A Redenção do Tordo escrita por IsabelaThorntonDarcyMellark


Capítulo 15
15. Uma nova certeza




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Por Katniss

Depois do café da manhã, Haymitch foi até a estação de trem buscar o casal de aves reprodutoras para dar início à sua criação de gansos.

Ele improvisou em seu quintal uma cobertura de telhas, para que estes se abriguem da chuva, e um local para água e alimentação. A ideia de Haymitch é deixá-los livres. Felizmente, os gansos podem cuidar de si mesmos. Para o bem deles, espero que façam isso longe das minhas janelas.

Eu, Haymitch e Peeta combinamos de ir à área comercial no início da tarde. Peeta vai ver pela primeira vez o que sobrou da parte onde viveu em nosso Distrito e sei que não é nada fácil.

É como se tudo o que conhecemos desde a nossa infância simplesmente desmoronasse diante de nós. Por isso, não posso permitir que ele enfrente essa situação sozinho.

Quando chega a hora combinada, vou até a casa de Haymitch para encontrá-los e para conhecer os novos vizinhos.

— Olá, lindinha! Venha aqui para eu apresentar você a Snow e Coin.

— Ah, não, Haymitch! Você não pode dar esses nomes aos pobres bichos.

— Ok, então... Que tal Katniss e Peeta? — Haymitch sugere com ironia.

— Dispenso a homenagem. — Peeta aparece sorridente no quintal de Haymitch.

— A fêmea pode se chamar Lady, como a cabra de Prim — opino. — O porco que sua família criava tinha um nome, Peeta?

— Meus irmãos e eu o apelidamos de Bob, pra implicar com o meu tio Robert, irmão da minha mãe. Vocês acham que é um bom nome para o ganso?

— Lady e Bob. Esses serão os nomes dos meus novos companheiros! — Haymitch concorda com nossas sugestões. — Falando em companhia... Acabei de conversar com a Effie por telefone. Ela disse que foi convocada para ser a escolta da Presidente Paylor numa espécie de turnê pelos Distritos. Será um pouco mais demorada que a Turnê da Vitória, pois há muitos compromissos políticos programados. Mas, pelo menos, ela passará alguns dias por aqui e, se tudo estiver bem, posso tentar encontrá-la em algum outro Distrito. — Ele suspira ao terminar de falar. — Esse é o trabalho dela. Tenho que respeitar.

— Enquanto isso, nós três cuidamos uns dos outros! — Peeta tenta confortá-lo e ele assente.

— Vamos à cidade? — convido.

Nossos olhares se voltam para Peeta, que respira profundamente e toma a dianteira, decidido.

— Vamos.

Caminhamos em silêncio até que Haymitch indaga:

— Por que seus pais e irmãos não vieram morar com você, Peeta? Eles o deixaram viver sozinho naquela casa enorme!

— De início, a justificativa era a de que não queriam prejudicar o funcionamento da padaria, mas isso nunca me convenceu. Até que um dia meu pai disse que era porque eles presenciaram o que havia acontecido com você e sua família, Haymitch.

— Ah, claro... O assassinato da minha mãe, do meu irmão mais novo e da minha garota duas semanas depois de eu ser coroado vitorioso — comenta Haymitch, entristecido.

— Meu pai me perguntou se eu sabia o que havia se passado com você e respondi que não. Então, ele me disse que, como você não havia falado nada, deveria esperar até que me contasse um dia, se fosse da sua vontade, mas que eu entendesse que ele não estava me rejeitando — prossegue Peeta.

— O irônico é saber que eles teriam sido salvos, se tivessem feito a opção de residir na Aldeia dos Vitoriosos — menciona Haymitch.

— Isso é verdade — lamenta Peeta.

O que Peeta acabou de relatar me faz sentir uma pontinha de orgulho da minha mãe, pois ela também sabia de tudo o que se passou com Haymitch e não teve receio de morar comigo.

Por todo o percurso, ainda encontramos grupos de pessoas com máscaras e luvas, recolhendo em charretes os escombros das explosões.

Quando passamos na frente da casa do prefeito, explico:

— Toda a família da Madge, ela própria e as duas pessoas que trabalhavam para eles morreram no bombardeio.

— O fato de ser filha do prefeito não fez com que fosse poupada... Sempre gostei muito dela. Quieta, amável, mas também corajosa, como quando levou os analgésicos para Gale, depois de ele ser chicoteado por Thread — elogia Peeta.

— Foi Madge quem me deu o broche do Tordo — recordo.

— Não é difícil imaginá-la lutando junto conosco, como uma rebelde. Uma aliada, como a tia dela foi pra mim na arena. Maysilee salvou minha vida — afirma Haymitch.

Conforme seguimos em frente, Peeta engole em seco. Daqui de onde estamos até o local em que ficava a sua casa, ele deve se recordar de muitos fatos e pessoas que permearam sua vida.

Passamos pelo que sobrou da sapataria, da loja de roupas, do armazém, da mercearia, do empório de bebidas...

Avisto Thom à frente, trabalhando a poucos metros das ruínas da padaria. Ele se aproxima de nós três e nos cumprimenta brevemente, porém seus olhos estão fixos em Peeta.

— Katniss, talvez não seja seguro pra você ficar aqui — sussurra Thom, ao passar por mim. Depois, ele se posiciona entre mim e Peeta, como um escudo humano.

Felizmente, Peeta não o escutou. A situação já é dolorosa demais para ele ainda ficar se preocupando comigo.

Quando, enfim, alcançamos o exato ponto onde ficava a padaria, observo Peeta empalidecer.

Mesmo eu — que não era tão familiarizada com o local quanto ele — sou capaz de reconhecer algumas partes e de me emocionar ao lembrar de alguns acontecimentos.

Prim admirando os bolos confeitados através do vidro da vitrine. Peeta me dando os pães que me deram força e esperança.

O peso do sofrimento dele torna-se insuportável e Peeta desaba de joelhos no chão, tapando os ouvidos. Haymitch abaixa-se a seu lado, segurando seus ombros, porém isso não é suficiente para acalmá-lo.

— Katniss, por quê? Por que você atirou aquela flecha na arena-relógio e arruinou nosso lar? — Peeta questiona e meu coração se aperta.

Tento me aproximar de Peeta, porém Thom me impede.

— Katniss, sei o que aconteceu no Distrito 13 no dia do resgate dele.

— Entendo que você está tentando me proteger, Thom, mas somente eu e Peeta sabemos de tudo o que se passou entre nós antes e depois daquele dia. Preciso ir até ele — suplico.

Ao me ouvir, Thom libera o caminho para que eu me acerque a Peeta. Fico de joelhos à sua frente.

— Peeta — chamo, usando uma entonação suave.

Não há resposta. Será que ele já perdeu a consciência? Retiro suas mãos de seus ouvidos com cuidado.

— Peeta? — insisto.

Seus olhos se abrem e são como esferas negras. Toda a íris azul desapareceu. Os músculos em seus pulsos estão enrijecidos como pedras.

— Não fique perto de mim — murmura ele. — Não posso aguentar muito tempo.

— Sim. Você pode! — falo pra ele.

Peeta sacode sua cabeça.

— Estou perdendo a lucidez. Sou um risco pra você, Katniss. — Ele se esforça para me alertar, como se o fato de dizer essas simples palavras o deixasse esgotado.

Opto por fazer algo que já funcionou uma vez na Capital, após escaparmos dos bestantes que nos perseguiram pelos túneis do esgoto. É um tiro no escuro ou talvez uma alternativa suicida, porém escolho fazer assim mesmo.

Eu me inclino e beijo a boca de Peeta.

Não é pra ser um beijo romântico, pois se trata de um ato desesperado e urgente, como a última tábua de salvação à qual alguém se agarra num naufrágio.

No entanto, meu corpo parece acordar ao tocá-lo de modo tão íntimo.

Apesar de essa ser a última coisa na qual eu deveria pensar nesse momento, o fato é que não preciso nem pensar, pois estou sentindo... Como seus lábios são doces, quentes e macios. Como o calor desse contato se alastra impetuosamente por minha pele tal qual uma febre intensa.

Alheio às sensações que provoca em mim, Peeta começa a tremer, porém mantenho meus lábios pressionados contra os seus até ser obrigada a respirar.

Minhas mãos deslizam para baixo de seus braços até encontrar seus dedos.

— Não deixe que Snow o tire de mim mais uma vez — peço.

Peeta está ofegante e ainda luta contra os pesadelos que atormentam sua cabeça.

— Não consigo impedir... — Sua voz é fraca.

Aperto seus dedos até o ponto de as minhas mãos doerem.

— Fique comigo — imploro.

Suas pupilas se contraem até ficarem minúsculas, dilatam mais uma vez rapidamente e, então, retornam para seu estado de normalidade.

— Sempre — Peeta sussurra e quase desfalece.

Depois de poucos minutos, eu e Haymitch ajudamos Peeta a se levantar do chão. Sem enxergar direito até sua visão se estabilizar, e também por causa das lágrimas, ele tateia à sua frente em busca do meu abraço, até que me encontra.

— Você me resgatou, mais uma vez! — Peeta expressa seu alívio, apoiando a testa na minha.

— No fundo do meu coração, eu sabia que você não iria me atacar. — Envolvo Peeta com mais força em meus braços.

— Promete pra mim que você não fará mais isso e que se afastará de mim assim que eu começar a me alterar.

— Só posso prometer que farei o melhor para proteger a nós dois, mesmo que isso signifique que tenha que ficar ao seu lado.

Peeta ainda está recuperando as forças e Haymitch o ampara.

— Peço desculpas por fazer vocês passarem por isso aqui, em público. Não fui forte o suficiente pra suportar — desabafa Peeta.

— Se essa é a única sequela com a qual você ficou depois de tudo o que sofreu e, ainda assim, você não se considera uma pessoa forte, tenho que mudar meu conceito de fortaleza, garoto. — Haymitch afaga a cabeça de Peeta. — Prontos para voltar pra casa?

Eu e Peeta assentimos, mas, antes mesmo que começássemos a caminhar, Thom nos chama:

— Esperem um minuto! Nós recolhemos algumas coisas daqui da padaria que não foram completamente danificadas. Vou até ali buscar.

Quando ele retorna, Haymitch segura a caixa onde estão guardados os objetos.

— Deixa que carrego isso... Ou você quer ver agora o que há aqui dentro? — pergunta ele.

— É melhor abrir em casa — afirma Peeta e, em seguida, dirige–se a Thom. — Obrigado, Thom... Antes de ir, gostaria da sua opinião sobre algo que estou planejando. Pretendo reconstruir a padaria. Você pode me ajudar?

— Que ótima notícia! É claro que vou ajudar! — Thom se anima. — Não sei se vocês estão sabendo, mas o Timothy, um antigo mineiro, assumiu temporariamente a função de Prefeito e está promovendo reuniões periódicas para organizar a reconstrução da cidade. Todos nós queremos que seja algo planejado. Estamos estudando também algumas formas de incentivo pra quem quiser se restabelecer aqui no Distrito 12, o mais destruído de Panem.

— Quando e onde será a próxima reunião? — Haymitch pergunta.

— Amanhã à noite, no local onde ficava o Palácio da Justiça — informa Thom.

— Estarei lá! — Peeta anuncia.

Após a despedida, retomamos nosso caminho de volta.

— Vocês conhecem o Timothy? — Peeta pergunta.

— Ele sempre foi uma liderança para as pessoas da Costura e para os mineiros. Meu pai o admirava muito — digo.

— Nosso Distrito está em boas mãos, então — conclui Haymitch.

E essas são as últimas palavras que trocamos até chegarmos à casa de Peeta. Haymitch deposita a caixa sobre a mesa da sala e se despede:

— Vou deixá-los a sós. Acho que precisam conversar sobre os acontecimentos de hoje — anuncia ele, antes de lançar pra mim um beijo estalado.

Haymitch e sua sutileza.

Após ele sair, Peeta me encara por alguns segundos, com seus lábios comprimidos numa linha reta.

— Você deve estar cansada. Não precisa ficar, se não quiser.

Será que ele se deu conta de que o beijei? Ou ele já estava num estado de semiconsciência que levou a que não percebesse o que fiz?

— Não se preocupe. Quero ficar — afirmo.

Peeta passa a mão na caixa sobre a mesa, hesita um pouco, até que toma coragem e remove a tampa.

Ele retira os objetos um a um e, enquanto faz isso, vai me explicando o que significam. Suas lágrimas rolam incessantemente.

— Essas aqui são algumas das ferramentas do meu irmão mais velho. Era ele quem consertava tudo lá em casa e na padaria. O sonho dele era ser mecânico... Está vendo aqui? — Ele aponta para umas letras em baixo-relevo numa chave de fenda grande. — Oficina Mellark. Foi ele quem gravou essas palavras.

A ideia de que seu irmão mais velho se identificaria com alguns setores do Distrito 13 até cruza meu pensamento, porém não digo nada.

— Aqui estão os halteres do meu irmão do meio — continua Peeta. — Ele treinava bastante para os campeonatos de luta da escola... E me obrigava a treinar também.

Peeta manuseia o menor dos pesos e esboça um sorriso triste.

— Isso aqui é típico dele. — Ele me mostra os dizeres 'PEETA FRACOTE' grafados em letras garrafais com tinta branca, na lateral do halter.

Não consigo evitar uma risada. No entanto, meu riso logo desaparece, quando vejo o semblante de Peeta ao pegar um pequeno cofre de ferro, que ele tenta abrir inutilmente, pois está um pouco retorcido e amassado nas laterais.

Peeta sacode o cofre e de dentro dele sai um barulho de metais se chocando. Nesse momento, ele desata a chorar incontrolavelmente. Seguro uma de suas mãos, sem saber o que dizer. Quando suas lágrimas arrefecem e Peeta pode finalmente falar, ele me confidencia:

— Agora dá pra ter uma ideia de como foram as últimas horas de vida do meu pai... Era aqui nesse cofre que ele e minha mãe guardavam as alianças, quando iam preparar alguma massa de pão. Em hipótese alguma, eles iriam dormir sem colocá-las de volta.

Após uma pausa, Peeta prossegue:

— Mesmo tendo passado de meia-noite, no momento do bombardeio, acho que ele estava acordado e trabalhando. Devia estar esperando notícias, depois que a arena-relógio foi destruída.

Ele balança o cofre mais uma vez perto do meu ouvido.

— Você acha que há duas alianças aí dentro? — pergunta.

— Não sei dizer. Parece que sim, pelo barulho.

— Será que minha mãe estava acordada com ele? Será que, no fim das contas, ela se importava comigo?

A pergunta dolorida é pior que um golpe físico, oprimindo meu tórax.

— É difícil imaginar alguém que conheça você e não se importe. — É a única frase que consigo proferir.

— Será? — Peeta repete algumas vezes a questão e a voz dele vai desaparecendo até se tornar um choro brando.

Seu corpo estremece a cada soluço. Ele se senta e mantém a cabeça apoiada em suas mãos e os cotovelos em cima da mesa.

Observo seus ombros largos chacoalharem, enquanto o luto escoa de seus olhos e o sofrimento brota de seu peito, em forma de lamúrias quase inaudíveis.

Sinto o desejo de tocá-lo, em sua pele e em sua alma.

Tenho vontade de protegê-lo num abraço. Preciso ir até ele, acariciar seus cabelos e lhe dizer que sinto muito. Quero limpar as lágrimas de seus olhos expressivos e esperar até que aqueles azuis se iluminem para mim com carinho, quando eu conseguir acalentá-lo.

Apesar disso, nada faço.

Ao contrário de como gostaria de agir, fico congelada onde estou, vendo todas essas possibilidades escorregarem por entre meus dedos. Apenas tomo assento a seu lado.

Passam-se alguns segundos e ele continua aos prantos. Vê-lo chorar de modo tão sentido me impulsiona a algo além do que eu estava ansiando por fazer.

Sem pensar nas consequências, encosto meus lábios em sua têmpora, suavemente, para deixar clara minha compaixão.

No entanto, não é apenas a compaixão o que me move. É mais, muito mais.

É uma mistura de emoções impossíveis de reprimir, que me levam a retirar suas mãos de seu rosto devagar e a enxugar suas lágrimas com meus lábios, sentindo o gosto salgado da sua dor.

Um contraste com a doçura dos seus lábios, que provei há algumas horas. O único sabor que quero sentir desde então.

Assim, interrompo seus soluços com um beijo. Os olhos de Peeta se arregalam, fixando-se em mim, depois se fecham.

Com sua boca ainda colada à minha, sinto seu sorriso se abrir e agora é ele quem me beija, com desejo, saudade e... Amor.

Nossos lábios se encaixam com perfeição, ao mesmo tempo em que ele acaricia a raiz dos meus cabelos, descendo suavemente seus dedos até minha nuca. A fagulha acesa no beijo dado nas ruínas da padaria se inflama novamente nesse momento. A mesma sensação quente que surgiu dentro de mim quando nos beijamos na arena-relógio volta a nascer, crescer e se espalhar por todo o meu corpo.

É como se a cena se desenrolasse em câmera lenta. Visão, olfato, audição, paladar, tato. Estou me perdendo nesse alvoroço em meus sentidos. Inebriada, entregue, extasiada... Até que ele se afasta. Seus olhos não se abrem.

— Katniss... Você não tem que fazer isso por pena de mim — sussurra Peeta e, só então, os orbes azuis piscam à minha frente, brilhando junto às novas lágrimas que começam a se formar.

— Não é por pena, Peeta.

Definitivamente, não é por pena.

Mas qual é o sentimento que me fez ter o ímpeto de beijá-lo?

Meu coração desacelera por uma fração de segundos. Depois, volta a esmurrar meu peito numa velocidade alucinante, quando uma nova certeza me invade.

Eu amo você, Peeta Mellark.


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