— Você tem certeza? Há muitas informações sobre os jogos... E sobre mortes.

— Descobri que ele já sabe bastante a respeito e, na conversa que tivemos ontem, percebi que ele busca avidamente conhecer melhor o pai.

— Já que é assim. É perfeito.

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Ao chegarmos à Campina, escolhemos o local favorito de Buttercup para o piquenique. Peeta estende a toalha e nós nos estabelecemos do modo mais confortável possível.

Buttercup está perfeitamente pacífico e contente, mordiscando uma bola de lã que levamos para ele brincar, satisfeito com o calor do sol em seu corpo cansado.

A poucos metros de distância, crianças brincam na grama e Finn se enturma com elas. Buttercup se afasta um pouco, entretido com insetos no meio de alguns arbustos de dentes-de-leão.

Quando Finn volta para junto de nós, ofegante e com o rosto vermelho pelo esforço de correr para todos os lados, sento-me ao lado dele, abraçada ao livro de memórias. Peeta está na outra extremidade da toalha, montando sanduíches.

— Quero mostrar uma coisa a você. – Exibo pra ele a capa do livro e ele me encara intrigado.

Enquanto viro as folhas, exponho como eu e Peeta reunimos naquelas páginas as imagens e os detalhes a respeito de pessoas que são muito importantes para nós e que não queremos nunca esquecer.

— Eu também perdi meu pai. Só que eu tinha onze anos quando isso aconteceu. – Corro os dedos pela foto do meu pai e continuo a folhear o livro. — Aqui está o capítulo sobre a minha irmã, Primrose. E esta parte aqui é toda dedicada ao seu pai.

O menino sequer pisca ao percorrer os olhos sobre os manuscritos e os desenhos de Peeta. Ele apenas ergue o olhar para mim e sorri quando se depara com uma foto dele próprio ainda bebê, no colo de Annie.

Depois, volta a se debruçar sobre o livro, lendo cada palavra com a máxima atenção, mesmo depois que Peeta põe perto de nós um tabuleiro com pães e biscoitos. Finn balbucia os trechos com as frases ditas por seu pai, como se quisesse memorizá-las.

— Você estava certa – reconhece Peeta, acomodando-se ao meu lado. — Fico feliz por termos trazido o livro.

Ele coloca a mão em minha perna, chamando minha atenção para onde está Buttercup.

— Ele parece tão bem... – Tenho que admitir, enquanto me sirvo de alguns petiscos e separo outros num prato para Finn.

— Mas temos que nos preparar para dizer adeus. Por mais que doa, essa é a verdade. – Peeta termina de lanchar e abre uma vasilha com pedaços de bacon.

Buttercup logo se aproxima, deslizando para baixo das pernas de Peeta, e começa a lamber as fatias.

— O seu prato favorito, eu sei. Nada de ração sem graça hoje – Peeta afaga as costas do bichano, que mia agradecido.

Até penso em adverti-lo sobre a dieta do gato, mas eu estaria apenas sendo tola ao não permitir a ele nem mesmo essa alegria.

Peeta sorri pra mim e boceja. Em seguida, brinca com Finn sobre o fato de ter sido acordado com aquele susto e também pela falta de espaço na cama durante a noite, mas sei que ele também não deve ter dormido bem, pelos mesmos motivos que eu.

A cada hora que passa, a sombra do salgueiro fica mais convidativa para uma soneca. Então, quando já estamos saciados de tanto comer, nós quatro nos entregamos a um bom cochilo. Finn está agarrado ao livro de memórias e Buttercup, atravessado entre nós, com as pernas dianteiras e traseiras jogadas para cima.

Não sei por quanto tempo dormimos, mas, quando despertamos, o gato não está em nenhum lugar ao alcance de nossas vistas.

Peeta pega Finn, que ainda dorme, e eu recolho tudo para voltarmos à Aldeia dos Vitoriosos. Pelo caminho, ainda busco alguma pista deixada por Buttercup, mas não há nada.

Entramos em casa e Peeta ingressa na sala de estar. Antes que eu avance até onde ele se encontra, Peeta me bloqueia no meio do caminho, com os olhos alarmados.

— Katniss, não vá até lá.

O alerta dele tem o efeito contrário. Afasto sua mão e dou passos rápidos para me certificar do que está se passando.

Quando visualizo o monte de pelos imóvel, percebo que Peeta tentava me proteger do choque de ver Buttercup deitado, sem vida, ao lado do cesto com os novelos de lã. Seu lugar preferido em nossa casa.

Peeta deita Finn no sofá e me ajuda a me sentar numa cadeira.

— O gato de Prim... Ela quase perdeu a vida para salvá-lo no Distrito 13, porque não podia deixá-lo para trás pela segunda vez. Ela acreditava que ele teria voltado para proteger a gente. E foi o que ele fez, Peeta. Ele voltou para ser o guardião dela e acabou cuidando de mim. Ela o amava tanto...

— E ele retribuía esse amor, à maneira dele.

— O gato mais feio do mundo, mas era o nosso Buttercup.

As lágrimas escorrem livremente por minha face e tudo dói demais. A perda do pequeno companheiro de Prim, que se tornou também meu companheiro.

Vou até o armário que fica no antigo quarto da minha irmã. Escolho um dos cobertores macios que comprei pra ela quando nos mudamos para essa casa e enrolo nele o corpo inerte de Buttercup.

Vindo dos fundos da nossa casa, o barulho da pá que Peeta usa para cavar uma pequena cova arranha meus ouvidos.

Finn se remexe um pouco no sofá, mas eu não tenho forças para me mover e sair daqui para que ele não veja essa cena. Assim, quando ele finalmente desperta, não há como esconder dele o que aconteceu.

— Estou dizendo adeus ao Buttercup, Finn.

— Eu sinto muito, tia Katniss.

A presença do menino se revela, na verdade, como um bálsamo. Ele tenta me consolar com sua voz doce e palavras inocentes. Quando Peeta vem avisar que chegou a hora da despedida, pois o túmulo já está suficientemente profundo, Finn balança uma das patas do gato e diz:

— Foi muito bom conhecer você, Buttercup.

Peeta me ajuda a me erguer e me acompanha até o quintal. Eu e ele depositamos a forma agora sem vida de Buttercup no buraco e juntos o cobrimos com terra. Ao final, Peeta pega Finn em seu colo e abraço a ambos, nós três chorando abertamente, quebrados demais pela ausência gigantesca de Buttercup para conseguir falar alguma coisa.

Conforme a noite se aproxima, a temperatura cai um pouco e Peeta nos leva de volta para dentro. Finn some escada acima, sem dizer nada. Seguro a mão de Peeta com firmeza.

— Eu olhei pra você abraçado a Buttercup ontem e pensei: Essa é a minha família. Hoje, ele não está mais aqui.

— Katniss, você sabe que aqui é mais que nossa casa, não é? Esse é o nosso lar. E Buttercup sempre será nossa família – sussurra ele com carinho em meus cabelos. — Estou triste, sim, mas o sentimento que prevalece é o de gratidão.

Eu assinto e me sento na cadeira de balanço perto da lareira, observando-o subir os degraus da escada para verificar se o afilhado está bem.

Não demora muito, Finn reaparece e se aproxima de mim devagar, com dois pedaços de corda nas mãos.

— Tia Katniss, quer atar e desatar nós comigo?

Dou um longo beijo em sua cabeleira ruiva em sinal de concordância. Em silêncio, pego a corda que ele me oferece. Seus dedinhos roçam levemente a minha mão numa carícia tímida, antes de ele dizer:

— É dez vezes mais demorado se recuperar da crise do que entrar nela.

Ao ouvi-lo reproduzir a frase de seu pai, usando as palavras que significaram tanto pra mim e que ele aprendeu hoje ao ler o livro de memórias, tenho a confirmação do que Annie me falou.

Finnick se foi, mas deixou a melhor parte dele cristalizada em seu filho.

Enquanto eu e ele enredamos as cordas para dentro e para fora de nossos dedos, a dor em meu coração se abranda.

Não apenas a dor recente, mas também a dor antiga, que sangrava em mim, mesmo depois de tantos anos, pela morte do meu amigo. Finnick.

Sua morte foi horrível e injusta e rompeu laços tão importantes... No entanto, o que ele deixou conosco – seu filho – está transformando esses laços rompidos em um grande nó de amor e de perdão.


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Notas finais do capítulo

Oi de novo!

Ain, meu pobre coração detestou escrever sobre esse adeus, mas eu não podia mais adiá-lo, já que, no próximo capítulo, haverá uma passagem de tempo bem grande e eu queria fazer uma despedida digna para o gato mais andarilho de Panem.

Falando no próximo capítulo: já aconteceu tudo o que eu queria nessa primeira fase. Então... Chega de enrolação! Baby à vista!

Até lá!

Beijos!

Isabela