De laços e fitas escrita por Literate


Capítulo 3
Capítulo 3




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Os dias de Can-Can passariam sem grandes novidades, a pequena rubra continuaria a ir com o pai todos os dias para alguma praça diferente, exceto segunda-feira, quando iriam à das camélias. A potrinha, no entanto, faltaria menos as aulas por causa dos conselhos de sua melhor amiga. E com isso, quatro anos se foram. A vida dos mais desprovidos geralmente não possui grandes viradas ou mudanças; é uma vida de conformismos, na qual cada dia é vivido para subsistência. E pai e filha trabalhavam para garantir o almoço, o jantar e as contas de água e energia, que costumavam chegar religiosamente no primeiro dia de cada mês e deveriam ser pagas em até dez dias para não haver juros.

No meio dessa luta diária, Can-Can, agora com quatorze anos, crescia, continuava a ler os mesmos livros que possuía desde pequena, ainda dançava feliz pelas calçadas e, quando podia, visitava Sticks, que conseguira sua Marca; um conjunto pães recém assados. A princesa agora trabalhava na padaria junto com a mãe.

A potra rubra tinha um corpo bem desenvolvido para a idade que tinha, já era pouco mais alta que a pônei terrestre e quando dançava nas praças, alguns potros olhavam-na de forma interessada. Isso começava a render ao par de artistas alguns trocados a mais, pois a pônei de cristal adquirira alguns fãs apaixonados. Mas esses potros jamais ousavam se aproximar demais ou por muito tempo, o olhar vigilante de um pai ciumento os mantinha afastados durante as apresentações.

Apesar de não gostar de admitir, Turner sabia que o interesse dos potros na filha era uma coisa razoavelmente boa. Pois agora ganhavam mais bits do que de costume. Já havia, há algum tempo, pago as dívidas do mercado, agora poupavam dinheiro para emergências – o garanhão também costumava guardar uma parte do dinheiro para fazer pequenos mimos para a filha, vez ou outra.

Feliz foi o dia no qual, ao passarem em frente a um dos maiores teatros da cidade, viram um grande cartaz anunciando que a Companhia de Danças e Artes Cênicas de Germane estava procurando novas dançarinas para a próxima temporada de espetáculos. A inscrição para o teste custou os cinquenta bits que tinham sido economizados em dois meses de trabalho. Can-Can passou a semana anterior ao teste treinando durante as noites. O pai havia feito uma seleção musical para que a filha pudesse mostrar sua melhor dança de rua e seu balé no palco do teatro. O grande dia se aproximava e a potra tornava-se mais e mais confiante; sabia que sua dança iria impressionar.

“Eu vou conseguir. E quando for parte da companhia, não vamos mais precisar ir para as praças”, a potra dizia num misto de confiança e nervosismo. Era verdade que adorava se apresentar pelas praças da cidade, mas a ideia de dançar em um palco de verdade, com uma plateia de verdade a observá-la era, no mínimo, divina.

Enquanto caminhava em direção ao Grand Theatre, ela imaginava o trovejar dos cascos em aplausos que receberia, e as rosas que seriam atiradas no palco por sua causa. Além disso, imaginava o belo vestido que finalmente compraria para si. Quando ia à praça das camélias, boa parte de si ainda invejava as pôneis que frequentavam Dame Freude. Can-Can era uma pônei de quatorze anos que nunca havia tido uma peça de vestuário que não fosse seu fiel cachecol-toalha de mesa, logo, nutria uma necessidade quase homérica de possuir um vestido só seu.

Mama tinha algum vestido?”, ela perguntou, de repente. Conforme crescia, a vontade de saber coisas sobre a própria mãe aumentava, fazendo com que Turner tivesse que se controlar para não brigar com a filha. Can-Can havia se tornado bastante insistente com o tempo. “Ela era uma pônei de cristal como eu, não é? E a única pônei de cristal que eu conheço e não tem um vestido sou eu.”

Mein liebe, lembre-me de uma coisa. Quantos pôneis de cristal você conhece mesmo?”, Turner perguntou aborrecido.

“Eu... e... eu mesma”, a potra rendeu-se à pergunta, mas não desistiu. “Por que não gosta de falar da mama?”

O pai continuou a caminhar em silêncio por mais algum tempo, procurava uma resposta convincente; a calçada lotada de transeuntes que se esbarravam parecia não lhe deixar pensar direito, e sua filha não seria facilmente convencida. Não sabia o que dizer, não queria contar-lhe sobre a história de amor que tivera com sua bela Frostbite, e sobre o triste término de seu romance.

“Existem coisas que é melhor não falar sobre”, respondeu enfim.

“Mas papa, eu não sei sequer o nome dela, e você não me diz como ela era, não me diz nada, às vezes parece que eu nem tenho uma mama, e...”

“Pense que você não tem uma! Agora cale-se e concentre-se, o dia de hoje é importante demais para ficarmos pensando nessas suas bobagens”, Turner disse da forma mais ríspida que podia, sem olhar para a filha. Nunca falava com ela dessa forma e imaginar o rosto de Can-Can depois de ouvir aquilo partia-lhe o coração; se ousasse olhar, ficaria arrependido pelo resto de seus dias. Mas precisava ser irredutível quanto àquele assunto, pelo menos em relação àquele. Frostbite ainda sussurrava pequenas canções em forma de lembranças dolorosas em sua mente às vezes.

Can-Can trotava olhando o pai, e só não demonstrava mais surpresa porque estava muito magoada com a resposta dele. Os pelos dela brilharam com menor intensidade. O fato do garanhão nem estar mais olhando para ela a machucava. A melancolia causada pelas palavras do pai e pela falta da mãe ameaçavam fazê-la chorar. Quando a primeira lágrima surgia tímida sobre uma pálpebra enfeitada de forma singela por um pouco de maquiagem que havia sido comprada para ser usada apenas em ocasiões especiais – não havia muitas, de fato – Turner foi acometido por um violento ataque de tosse na calçada. Se existia algo que era capaz de fazer com que a potra rubra esquecesse quaisquer problemas, esse algo era a saúde do pai. E infelizmente, a única coisa que podia fazer pelo seu genitor era dar tapinhas nas costas dele enquanto os sons do catarro acumulado no pescoço e no peito dele faziam-na tremer, temendo sempre pelo pior e rezando pelo melhor. Foi um acesso de tosse mais violento que o normal, por causa disso, os dois perderam pelo menos dez minutos até que Turner já se sentisse bem o suficiente para voltar a trotar.

As audições no Grand Theatre seriam feitas por ordem de chegada. Pai e filha chegaram bastante atrasados. Can-Can foi levada por um assistente para os camarins que se localizavam atrás do palco. Turner, como os outros pais e acompanhantes das pretendentes ao cargo de dançarina, foi levado a um lugar na plateia. Sentou-se em uma das várias cadeiras ricamente acolchoadas e observou o ambiente ao seu redor. O teatro era um lugar de encher os olhos, existiam quatro andares de galerias e camarotes que circundavam as paredes do lugar, viam-se no teto pequenas alegorias folhadas em ouro maciço, o lustre de cristal não caberia dentro da casa do flautista, tão grande como era. O palco parecia um templo da própria arte, suas tábuas de madeira cobertas por um verniz brilhante, as suntuosas cortinas carmesim que escondiam de forma imponente os mistérios dos mais célebres espetáculos. O garanhão imaginava como seria tocar em conjunto com uma orquestra num lugar como aquele, uma música grandiosa enchia sua mente conforme sua imaginação deixava-se voar numa vida que poderia ter tido se as coisas fossem diferentes.

De repente, uma potra subiu ao palco após ser anunciada por um assistente. Turner correu com o olhar para os outros membros da plateia, alguns olhavam-no de forma escusa e desaprovadora; é claro, ele não tinha sequer uma gravata para mostrar-se apresentável num lugar como aquele. Ignorou os olhares dos nobres senhores de Germane e continuou a procurar quem quer que fosse o pônei que estaria julgando o desempenho das dançarinas. Não demorou muito a enxergar na primeira fila um unicórnio negro e de crina curta rosa-claro que levitava uma prancheta e uma pena, observando a potra no palco. O garanhão negro perscrutava sem piscar. A pena que levitava em uma aura cinzenta movia-se vez ou outra para fazer uma pequena anotação na prancheta.

Turner saiu de sua cadeira, rapida mas calmamente. Trotou em direção ao juiz da forma mais silenciosa que podia, passando pelos pôneis que agora olhavam-no de forma ainda mais desaprovadora por estar se movendo dentro do teatro no momento em que a potra deveria ser o centro das atenções. Sentou-se, com cuidado, uma cadeira atrás do juiz. Um olhar mais atento à prancheta indicava uma pequena tabela com vários quesitos de julgamento, como técnica, equilíbrio e beleza. Virando a cabeça levemente para fazer uma anotação e verificar as notas que havia dado, o juiz reparou na presença do estranho que estava sentado na fileira de trás.

“Deseja alguma coisa?”, perguntou de forma aborrecida.

“Oh, não, eu queria apenas observar as dançarinas mais de perto”, Turner mentiu. Era bom nisso. “Faço parte da orquestra sinfônica da cidade, vamos ensaiar aqui ao final da tarde. Vim mais cedo”, disse, fazendo sua flauta pairar próxima ao rosto do outro unicórnio.

“Muito mais cedo”, retrucou o juiz, olhando seu relógio de bolso. Duas horas. “Veio ver as dançarinas?”

“Oras, mas é claro! Ouvi dizer que existem algumas beldades entre elas”, Turner afirmou com um sorriso no rosto. “Meu nome é Turner. Breathe Turner. Prazer.”

“Parfait.”

O pai de Can-Can podia ser um ótimo mentiroso quando queria; sua voz era envolvente e divertida, do tipo que se faz ser ouvida com gosto. E após o breve primeiro diálogo, o garanhão cinzento já sabia que Parfait era o tipo de pônei que gostava de uma boa conversa. O juiz mantinha-se com respostas curtas não por antipatia, mas por estar tentando ser o mais profissional possível; e estava no meio de seu trabalho. O flautista não demorou a encontrar formas de fazer o juiz falar, na verdade, foi muito simples.

“Essa potra dança bem, não acha?”, perguntou, fingindo interesse. Pouco se importava com qualquer apresentação que não fosse a da filha.

“Ah, francamente! Ela é tão desengonçada! Olha só para ela, é incapaz de fazer uma pirueta sem perder o equilíbrio... é ridícula”, Parfait disse com rispidez, era um juiz que enchia o peito ao falar de seu poder para contratar ou deixar de lado alguma candidata, era um sujeito razoavelmente petulante, gostava de encontrar imperfeições nas candidatas e, se pudesse, aumentava-as pelo simples prazer de diminuir as qualidades outros de pôneis; fazia anotações a todo momento. “Teríamos que dar aulas de movimentos básicos para que ela pudesse ter uma chance real de entrar para a companhia.”

“É, pensando bem, acho que ela não tem um bom equilíbrio mesmo. Veja, ela quase caiu. Você viu?”

“O quê?! Como? Não vi. Ah, mas ela continua desengonçada, é bem capaz de estar quase caindo mesmo. Jamais vamos contratar essa mula”, decretou o juiz, sua pena riscou o nome da dançarina. “Próxima!”

Turner sabia o que fazer a partir daquele momento. Apesar de confiar plenamente na capacidade da filha, faria o que pudesse para ajudá-la, e, naquele momento, o que podia fazer por ela era apontar os defeitos das concorrentes para o juiz. O unicórnio cinzento fazia pequenos comentários conforme as dançarinas subiam no palco e se apresentavam, “Não acha ela magra demais?”, “Veja aqueles dentes tortos”, “É vesga”, “Parece velha”, “Dançarinas não deveriam ser bonitas?”

E cada comentário era considerado por Parfait; por algum motivo, Turner parecia-lhe fazer sentido, encontrando imperfeições aqui e acolá. Continuava a fazer suas próprias anotações, mas ao dar as notas nos quesitos das fichas que preenchia, era levemente influenciado a diminuir um ponto ou outro. O unicórnio negro jamais havia dado tanto crédito às considerações de outro pônei que não fosse também um juiz. Se precisava julgar sozinho, tinha que fazer isso com concentração total e em silêncio. Se precisasse trabalhar com outro juiz, a responsabilidade dividida e o conhecimento de outro alguém que deveria saber tanto quanto ele faziam o trabalho mais fácil. No entanto, Turner não era um juiz, era apenas um flautista que chegara mais cedo para o ensaio. Parfait gostava dos pequenos comentários duros do flautista. Dúzias de dançarinas subiram e desceram do palco naquela tarde.

“Parece que fui enganado, a maior parte dessas dançarinas é nova demais. As que não são novas estão longe de serem beldades...”, Turner disse com uma decepção que beirava a genuína na voz.

“É nisso que dá acreditar em fofocas”, o juiz retrucou com um risinho. E completou, ríspido, “Mas eu estou impressionado com a falta de habilidade dessas participantes... estou vendo que terei que decidir entre as menos piores para contratar uma nova dançarina para a companhia...”

“Ainda restam quantas?”

“Mais três. São minha última esperança.”

“Aposto que você ainda pode se surpreender”, Turner sugeriu, confiante. Sabia que sua filha seria muito melhor que qualquer outra potra ou égua que subira naquele palco; e com sua pequena ajuda, a aprovação de Can-Can era quase certa. O garanhão enchia-se de expectativa, a chance de dar uma vida melhor para sua pequena estava na sua frente. Parecia-lhe que se estendesse seus cascos, poderia encostar em júbilo e riquezas que flutuavam à sua volta.

“Próxima!”, Parfait gritou.

Can-Can subiu no palco, finalmente. E estava feliz. O assistente que a acompanhara na entrada do teatro havia emprestado para ela uma roupa de bailarina para usar na apresentação, as outras pôneis tinham suas próprias vestimentas e a potra rubra não poderia se apresentar sem roupa, ou seja, dera sorte de encontrar um pônei generoso.

Trotou com a cabeça baixa, olhando para os próprios cascos, até o centro do palco. Nunca estivera em um palco e surpreendeu-se, achou que não era assim tão diferente de uma calçada; deu um risinho bobo para si mesma e olhou para o canto oposto ao qual usara para entrar no palco, onde ficavam os pôneis que faziam o acompanhamento musical das participantes em piano, violino, flauta e tamborim. Os músicos já tinham recebido as partituras que o pai de Can-Can havia separado para a filha. A potra havia treinado sua dança durante noites com muito afinco, não podia errar nenhum movimento. Dessa vez tinha que entreter um juiz, e não os potros que a olhavam de forma abobada. Ergueu-se sobre as pernas traseiras com elegância e fez uma mesura em direção à plateia que seria impossível para a maior parte dos pôneis que já viveu. Sinalizou com a cabeça para que os músicos começassem. Ao toque da primeira nota animada do piano, a potra girou, começando sua fanfarra pelo palco. Seus pelos se acenderam em um brilho muito intenso, típico dos pôneis de cristal mais felizes; seu corpo inteiro fulgurava conforme movia-se habilmente pelas ripas envernizadas, sempre rodopiando e saltitando, suas pernas eram rápidas, seus movimentos graciosos. A potra sorria.

O unicórnio negro tinha uma expressão quase irritada no rosto. “Mas que droga...”, disse num muxoxo. Turner não entendeu e olhou curioso para Parfait.

“Algum problema? Eu acho que essa daí dança muito bem. É de longe a melhor até agora”, o pai falou calmamente, o rosto do pônei juiz indicava que não estava nem um pouco satisfeito.

“Viu como ela entrou no palco? De cabeça baixa, mais parecia uma pedinte que uma artista... e riu sozinha lá em cima...”

“Isso é mesmo tão importante? Veja como ela dança!”

“Tem razão, consertar esse andar tosco dela seria fácil. Muito fácil. É uma pena que esse não seja o maior dos problemas”, Parfait dizia ao riscar o nome de Can-Can da prancheta sem ter feito uma anotação sequer.

“O que está fazendo?”, Turner falou tentando conter o misto de desespero e indignação que sentia naquele momento.

“Esse pessoal da produção... que bando de idiotas! Trinta e oito candidatas. Trinta e oito! E a melhor dançarina entre elas é uma pônei de cristal”, o juiz cuspiu a última palavra com um desgosto assustador que fez o pai da potra rubra se contorcer de raiva em sua cadeira.

Respirou fundo antes de perguntar, “Algum problema com o fato de ela ser uma pônei de cristal?”

“Claro que existe um problema. Ela não deveria sequer poder se inscrever. Um dos idiotas da produção deve ter esquecido desse simples fato”, Parfait resmungou e revirou os olhos, Can-Can dava um show como nenhum outro no palco e ele não dava a mínima atenção.

“Não entendo. Por que ela não pode participar?!”, a voz do unicórnio cinzento quase se alterou ao perguntar.

“Veja ela dançando. O que você vê?”

Turner olhou para a filha. Ela girava, gingava e pulava. E era linda, o brilho de seus pelos era tão invulgar que chegavam a quase cegar. “Vejo uma pequena grande dançarina”, respondeu ternamente.

“Não seja bobo. Eu vejo apenas um monte de brilho. Pôneis de cristal não foram feitos para esse tipo de coisa...”

“Por favor, me diga que este não é o único motivo para você descartá-la assim”, Turner começava a se irritar.

“Na verdade, não haveria outro motivo que não esse. Ela é uma pônei de cristal. Estamos procurando dançarinas comuns, sabe aquelas que dançam ao fundo do palco? Pois é. Se colocarmos uma pônei de cristal entre elas, esse cristal vai chamar atenção demais para si, tirando o foco dos solistas. Ela poderia ser uma solista, já vi pôneis de cristal como solistas e são maravilhosos, mas leva-se anos para que um dançarino da companhia seja escolhido para esse cargo; ela naturalmente não seria contratada como tal aqui e agora”, Parfait disse com desdém, completamente alheio à voz irritada do unicórnio no assento de trás. “Esse tipo de pônei não nasceu para os palcos de grandes teatros como este; não podem dançar em grupo, não podem atuar, etc. Apesar do brilho, vejo que ela não é feia... poderia ser uma modelo. Isso é algo que eles podem fazer, o ramo já se adaptou a eles há muito tempo; quer dizer, acho que ela não pode, nem trota feito um pônei comum. Anda feito uma mula olhando para os próprios cascos”. E riu.

Parfait ria enquanto Can-Can dava o melhor de si no palco. Turner controlava-se com muito esforço; em uma tarde havia sido mais ofendido do que em toda a sua vida. Pensava nos xingamentos que recebera dos muitos vendedores aos quais devera dinheiro, pensava nas palavras violentas que tivera em brigas com amigos e inimigos, pensou também nas discussões que tivera com sua amada, e em muito tempo o flautista não se sentira tão ofendido, tão xingado, como no momento que ouviu sua filha ser comparada a uma mula. Sua pequena pônei, com seu jeitinho gentil, suas palavras doces, sua dança alegre, seu olhar de âmbar sempre cheio de esperança, suas brincadeiras bobas, seus risinhos, seu brilho de felicidade... sua pequena havia sido chamada de mula. E havia sido subestimada e desdenhada. A raiva subia-lhe pela espinha, a fúria à flor da pele, o unicórnio cinzento pensava em possíveis motivos para se arrepender do que faria em seguida. Sua mente não conseguiu captar algum futuro arrependimento, e se porventura pensasse que iria se arrepender, Turner lidaria com isso. Can-Can já não estava mais no palco.

Melhor assim, pensou.

O juiz chegou a dizer, “Próxim...”, antes de ser atingido por um casco que surgiu com força bruta em sua têmpora esquerda, vindo de algum lugar atrás de si. Parfait desmaiou. O garanhão negro não chegaria a lembrar muito bem o que aconteceu naquele final de tarde, saberia apenas que conversara com um flautista da orquestra da cidade; e ficaria com uma forte dor de cabeça durante a semana.

Após acertar o unicórnio mais petulante que conhecera, Turner levantou-se da poltrona e trotou apressado, porém controlado, em direção à saída do teatro. Um olhar sobre o próprio ombro mostrou-lhe que alguns dos outros pôneis no recinto se dirigiam para acudir o unicórnio desacordado. O pai trotou até um dos corredores laterais que levavam aos camarins, um dos assistentes de palco foi buscar Can-Can a pedido de Turner. A potra rubra estava animada.

Papa, o que achou?”

“Perfeita, mein liebe, perfeita. Agora temos que ir.”

“Mas e os resultados? Preciso saber o que o juiz achou!”

“Filha, você foi ótima. E aposto que o juiz adorou sua dança, mas precisamos mesmo ir embora”, Turner odiava mentir para sua pequena, mas já não aguentava permanecer ali; fora o fato de que poderia ter muitos problemas por ter agredido outro pônei de forma tão violenta. “E eu não estou me sentindo muito bem...” Fingiu tossir. O pai jamais se perdoaria por usar sua saúde como desculpa para fazer a filha concordar em ir. Sabia o quanto Can-Can se importava em cuidar dele, na verdade, sabia o quanto a filha se preocupava em cuidar dos pôneis que gostava, pois certa vez usara o próprio cachecol para enfaixar a perna de Sticks, que caíra feio durante uma brincadeira e tinha um joelho dianteiro sangrando. A potra aquiesceu com a cabeça, tinha um olhar consternado no rosto, e começou a trotar ao lado do pai, que já se adiantava para as portas do teatro.

A volta para casa foi silenciosa, Can-Can e seu pai caminhavam lado a lado pelas ruas da Germane, a neve caía em flocos suaves, formando uma fina camada de geada que cobria as pedras de mármore da parte alta da cidade. A potra temia pela saúde do pai, esperava cheia de medo pelo momento em que ele começaria a tossir. Em contrapartida, Turner pensava somente em chegar logo em casa. Com o rosto fechado numa expressão de desgosto que a filha não estava acostumada a ver, o unicórnio cinzento batia seus cascos no chão como um potrinho, tentando aliviar a raiva que ainda sentia.

“Algum problema, papa?”, Can-Can perguntou, seu olhar preocupado fez com que o garanhão se lembrasse de que ela não tinha tomado conhecimento do que ele fizera no teatro e agir daquela forma só iria assustá-la.

“Eu... apenas não me sinto muito bem”, respondeu. E logo arrependeu-se, pois sabia que acabava de deixá-la mais preocupada. “Quero chegar em casa e jantar, estou morrendo de fome.” Então forçou o pior sorriso de sua vida para tentar apaziguar o coração da filha.

“Oh, certo...”, ela concordou baixinho. “Eu queria muito mesmo saber o que o juiz achou da minha dança...”

“A produção deve mandar cartas para as dançarinas que forem escolhidas...”, Turner mentiu de novo.

“Eles vão mesmo mandar cartas para as potras que forem escolhidas?”

“É claro que vão, filha. É apenas uma questão de tempo para sabermos o que ele achou da sua apresentação”, Turner disse aquilo de forma tão inexpressiva que sequer pôde acreditar em sua própria mentira. Sua pequena, no entanto, motivada pela confiança cega que uma filha nutre por seu pai, acreditou em cada palavra e seu coração se enchia na expectativa da visita do carteiro na manhã seguinte.

Chegaram em casa quando o sol se pôs, não haviam conversado muito mais durante o percurso, Turner procurava formas de dizer à filha que não deveria ter esperanças quanto ao teste. Ele sabia que sua mentira faria um bom trabalho para que ela esquecesse a história de dançar em um teatro, afinal, carta alguma jamais chegaria; ainda assim, conhecendo sua cria, imaginava que Can-Can perderia seu tempo esperando o carteiro apenas para ficar decepcionada ao perceber que não havia uma carta endereçada a ela.

Uma panela era aquecida no fogão enquanto o garanhão estava sentado em seu sofá, Can-Can olhava pela janela da sala em direção à rua, observando os flocos de neve caírem no chão – parecia perdida em pensamentos. Seu olhar indicava que sua mente estava muito distante dali. Suspirou e em seguida sorriu para o próprio reflexo na janela. O pai perguntava-se de onde vinha aquele estado contemplativo da filha. Can-Can pensava em visitar Sticks no dia seguinte, os anos que passavam conseguiram deixá-las ainda mais próximas, eram mais que confidentes uma da outra.

Mein liebe, eu acho que você não devia ficar tão animada com essa história do teatro, sabe?”, ele disse finalmente.

“Por que não, papa?”, ela perguntou de sobressalto, virando-se para encará-lo, seu olhar agora era menos sonhador e mais confuso. “Acha que eu não fui bem o suficiente?”

“Claro que você foi bem, filha. Apenas... esses pôneis de teatro são muito cheios de fricote e... sabe que eu ouvi aquele juiz desclassificar uma égua por ter pernas um pouco finas?”, Turner disse, inseguro. Não queria contar a verdade à filha, tampouco queria continuar mentindo.

Can-Can olhava apreensiva para o pai. Desviou o olhar para as próprias pernas por um instante e respondeu confiante, “Não tenho problemas com pernas finas.” E levantou um casco dianteiro com elegância.

Mein liebe, essa não é a questão.”

“Então qual é? Eu danço bem, minhas pernas são perfeitas, minha crina estava arrumada, as fitas da minha cauda ainda estão no lugar, eu estava até usando roupa de bailarina!”, ela disse, começando a ficar irritada.

“É que... eu só... não quero que você tenha esperanças em algo que pode não acontecer.”

Papa, você mesmo disse que tinha certeza que eu seria aprovada!”

“Sim, sim... Deixe isso para lá, filha. Já está tarde. Vá dormir”, Turner falou e suspirou, sua mente ainda estava cheia com as coisas que Parfait havia dito. Se aquele pônei tivesse alguma razão no que falava, sua filha não subiria em outro grande palco durante sua vida e isso o machucava profundamente em muitos sentidos. Parecia ao pai que sua pequena jamais deixaria de dançar nas calçadas. Que tipo de loucura é essa? Como pode um pônei de cristal não ser aceito no teatro?! Não vou deixar minha Can-Can se apresentar na rua pelo resto da vida!, pensava consigo enquanto a potra rubra trotava devagar em direção ao quarto. A mente da filha se enchia de dúvidas com as palavras sem sentido do pai; uma parte dela pensava que o pai não queria admitir que ela não havia sido boa o suficiente, outra parte de si dizia que ele devia estar apenas nervoso no lugar dela. Caminhou com calma, olhava para o chão enquanto pensava.

“Can-Can!”, o chamado do pai a fez parar a meio caminho para o quarto.

“Sim, papa?”, ela retrucou insegura e virou para encará-lo.

“Erga a cabeça quando trotar. Você é uma artista, não uma pedinte”, Turner ordenou, aquelas palavras ainda tinham um efeito negativo sobre ele, deprimindo-o.

“Certo”, Can-Can aquiesceu e virou-se de novo para o quarto. Teve que se forçar a erguer a cabeça, desde pequena trotava encarando o chão ao pensar. Tomando uma postura altiva que lhe era incomum, a potra continuou seu caminho. Entrou no quarto e fechou a porta atrás de si, deixando o pai sozinho na sala.

Deitou-se na cama, que chiava e tremia, era muito velha e sempre ameaçava desabar. Sou uma artista, a própria voz ressoava em sua mente repetidas vezes. Can-Can mantinha ainda boa parte de sua confiança infantil, era uma dançarina não apenas porque adorava dançar, mas porque era muito boa nisso. E sabia que era muito boa. Algum tempo deitada olhando para o teto fez com que se lembrasse de que havia ido para a cama sem jantar e parecia que o pai também esquecera de servir a comida. Desceu da cama da forma mais silenciosa que pôde e colocando os cascos dianteiros debaixo dela, tirou de lá um pequeno pote de vidro pouco maior que uma caneca de sidra. Ali guardava biscoitos que sua princesa fazia especialmente para ela.

Sticks era a fonte do estado contemplativo e distraído de Can-Can que Turner não conseguia reconhecer. Can-Can afeiçoara-se à pônei terrestre de forma muito intensa. Pensar nela trazia coisas boas e sensações reconfortantes à potra rubra, e estar junto dela fazia com que seus pelos brilhassem quase tanto quanto ao dançar. Quando conseguiam um tempo maior para passar juntas, a dançarina ensinava a princesa a dançar; e um dia a princesa ensinou a dançarina a beijar.

A pônei de cristal não tinha muita certeza sobre quando começou a gostar da amiga daquela forma. Nunca fora muito próxima aos potros do bairro, dificilmente pensava em namorar, e com Sticks simplesmente acontecera.

Comia os biscoitos sentada na cama, o gosto das gotas de chocolate fazia com que saboreasse cada mordida como se fosse a última. Sua mente sonhadora viajava nas conjecturas bobas de quem ama: o que será que ela está fazendo agora? Eu queria poder ir até a padaria mais vezes... Talvez ela esteja pensando em mim agora!

Can-Can dava risadinhas para si mesma, abraçada a um travesseiro que deixava escapar uma ou duas penas de vez em quando. Estar apaixonada era algo novo e a potra adorava a sensação. Era como se seu coração rodopiasse dentro do peito. De repente, olhou para a estante e alguns segundos depois tinha consigo, na cama, A Pena e o Lírio. O livro estava bastante desgastado por causa do tempo, suas páginas agora eram de um amarelado fosco, envelhecido; as passagens do livro mantinham-se intactas, no entanto as belas ilustrações começavam a desaparecer em meio a marcas de umidade que surgiam por todas as páginas. Seu livro preferido parecia doente, e não havia nada que pudesse fazer para que ele não continuasse a se deteriorar.

Mas, Can-Can não estava preocupada com o estado deplorável de seu livro. Naquele momento olhava as figuras e colocava mentalmente a si mesma e a Sticks no lugar dos personagens. Pensava no que a princesa diria se soubesse o que estava fazendo. Provavelmente, algo como, “Você é tão boba, Can-Can”. E a isso, a potra rubra responderia com um sonoro, “E você gosta de mim mesmo assim”. E então as duas estariam rindo de toda a bobagem. A pequena dançarina perdia-se tão facilmente nesses pensamentos que às vezes o pai precisava gritar com ela para chamar sua atenção, o que causava alguns momentos um tanto constrangedores quando ele perguntava se podiam começar uma apresentação na praça e a potra estava com a mente vagando a esmo.

Can-Can havia sido atingida em cheio pelo seu primeiro amor.


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