De laços e fitas escrita por Literate


Capítulo 21
Capítulo 21




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Na noite seguinte, Can-Can já voltara a sua rotina. Se apresentava na hora do almoço numa taberna, usando um nome. E à noite se apresentava em outra, com outro nome. Seis meses fazendo isso a deixaram boa em fingir. Velvet Red sonhava em se casar com um garanhão bom e rico. Rouge Fanfare queria ser mais famosa que todas as divas pop que existiam em Equestria. Scarlet String visava ser descoberta por algum pônei importante na plateia, para levá-la ao estrelato, fosse como atriz, como modelo, ou como dançarina mesmo. Red Viper queria apenas se divertir, dizia que dançava nas tabernas pela emoção. Cada uma das diferentes éguas que Can-Can interpretava possuíam verdades mescladas em mentiras. A égua rubra sonhava em encontrar um pônei especial, um dia; desejava ser famosa; se fosse descoberta por alguém na plateia, que bom; e, apesar de não dançar somente pela diversão, amava o que fazia. Era muito mais fácil mentir aumentando pequenas verdades.

Desta vez era Rouge, dançando no ‘Trottingan’, uma das maiores tabernas nas quais trabalhava. A casa estava cheia. A dançarina usava sua típica saia de babados, muito remendava e um pouco surrada; felizmente a maior parte da audiência não parecia notar esses pequenos detalhes. Como Rouge, Can-Can costumava usar uma peruca loira, e colocava apliques da mesma cor na cauda. Rouge cantava mais que as outras personagens, e ao final do show sempre bradava para que os pôneis da plateia guardassem seu nome. Em seguida, geralmente escolhia uma mesa para conhecer gente nova, porém, não tinha o ânimo para tal. Em vez disso, dirigiu-se ao balcão para pegar seus alforjes e o pagamento da noite. No entanto, ao pedir pelo pagamento, o dono do estabelecimento fez um simples movimento com o casco, como se a estivesse enxotando dali.

“Ei, cadê o meu dinheiro?”, Rouge perguntou pela segunda vez.

“Não vai ter um tostão essa noite, potra”, o taberneiro, um unicórnio atarracado e grandalhão, chamado apenas de Rusty, respondeu num grunhido.

“O quê?!”

“É isso mesmo. Um amigo disse que te viu dançando lá na ‘Galloway’. Tá trabalhando pra mim e pro meu primo?! Aquele desgraçado tá faturando contigo também. Tu dança melhor lá do que aqui. Enche aquele moquifo de pôneis, e aqui três gatos pingados te veem dançando!”

“O Herr enlouqueceu?! Como poderia ser eu?”

O garanhão trotou para o outro lado do balcão e puxou com força a peruca da cabeça de Can-Can. Arrancou até mesmo alguns fios do próprio cabelo dela no processo. “Tu usa peruca! Então é verdade!”, ele vociferou. “A potra dos cabelos prateados! É tu mesma, desgraçada!”

“E daí, se sou eu? Sempre que eu me apresento aqui, o lugar fica lotado!”

“Calada!”, o unicórnio gritou e deu-lhe um tapa. Can-Can mal acreditou no que acabara de acontecer. Ele tornou a falar, “Com tanto lugar pra ti trabalhar, escolhe justo lá? Ficou doida?! Tá demitida, não vou te dar mais nenhum dinheiro. E ai de ti se resolver aparecer aqui por perto de novo!”

O unicórnio gritava e mostrava o casco para ela de forma ameaçadora. Entre os clientes, poucos se importavam com o que acontecia, a maior parte deles não era nenhum herói, tampouco tinha álcool suficiente no sangue para ter disposição de levantar ou a coragem necessária para enfrentar o taberneiro. Os pôneis que não eram capazes de diferenciar uma dançarina de uma prostituta achavam aquilo uma cena quase comum. A pobre vedete queria que Allegro estivesse ali para ajudar, mas ele ainda não voltara de viagem.

Can-Can voltou a sentir-se como uma potrinha por apanhar. No entanto, já era uma égua adulta e podia se defender. Não pensou duas vezes. Girou, levantou as pernas traseiras o mais alto que pôde e acertou o taberneiro, em cheio, no rosto.

Ele caiu para trás, mais surpreso que sentindo dor. Um dente dele voou pelo salão. Rusty massageou o queixo e fuzilou-a com o olhar. Seu chifre brilhou em amarelo e, no segundo seguinte, lançou contra ela uma rajada de magia. A égua rubra abaixou-se, desviando-se do raio por poucos centímetros. A magia atingiu um cão-diamante que estava sentado numa mesa próxima e atirou-o pela janela. O cão estava acompanhado de dois amigos que se levantaram de imediato para tirar satisfações com o unicórnio em vez de irem ajudá-lo. Rusty já se levantara e disparava de novo contra Can-Can. Ela correu pelo salão, esquivando-se dos raios como podia. Até escondeu-se atrás de um outro pônei para escapar.

Não demorou muito para que o lugar fosse transformado numa versão em miniatura do tártaro, com garras, dentes e cascos lutando de forma selvagem. Uma típica briga de bar estava formada. Logo, pégasos voavam pelo estabelecimento, escoiceando os inimigos na cabeça; dezenas de raios mágicos eram lançados pelo local e tinham efeitos variados, alguns causavam explosões, outros queimavam, ou eletrocutavam. Can-Can viu um pônei ser transformado em um coelho diante de seus olhos. Tentou galopar para a saída, mas um pônei se interpôs em seu caminho e fê-la recuar. Era um dos filhos do taberneiro, tentando acertá-la com coices. Ela se esquivou e deu-lhe um escorão que levou ambos ao chão. Por sorte, caíra por cima e logo se levantou para fugir. Não foi muito longe até que sentisse um par de cascos bater com força contra sua cabeça; nem viu qual pégaso havia feito aquilo. Caiu de cara no tapume, sua cabeça girava, a visão estava embaçada e perdera a audição por um instante. Um grupo de pôneis em fuga galopava para a saída, e não fizeram um esforço muito grande para se desviarem de Can-Can. Pisotearam a perna traseira esquerda dela. Uma dor excruciante subiu do membro até a cabeça da pônei de cristal que chorou alto.

Rusty brigava com um dos cães ainda de pé quando ouviu o grito da vedete. Tratou de lançar um raio no adversário, subjugando-o, e pôs-se a trotar na direção de Can-Can. Cada um de seus passos era pesado e ameaçador.

Sem chances de se levantar para fugir, a égua rubra tentava se arrastar para longe. Quando percebeu que o taberneiro vinha em sua direção, ela foi para debaixo de uma mesa. Desesperada, fazia preces para as princesas. De súbito, uma explosão acima de sua cabeça fez a mesa se dissolver em cinzas. Com medo, Can-Can se arrastou de novo para fugir. Chegou noutra mesa, que foi atirada para longe pelo chifre do taberneiro. Por sorte, antes que ele pudesse se aproximar ainda mais, um grupo de pégasos atacou o garanhão. Enquanto lutavam no salão, ela se esforçava para ir até qualquer outro lugar. Talvez, se chegasse a uma janela, pudesse escapar. O teto da taberna pegava fogo; muitos já haviam desistido da briga para preservarem suas vidas.

Can-Can chegou numa mesa próxima a uma janela. Fez o seu melhor para ficar sobre três patas. Estava fraca e se equilibrar era difícil. Abriu a janela na terceira tentativa e apoiou-se para pular para fora. Antes que conseguisse, no entanto, um raio a atingiu nas costas. Uma sensação de queimação correu por todo o seu corpo e quase a fez desmaiar. Ela caiu, sem forças. Respirar doía muito. Chorar só piorava a situação. Não conseguia ver muita coisa, a fumaça tomara conta do lugar.

Rusty foi até ela bufando de raiva. Tinha espuma na boca. Seu chifre brilhava fortemente.

A vedete encarou-o tonta. Quando viu o brilho amarelo daquele chifre mais uma vez, chamou pelo pai. Sentiu uma profunda sensação de queimação no rosto, como se ele fosse derreter a qualquer instante. Foi cegada pela luz amarela. Ouviu um barulho de estouro e perdeu os sentidos.

*** *** ***

Can-Can acordou devagar. Estava deitada. Sentia um latejar constante na cabeça. Seu olhar levou algum tempo para se acostumar com a claridade; tinha a visão bastante embaçada. Piscou os olhos algumas vezes. Seu corpo todo ainda estava dolorido. Tentou falar, mas sentiu uma ardência na garganta e tossiu. Isso chamou a atenção de alguém, pois ouviu passos se aproximarem. Tremeu.

“Sh... vai com calma”, disse uma familiar voz de égua. Após piscar mais algumas vezes, a vedete reconheceu Silk ao seu lado. Não era uma visão muito satisfatória, mas ver alguém conhecido e que não queria matá-la era bom.

Can-Can estava numa cama de hospital. Tinha um quarto para si, aparentemente.

“A Rain pediu pra eu ficar aqui com você, porque todos estão ocupados”, a modista explicou. “Seu amigo passou o dia na delegacia, tratando de colocar aquele taberneiro na cadeia. Um monte de testemunhas viram ele tentar te atacar.”

“Há quanto tempo...”, Can-Can sussurrou, sua voz saíra fraca e rouca.

“Dois dias desde a confusão na taberna. Muita gente se feriu, mas o seu estado era o pior”, Silk falou, parecia haver pesar em sua voz.

A vedete olhou para o próprio corpo, avaliando sua situação. Estava coberta pela manta do hospital, mas com todas as dores que sentia, era fácil imaginar que estava cheia de hematomas. Sua perna esquerda traseira estava engessada. No gesso, pequenas frases haviam sido escritas com canetas coloridas – provavelmente Skylark. Tentou levantar os cascos, mas estava fraca. Silk perguntou se queria algo e Can-Can respondeu que não com a cabeça. Sentiu um formigamento no olho esquerdo. Quis levantar um casco mais uma vez, para coçar, mas não obteve sucesso.

“Finesse veio fazer uma visita ontem, ele queria ver se você estava bem. E saber o dia em que poderia voltar a trabalhar”, Silk mencionou, de repente. “Rain foi falar com ele hoje, pra ver se você ainda pode ter o seu trabalho de volta.”

Can-Can não entendeu e perguntou o que a modista queria dizer.

Hesitante, a modista procurou palavras. Em vez de dizer algo, usou magia para flutuar um espelho até o rosto da vedete. O que Can-Can viu a assustou de início: seu olho esquerdo não passava de um glóbulo branco, sua íris mal se via, e uma grande cicatriz horizontal na pálpebra inferior rasgava seu rosto. Só naquele instante percebeu que seu campo de visão havia diminuído. Estava cega de um olho! Pior ainda, se achou horrorosa ao olhar-se no espelho. Começou a soluçar.

“Os médicos disseram que a cicatriz vai diminuir, que não precisa se preocupar. Mas também disseram que esses ferimentos feitos por magia dificilmente curam, então... sua visão...”, Silk murmurou, não gostava da pônei de cristal, mas não queria ter de dar notícias tão ruins a ela.

Chorando baixinho e fracamente, Can-Can ficou estirada no colchão. Sua cabeça doía bastante. Queria muito um abraço, porém jamais pediria um a Silk. Chorou até que não tivesse mais lágrimas. A pônei ciano ficou em silêncio, no canto da sala, sentada numa cadeira.

Pareceu uma eternidade até que Skylark e Nightingale entraram no quarto. Traziam bombons e um buquê de camélias. Olharam de esguelha para a modista e se dirigiram tristes ao leito. Can-Can tinha sofrimento estampado no rosto; não queria que as amigas a vissem daquele jeito. Ficou calada, encarando as duas, sem saber o que dizer. Gale deixou os presentes numa mesa de cabeceira ao lado da cama. Sky se aproximou da vedete vermelha e abraçou-a. Can-Can começou a chorar de novo. Gale se juntou ao abraço logo depois e Silk saiu da sala discretamente.

Gale se afastou do abraço e passou um casco pela testa da égua na maca, arrumando sua crina; balbuciava palavras de apoio. Sky olhou bem para o rosto da amiga e, sem aviso ou hesitação, beijou-lhe o olho com carinho, fazendo-a chorar ainda mais.

“Calma, calma... você tá enxergando, é isso o que importa”, Sky consolou.

“O seu médico disse que o que sobrar dessa cicatriz vai ser quase imperceptível”, Gale ajudou. As irmãs tinham expressões cheias de pena.

“E a minha perna?”, Can-Can sussurrou entre os soluços.

“Vai ficar como nova, é só esperar o tempo certo e não fazer muito esforço”, Sky explicou com uma dose de ânimo. “Daqui a pouco vamos dançar juntas de novo. Você vai ver.”

Lamuriando-se, Can-Can disse, “Até parece que Herr Grandiose vai me deixar subir no palco com metade da minha cara faltando”.

“Por Celestia, é só uma cicatriz”, Gale replicou.

“E um olho!”, Can-Can rebateu em voz alta. Logo se arrependeu, pois, gritar havia produzido uma forte dor de arranhar na garganta.

“Já ouviu falar de lentes de contato?”, Gale perguntou e foi censurada por um olhar de Sky, que voltou a abraçar a amiga que soluçava baixinho. A pônei bege se desculpou e olhou para os próprios cascos. As três sabiam que as dançarinas contratadas do cabaré passavam por uma avaliação física minuciosa, para garantir a qualidade das apresentações da casa. Mesmo se Can-Can usasse lentes, dificilmente a cicatriz na pálpebra passaria despercebida. E ainda que maquiagem pudesse esconder o defeito em seu rosto, Finesse não gostaria de colocar uma vedete no palco naquele estado. As dançarinas do Sun precisavam ser perfeitas.

“A Rain vai falar com o Finesse. Ele queria você de volta, veio aqui ver como você estava e tudo mais. Os pôneis querem te ver de novo naquele palco”, Skylark assegurou. Em pé ao lado da cama, segurava um casco da pônei de cristal. “Ah! Eu fiquei sabendo que o Clean vai vir passar a noite aqui contigo.”

“Não, por favor. Eu não quero que ele me veja assim”, Can-Can implorou.

“Sinto muito. Ele já te viu assim”, Skylark murmurou, parecia ter tentado brincar, mas nem ela mesma riu.

Nightingale balançou a cabeça negativamente para a irmã e comentou, “Vai fazer bem pra você, ficar um tempo com ele. Todo mundo acha que vai ajudar na sua recuperação”.

Can-Can bufou e tentou virar no colchão. Sentiu uma dor intensa vinda das costas e gritou; suas amigas a acudiram e disseram que não deveria se mover.

“Um raio te atingiu pelas costas. Não foi tão poderoso quanto... enfim, deixou uma queimadura feia. Vai sarar, não se preocupa. Estão tratando disso com magia. Tiveram de raspar uma parte da sua costa, mas os pelos vão crescer de novo, e direitinho, o médico prometeu”, Nightingale esclareceu e tentou sorrir.

“Me deixem sozinha, por favor”, Can-Can pediu. Queria chorar em paz; e já não aguentava mais os olhares cheios de dó que recebia. As irmãs se entreolharam, decidiram atender ao pedido e saíram em silêncio.

Weather chegou ao final da tarde. Entrou em silêncio no quarto e sorriu ao ver a amiga acordada. “Você vai matar todo mundo de preocupação algum dia. Herr Turner teria tido um ataque”, ele disse brincalhão. Estava muito contente de ver Can-Can acordada e se recuperando. Ela não respondeu e virou o rosto no travesseiro para que seu olho esquerdo ficasse menos visível.

O pégaso se aproximou, colocou um casco na cabeça da amiga, fazendo um afago leve, e perguntou, “O que foi?”

Mais uma vez, ela não respondeu.

“Achamos que você podia morrer, sabia? Aquele seu amigo músico viu que o que tinha acontecido na taberna pelo jornal e avisou a gente”, Weather contou. “Se não fosse por ele, a gente ia demorar muito mais para descobrir.”

“Minha vida está acabada...”, Can-Can sussurrou, negativa.

“Daqui de onde eu olho, parece que ela foi salva”, o pégaso brincou.

“Não vão me deixar voltar ao Sun para dançar. E até a minha perna ficar melhor, eu não tenho como me sustentar! Minhas contas vão atrasar”, a vedete lamentou com os olhos marejados. Chorava não pelas contas, mas por sentir-se aleijada e derrotada pela vida.

Fraülein Balance e minha mãe estão mais do que dispostas a ficar cuidando de você. Vamos ajudar”, o amigo afirmou confiante.

“Mas e depois?! O que eu vou fazer da vida? Quem vai contratar uma dançarina caolha?”

“Você não precisa de olhos pra dançar. Precisa de pernas. Pelo menos três delas”, ele troçou mais uma vez e deu seu sorriso mais jocoso. “Para de fazer tempestade em copo d’água. Você pode usar lentes. Ou um tapa-olho! Os pôneis podem achar misterioso.”

“Clean, deixa de ser idiota! Uma vez só, por favor”, Can-Can replicou, muito mais decepcionada que aborrecida.

“Melhor assim! Muito melhor brava que triste!”

A pônei de cristal xingou-o em voz alta.

“Desculpa. Só queria te fazer rir. Se rir um pouquinho, ninguém nem repara no seu olho, sei disso”, ele disse carinhosamente. Lembrou-a de um outro momento em que ele lhe dissera algo assim, há muito tempo, quando ela estava triste. Um sentimento de paz veio junto com a lembrança.

“Além do mais, não quero que você quebre a minha cara como quebrou a daquele pônei no bar”, ele acrescentou, rindo.

“O quê?”

“Uma ‘testemunha ocular’ contou pra Sky que viu você escoicear a cara de um pônei com tanta força que quebrou a cara dele e a sua própria perna no processo.”

“Está brincando, não está?”, Can-Can disse, incrédula.

“É o que os pôneis estão comentando. Você é uma lutadora”, Weather falou com um largo sorriso no rosto.

Can-Can não pôde conter um riso fraco – que mais pareceu uma tosse – ao imaginar a cena. “Essa testemunha existe ou é só a Sky espalhando histórias de novo?”, perguntou, de melhor humor.

“Acho que nunca saberemos, mas eu ouvi alguns dos enfermeiros conversando sobre isso. Eles discutiam se seria possível”, Weather retrucou. Ambos riram diante de tamanha bobagem. Solidário, o pégaso afagou o rosto já menos triste da amiga.

“Obrigada. Você sempre consegue me fazer sentir bem”, ela murmurou e fez um esforça para estender os cascos. Weather envolveu-a com patas e asas, no abraço mais protetor que era capaz de dar, e o que mais a agradava. Quando a largou, ela tentou dar algum espaço na cama para que ele se deitasse.

“Se alguém vir a gente assim, vai pegar mal”, Weather avisou, deitando. Estavam muito juntos um do outro.

“Só me abraça. Eu senti muita saudade disso”, ela respondeu em voz baixa e se aconchegou no peito dele.

Envolveu-a com cuidado mais uma vez, Weather ficou ali até o momento em que ela adormeceu.

Na manhã seguinte, acordou sozinha na cama. Piscou e tentou se esticar um pouco, mas dor na costa a impediu de fazer um movimento mais brusco. Chamou pelo amigo, ele não respondeu. Em vez do pégaso azul, um unicórnio cinza estava no quarto junto com ela. Allegro aproximou-se e desejou bom dia. Can-Can tentou não deixar o amigo perceber sua decepção por encontrá-lo ali no lugar de Weather.

“Como você está?”, o unicórnio perguntou preocupado.

“Melhorando”, ela respondeu, sucinta. “E com sede.”

Allegro buscou um copo d’água para a amiga e deu-lhe de beber.

“Precisamos conversar”, ele falou enquanto a ajudava, segurando o copo com magia.

Can-Can lançou-lhe um olhar de dúvida.

“Quase todos os pôneis da zona sul sabem do incêndio na taberna. Fofoca vai, fofoca vem, a notícia da confusão ter começado com aquele garanhão idiota não querendo pagar uma dançarina que ficou ferida em estado grave e se recuperava no hospital, e depois você faltou o emprego em lugares diferentes... bem, pôneis começaram a juntar as peças”, ele comentou evasivo, como se não quisesse chegar ao ponto.

Can-Can pediu, com um gesto de casco, que ele afastasse o copo. “O que quer dizer?”, inquiriu temerosa.

“De uma forma ou de outra, você foi demitida de todas as tabernas. Fosse por trabalhar também em lugares concorrentes, ou por acharem que você é uma farsante que estava se fazendo em cima do dinheiro dos taberneiros burros. De certa forma – mais ou menos ruim, você é quase famosa”, Allegro explicou.

O queixo da égua rubra caiu. Demorava para entender o que havia ouvido. “Eu não tenho mais nenhum emprego”, disse aturdida. Seus olhos se moviam para os vários cantos da sala, como se pensasse em alguma solução para a situação em que acabara de se meter.

“Ontem eu ouvi o Herr dono do Ferradura Enferrujada espalhar pra clientela que você era mesmo uma víbora. A maior parte dos pôneis fala de você como Red Viper. Não sabem quem você é de verdade. Menos mal, eu acho.”

“Aquele velho asqueroso!”, Can-Can exclamou, sobressaltando-se. Sua cabeça latejou de leve e teve de se obrigar a relaxar um pouco.

“Eu... acho que nenhum taberneiro está disposto a te dar um emprego agora”, Allegro constatou, cauteloso, como se temesse que a amiga descontasse a raiva nele.

“Para o Tártaro com eles!”, ela bradou, e seguiu xingando todos os malditos velhos garanhões para quem ela já pedira emprego, a quem ela já havia falado com voz doce, a quem a tratara como uma mera empregada no salão, a quem se negara a dar-lhe um aumento merecido. Não gostava da maior parte de seus empregadores na zona sul, mas tinha de aturá-los, e, na medida do possível, respeitá-los, para manter o emprego. Tinha raiva de alguns, nojo de outros. Havia ainda pôneis com os quais ela simplesmente não simpatizara. Fato era que precisava ganhar a vida de algum modo, e se para dançar precisava lidar com uma escória de taberneiros, que fosse. Mas agora encontrava-se sem emprego e mal falada pela cidade, e havia pouco que pudesse fazer para remediar essa situação. Então fez a única coisa que podia naquele momento: falar mal dos taberneiros e confessar todos os podres que conhecia deles ao amigo; Bistrô dava em cima de quase todas as éguas que entravam no salão de sua taberna; Proud Mount espancava as filhas; Dame Flower misturava água na cevada para fazer render mais; Burst era bastardo; Flicker servia palha de segunda aos clientes; Oak flertava com todas as suas empregadas. Can-Can não calou a boca durantes vários minutos, era surreal a quantidade de taberneiros de caráter duvidoso que havia em Germane.

Estava com raiva e não sabia como extravasar de uma forma melhor. Quando terminou de falar, sua cabeça doía e teve de pedir que Allegro chamasse uma enfermeira para medicá-la. Após engolir uma pílula e agradecer a égua vestida de branco, falou para o amigo, “Isso é tudo culpa de Herr Grandiose! Se aquele balofo não tivesse me dispensado, nada disso teria acontecido!”

“Can-Can, você está exaltada. Calma, respira um pouquinho”, disse o unicórnio, num esforço para apaziguá-la.

“Está bem, está bem”, ela murmurou aborrecida.

Dois toques tímidos na porta precederam a entrada de Rain no quarto. Allegro suspirou, pediu licença e saiu para tomar um café, deixando-as sozinhas.

“Oi”, a égua manchada cumprimentou.

“Oi.”

“Fiquei preocupada. Pedi pra Silk vigiar você ontem porque tive um ensaio”, Rain explicou, pouco à vontade.

Respirando fundo, a pônei de cristal tentou se acalmar para continuar a conversa. Já que estou recebendo todas as notícias ruins de uma vez, que se dane, pensou. “Vocês duas...”

“Namoramos e terminamos muito tempo antes de eu te conhecer, bem verdade. Não esperava voltar com ela, mas...”

“Podia ter me avisado, sabe? Eu fiquei longe, nos distanciamos um pouco, tudo bem. Mas eu não precisava descobrir daquele jeito.”

“Eu ia te contar. A Sky até fez aquela fofoca de que eu estava falando muito com a Silk. Nós começamos a nos entender de novo depois que você saiu do Sun. Não era nada sério, eu juro. Você me conhece, sabe que eu não queria compromisso, as coisas foram acontecendo.”

“A desgraçada esperou eu me afastar para dar em cima de você”, Can-Can resmungou, estava perto de voltar a cuspir xingamentos.

“Ei, calma. Eu tenho tanta culpa quanto ela. E convenhamos, nós não éramos namoradas, e eu sempre achei que você estava de bem com isso.”

“Não tenho problema nenhum com isso, mas é que eu estava doida para ficar junto de você naquela noite e você estava agarrada com outra na minha frente!”, a égua rubra explicou e bufou de raiva.

“Eu sinto muito, de verdade. Somos amigas, não somos? Eu quero a sua felicidade, você não quer a minha? Não quero ficar brigada contigo.”

Touché. Rain acabara de acertar Can-Can no ponto certo, nos sentimentos. A pônei de cristal não podia dizer que preferia a infelicidade de uma de suas amigas, mesmo que a desagradasse. Silk havia tentado ser civilizada e gentil, talvez apenas porque sabia que tinha vencido e conseguido o que queria, mas isso não fazia seu esforço menos valioso. Agora cabia a Can-Can saber seu lugar e entender que estava sendo teimosa sem motivos consistentes. Burra, pensou.

“Amigas?”, Rain perguntou, pois não conseguiu aguentar o silêncio.

“Amigas”, Can-Can respondeu num suspiro, ainda meio relutante em se resignar. A égua malhada aproximou-se da cama e segurou o casco esquerdo da amiga entre os seus, reconfortada. A resolução do caso com Rain foi bem menos tensa do que com Sticks, de modo que Can-Can lidaria melhor com aquilo.

“Acabo de perder você no pior momento, aposto que ninguém mais vai querer olhar para a minha cara”, Can-Can brincou e riu amargamente.

“Bobagem, Can-Can. Você está linda como sempre”, Rain disse, apertando o casco que segurava.

“Falou com Finesse, não falou?

A pônei terrestre assentiu em silêncio.

“O que ele disse?”

Rain balançou a cabeça negativamente. Não conseguiu dizer nada. O Sun não contrataria de volta a vedete vermelha, caolha, com uma cicatriz no rosto e uma perna quebrada que, além de levar algum tempo para sarar, talvez ‘ficasse fraca e não voltasse a ser a mesma coisa’, segundo o julgamento do intendente chefe. Can-Can suspirou, triste. Sabia que não teria seu emprego de volta.

“Às vezes parece que essa cidade quer acabar comigo”, disse deprimida, seus pelos não emanavam brilho algum.

“Nós vamos dar um jeito”, Rain murmurou e abraçou-a.

*** *** ***

Um dia a mais no hospital e Can-Can recebeu alta. Teve ajuda de dois enfermeiros para chegar até o táxi que a esperava no portão de entrada. Subiu com esforço na carruagem. Estava acompanhada de Dame Flight, que se oferecera para buscá-la e levá-la à casa de Fraülein Balance, onde ficaria até se recuperar totalmente. O garanhão taxista olhou para a jovem dançarina com pena. Can-Can usava um tapa-olho, mas sua expressão abatida, a falta de pelos em uma parte das costas e a perna engessada – que dificultava, e muito, seu trote – ainda a deixavam com um aspecto derrotado. Ainda estava se acostumando com a diminuição de seu campo de visão e esbarrava com frequência em obstáculos que se pusessem a sua esquerda. Acertara o batente de algumas portas do hospital e sentira-se muito humilhada por isso.

O olhar do taxista não a fizera se sentir nem um pouco melhor. Sentou no banco e suspirou. A pégaso ao seu lado admirava a rua e os prédios próximos. A carroça começou a se mover, balançando leve e ritmicamente.

“Balance preparou o quarto de hóspedes que fica logo ao lado do dela pra você. Assim, se algo acontecer durante a noite, é só chamar. Eu queria que você fosse lá pra casa, mas ela fez questão de ter você por perto”, Flight comentou, distraída pelo tráfego.

“Quero ir para a minha casa”, Can-Can disse num muxoxo, como uma potrinha fazendo birra.

Dame Flight ignorou o comentário da égua rubra e acrescentou, “Vamos cuidar da sua casa. Combinei com Balance de irmos lá limpar de vez em quando”.

Surpresa e pouco à vontade com a ideia, Can-Can perguntou, “É sério?”

“Eu tô aposentada; não me deixam mais voar porque o grau dos meus óculos aumentou demais. Não tenho muito pra me ocupar”, Flight respondeu dando de ombros. Havia sido uma Wonderbolt há muito tempo.

“Não quero dar trabalho”, a vedete murmurou incomodada.

“Deixa de besteira”, a pégaso repreendeu. Considerava a pônei de cristal um membro da família, e estava muito bem-disposta a ajudar. “O dia tá bonito.”

Deixando seus pensamentos negativos e suas preocupações de lado, a égua rubra observou a rua; os pôneis que galopavam puxando carroças; potros trotando e fazendo piadas nas calçadas; o céu repleto de nuvens claras escondendo o sol; as belas fachadas de docerias e cafés; os vestidos que algumas poucas éguas chiques usavam para saírem de casa. Nem mesmo o frio castigador de Germane estava presente naquele dia, o que era ainda mais impressionante, considerando que estavam no inverno e que a cidade passara por uma de suas piores nevascas alguns dias antes. Can-Can respirou fundo, sentiu o cheiro de terra molhada que vinha dos jardins e quintais que margeavam a rua.

“Tem razão”, respondeu para Dame Flight.

Quando chegaram em seu destino, o taxista ajudou-a a descer. Can-Can agradeceu, mas preferiu não o olhar no rosto, pois não queria ver mais uma vez a expressão que ele teve quando a viu pela primeira vez.

Flight pagou o garanhão e ajudou Can-Can a chegar até a porta. Bateu três vezes e esperou. Balance abriu. Seu olhar era tão cheio de dó quanto o do garanhão, mas feriu a vedete duas vezes mais. Eu devo estar uma porcaria mesmo, pensou a jovem, triste.

A professora abraçou Can-Can com força e convidou-as a entrar.

“Quer alguma coisa para comer? Tenho torta, salada, palha, se preferir alguma outra coisa, é só pedir”, Balance ofereceu rapidamente. A dançarina fez que não com a cabeça e baixou seu olhar para os cascos.

“Mind, vê se não vai engordar a menina. Ela só quer descansar agora. Me ajuda a levar ela pro quarto”, Flight falou com divertimento. Subir as escadas para o segundo andar do casarão da professora foi uma tarefa difícil, cuidadosa e demorada. Quando finalmente chegaram ao aposento e Can-Can pôde se sentar na cama, suspirou aliviada.

“Eu vou lá na sua casa dar uma olhada nas coisas e volto mais tarde. Descanse”, a mãe de Weather disse e saiu voando do quarto. Raspou perigosamente no batente.

Balance se aproximou da hóspede e ajudou-a a deitar-se direito. Afofou um travesseiro e cobriu-a com lençóis, como uma mãe faria à filha. “Deixei água no fogo para fazer chá. Vou um instante lá embaixo e já volto”, avisou e partiu.

Ficar sozinha aliviou Can-Can. Estava cansada dos olhares que todos lhe lançavam. Sabia que estavam preocupados com ela, que a queriam melhor, mas quanto mais se importavam com ela, pior sentia que fosse seu estado. Observou o quarto no qual estava. À direita, três grandes janelas – duas delas tinham as cortinas fechadas – davam para a rua. Um carpete marrom claro cobria todo o chão. As paredes eram pintadas de um amarelo muito claro e possuíam algumas figuras florais, provavelmente desenhadas uma a uma. À esquerda, na mesma direção da cama, havia uma grande lareira. Mais adiante, próxima a parede, ficavam uma penteadeira de mogno com finos detalhes de margaridas talhadas na madeira e um armário grande – maior que a estante que a vedete tinha em casa. No canto oposto do quarto, onde ficava a porta, pregado na parede havia um quadro com o retrato de uma pônei que Can-Can não reconhecia. No teto, um lustre simples, porém bonito, iluminava o ambiente.

Can-Can olhou pela janela, começara a nevar.

“Celestia. Luna. Qualquer princesa que for. O que eu vou fazer da minha vida?”, perguntou às paredes. Àquela hora todos os taberneiros da cidade já tinham ouvido falar da história da dançarina vermelha, do incêndio, e de como ela usava nomes diferentes para trabalhar em estabelecimentos concorrentes – essa concorrência fosse causada por negócios ou por motivos pessoais dos taberneiros –, algo inconcebível até então. Mais de uma vez ela já havia pedido aumentos para trabalhar com exclusividade numa taberna. Chegou a receber 130 bits para dançar nas noites de sábado somente na taberna Cervo & Rena. E se não tivesse começado a gastar o próprio dinheiro comendo e bebendo com os clientes ao final do show, talvez já tivesse feito grandes reformas em casa. Aposto que eles não devem mais estar contratando nenhuma dançarina de pelos vermelhos na cidade, pensou e suspirou. Can-Can não entendia por que não deveria dançar em tabernas concorrentes para preencher seus horários, as disputas dos taberneiros por dinheiro era problema deles, não dela. E se tinha uma agenda de seus shows, na qual cada horário, fosse de almoço ou jantar, era exclusivo de um estabelecimento, por que achavam que ela os passara para trás? Rusty afirmara que ela dançava melhor para o concorrente, mas na verdade fazia sua apresentação com a mesma presteza não importando o palco em que estivesse! No final das contas, era tudo uma questão de grande desconfiança causada pela inimizade de seus empregadores. Eles não podiam arriscar ter uma dançarina que sabotava os shows de suas tabernas, afinal, se a dança fosse boa e a plateia apreciasse, podiam cobrar uma taxa extra.

Can-Can virou de lado na cama para olhar melhor pela janela. Pensou na época em que dançava nas calçadas com o pai atrás de si. Considerou, por um instante, a possibilidade de voltar a dançar na rua, mas um frio subiu por sua espinha ao imaginar os tipos de perigos aos quais estaria se expondo ao dançar nas praças. Não que as tabernas fossem muito mais seguras, mas geralmente tinha a companhia de Allegro e dinheiro suficiente para voltar para casa num táxi, se fosse preciso. Relinchou baixinho, tristemente. Aconchegou melhor a cabeça no travesseiro e tentou dormir. Não passava de duas horas da tarde e seu sono não veio, porém. Ainda tentava dormir quando Balance entrou no quarto voando com cuidado e equilibrando nos cascos uma bandeja que continha duas charmosas xícaras fumegantes de porcelana. Can-Can sentou na cama e aparou a xícara de chá que lhe foi oferecida. Fez um agradecimento gentil à professora e tomou um gole em silêncio.

“O médico disse que podemos voltar ao hospital para retirar o gesso em duas semanas, não é ótimo?”, comentou a pégaso negra, contente em seu jeito maternal. “Depois disso você deve passar mais algumas semanas sem fazer muito esforço, só para garantir que sua perna vai curar direitinho.”

“E a minha costa?”

“Bem lembrado. Preciso passar pomada nela antes de você dormir”, disse Balance. “Quando você começar a sentir comichão, é porque seus pelos estarão voltando a crescer. Até lá a queimadura já deve ter sarado.”

Estimando o tempo necessário para que ficasse totalmente recuperada, Can-Can não ficou feliz. Sem a perna não podia trabalhar. E não queria que ninguém visse sua costa pelada. Receosa, fez outra pergunta, “E a cicatriz?”

Doktor Care receitou uma pomada. Disse para aplicar uma vez por dia, e que em algumas semanas deve diminuir bastante”, falou a professora, e tomou um gole de chá. “Acho que deixei a pomada em algum lugar na cozinha, daqui a pouco eu busco ela para você.”

Can-Can assentiu, um pouco menos preocupara, mas ansiosa. Se aquela marca feia em seu rosto realmente podia ficar menos feia, queria começar logo a tratar dela.

“Que bom que seu papa não presenciou tudo isso”, comentou Balance, olhando para a própria xícara.

A pônei de cristal olhou feio para ela. Tinha levado a mal o comentário; foi como se a professora gostasse da ideia de o flautista estar morto. Antes que pudesse dizer algo, no entanto, Balance acrescentou, “Ele ia ficar se culpando por isso ter acontecido com você. Breathe sempre se culpava. Ele ficava arrependido de ter largado a Academia e ter vindo embora com você para cá. Dizia que podia ter dado um jeito de cuidar de você e ter continuado os estudos. Que podia ter tocado na Orquestra Real, lhe dado uma infância melhor”. A professora suspirou. De todos os pôneis que conheceram Turner, Balance era a que mais se aproximava de sentir a mesma dor de Can-Can em relação a morte do unicórnio.

“Nunca me casei; vivia só. Eu queria que vocês tivessem vindo morar comigo, mas seu papa era um poço de teimosia, ele não aceitava porque sabia que eu ia insistir para ele parar de ir tocar nas praças com você. Eu dizia que ele podia trabalhar como compositor, ele falava que se não conseguisse vender as músicas, eu estaria sustentando ele. Pônei teimoso. Preferia fazer você trabalhar a deixar que eu o ajudasse.”

“Não era assim”, interveio Can-Can, de repente. “Eu ia trabalhar com ele porque gostava de dançar. Ele nunca me obrigou. E depois eu entendi que devia ir porque era minha responsabilidade ajudar a manter a nossa casa.”

“Responsabilidade... aposto que aquele bobo não fazia ideia da égua responsável que ele criou. Você nunca cresceu de verdade para ele, sabe?”

Can-Can assentiu. Ambas riram amargamente.

“Tem uma coisa que eu nunca entendi. Como vocês se encontravam? Ele estava sempre comigo”, disse Can-Can, curiosa.

“Nós nos conhecemos não muito tempo depois de vocês dois chegarem na cidade. Naquela época você era muito pequenininha, não deve lembrar, mas eu ajudei a cuidar de você. Pudemos sair juntos, nos divertir um pouco. Você foi crescendo e ele precisou trabalhar mais para manter a casa, porque não aceitava a minha ajuda nisso. Então passamos a nos falar naqueles poucos momentos em que ele levava ou trazia você de um dia de aula, ou quando vinha conversar comigo sobre alguma nota baixa que você tinha tirado. Mas eu não deixei de gostar dele nunca. E conforme você crescia eu percebia o pai maravilhoso que ele era, e me encantei ainda mais por ele”, contou Balance, um meio sorriso nostálgico no rosto.

Comovida, Can-Can murmurou, “Eu tenho certeza de que ele também gostava muito de você, Fraülein”. Balance deixou sua xícara na ponta da cama e voou para abraçar a pônei de cristal.

Os pelos da égua rubra cintilaram e ela retornou o carinho do abraço.

“Se ele não fosse tão teimoso... eu teria matriculado você numa boa escola, teria te ensinado a fazer um monte de penteados na crina, brincado de bonecas, ia chamar você de filhinha”, confessou Balance ao ouvido da hóspede.

“Eu teria adorado”, disse Can-Can, imaginando a vida diferente que poderia ter tido desse modo. “Mas eu não me arrependo das escolhas de papa, nem me ressinto delas. Nunca me faltou amor.”

A professora assentiu, apertando o abraço. Enxugou discretamente uma lágrima com os cascos e se afastou um pouco de Can-Can, para falar, “Tenho que ir lá para baixo fazer o jantar. Geralmente eu não tenho com quem compartilhar as refeições e não faço muita comida; nesse quesito eu estava despreparada”.

“Não se preocupe, Fraülein. Eu sou uma égua crescida, não tenho medo de ficar sozinha”, brincou Can-Can, rindo. Balance sorriu e voou em direção à porta.

Antes de sair, porém, virou-se para perguntar, em tom sério, “Existe algum pônei para quem eu deveria avisar que você está aqui em casa?”

Implicitamente, Balance gostaria de saber se havia algum pônei especial que deveria chamar para a convidada. A pergunta deixou a égua rubra meio envergonhada, sua face se aqueceu e ela fez que não com a cabeça. “Ok”, disse a professora, com um sorriso carinhoso, ao sair do quarto.

Can-Can teria respondido do mesmo jeito caso ainda tivesse algo com Rain. Não se sentiria à vontade para estar com algum pônei ali, ainda mais considerando que a professora dormia no quarto ao lado. O sol começava a se pôr ao longe. Logo ficaria frio. Can-Can enrolou-se nos lençóis e voltou a olhar pela janela. Sentia-se melhor depois da conversa que tivera. Era muito bom poder falar com alguém a respeito de Turner. Fechou os olhos e imaginou que o pai estava no quarto, sentado na ponta da cama, com a flauta na boca, tocando uma canção de ninar. Adormeceu com um sorriso pacífico no rosto. Sonhou que o unicórnio cinzento dançava e tocava para ela, muito alegre e cheio de saúde, na praça das camélias; ele até saltitava! Quando Balance retornou ao quarto para avisar que o jantar estava pronto, não teve coragem de acordar a pônei de cristal. Em vez disso, acendeu a lareira para garantir que o quarto não ficaria frio durante a noite e saiu.

*** *** ***

Acordou faminta, mas contente, pois tivera uma ótima noite. Seus pelos brilhavam como não o faziam há algum tempo. E antes que pudesse colocar a perna engessada para fora da cama, Balance entrou desejando-lhe bom dia e oferecendo uma bandeja de café da manhã: ovos fritos, uma cenoura cortada em rodelas, dois pãezinhos e uma xícara de achocolatado bem quente. Can-Can cumprimentou-a, sorriu e agradeceu. Comeu com muito gosto, limpou os pratos e lambeu os beiços. Para sua surpresa, quando terminou de comer, a professora lhe trouxe uma pequena pilha de livros. Os livros que ficavam na estante de casa, junto com as partituras e a flauta do pai. A égua rubra os recebeu com carinho e procurou A Pena e o Lírio de imediato. Seu volume do romance ainda era legível, apesar de muito gasto. Sorriu de orelha a orelha, há muito tempo não o pegava para folhear.

“Flight trouxe eles ontem à noite”, disse Balance. “Trouxe também a sua vitrola e alguns discos. Estão lá embaixo, vou buscar depois.”

“Muito obrigada”, Can-Can agradeceu. Nostálgica, folheava o livro entre os cascos. Em seguida pegou outro da pilha: Os dragões das montanhas. Este, um conto de aventura não muito próprio para crianças, mas que Turner contava para a filha sem acrescentar os detalhes acerca de sangue e mortes. A jovem conhecia a história do livro como um conto de dragões malvados que atacavam uma vila e eram expulsos por um príncipe valente. Puxou outro livro: Os contos do velho Billy. Uma história de um velho garanhão que ensinava ao neto como se dar bem na vida a partir de experiências engraçadas que havia vivido. Cada livro era um gatilho para memórias boas relacionadas a Turner; numa época em que riam juntos, imaginavam juntos, liam juntos. Passaria boa parte dos dias seguintes entre ler aqueles livros, redescobri-los e recordar o pai, e conversar com a professora ou com os amigos que a viessem visitar. Weather ficou na cidade o máximo que pôde, acompanhando a recuperação da amiga, mas teve de voltar para Cloudsdale. Can-Can fez questão de apaziguar o amigo, falando que estava melhor.

Todas as manhãs, aplicava a pomada na pálpebra inferior do olho esquerdo e com algumas semanas já percebia sua cicatriz diminuir. Ficou muito feliz, já se achava menos feia. Ficou mais contente ainda quando amanheceu com uma coceira terrível nas costas; seus pelos voltavam a crescer! Após retirar o gesso da perna, podia vagar pela casa da professora, descer até a cozinha, olhar os potros no quintal aos finais de semana – tudo com muito cuidado, é claro. Durante a temporada de sua recuperação, pôde esquecer-se, vez ou outra, de todos os seus problemas. Balance estava sendo uma mãe para Can-Can e a provia com tudo o que era necessário.

Certo dia, após retirar o tapa-olho do rosto para aplicar a pomada, pôs-se a olhar o próprio reflexo no espelho do banheiro. Ainda sentia calafrios ao ver o glóbulo leitoso que era seu olho esquerdo, mas começava, bem aos poucos, a se acostumar com ele. Considerava que se usasse lentes de contato, talvez pudesse disfarçar bem aquele defeito. Pediu para que a pégaso negra a ajudasse a comprar lentes naquele mesmo dia. Balance providenciou o pedido de sua hóspede o mais rápido que pôde, e alguns dias depois as duas tentavam colocar a lente no olho cego de Can-Can. Obtiveram sucesso após muitas tentativas frustradas, dor e algum choro. A pônei de cristal passou o dia com um olho de íris um pouco mais clara que o outro e tentando se acostumar com o objeto. À noite, após mais dor e choro – pois não era nada fácil colocar uma lente de contato com os cascos –, decidiu que só as usaria em ocasiões especiais. Preferia parecer estranha a ter de passar por essa dificuldade.

Ao todo, morou um mês e meio na casa da professora. Foi como ter uma mãe pela primeira vez na vida, e isso a fez ficar mais tempo do que pretendia com a pégaso. No dia da despedida, Balance fez um bolo de cenoura para sua hóspede e insistiu que ela o levasse todo para comer em casa. Além de pedir muitas vezes para que Can-Can voltasse a visitá-la com regularidade. Can-Can levou o bolo consigo e prometeu que visitaria a professora tanto quanto pudesse.

Chegar em casa após tanto tempo fora pareceu estranho. Sentia-se reconfortada ao voltar a estar entre aquelas paredes, mas ficar sozinha mais uma vez a deixou insegura quanto aos problemas que teria de enfrentar. Por sorte, Flight mantivera tudo arrumado e limpo. Os livros, discos e a vitrola já estavam de volta a seus devidos lugares.

Can-Can trotou até seu velho sofá e sentou-se, preocupada. Allegro esteve perambulando pela zona sul durante o último mês, procurando trabalho para quando a amiga pudesse dançar de novo, mas não conseguiu nada. Os taberneiros, muito desconfiados, faziam mil perguntas ao ouvirem a palavra dançarina. Rain tentara argumentar com Finesse e também não obtivera nenhum resultado positivo.

Numa das visitas a casa de Balance, Skylark havia sugerido à pônei de cristal que poderia se tornar professora; dizia que ensinar dança era um trabalho muito digno. Mas Can-Can não queria ensinar. Queria os palcos.

Com um suspiro, levantou-se e andou pela sala, pensando. Suas contas do último mês estavam pagas, mas se não arrumasse logo um trabalho, não poderia pagar as do próximo. Não sabia o que fazer. O que o Clean faria? Algo estúpido, pensou, ou uma daquelas coisas de pégaso.

Uma ideia estalou na cabeça da pônei de cristal. Revirou a casa de cabeça para baixo, procurando um (muito) velho mapa que pertencera a Turner e mostrava as estradas de Equestria. Achou-o após revirar os velhos alforjes do pai, estava rasgado nas pontas e muito amarelado. Com cuidado, abriu o mapa no chão do quarto e observou as estradas que saiam de Germane. A cidade mais próxima era Manehattan, ao sul. Mas, segundo as indicações no papel, havia pelo menos duas vilas na estrada que levava até lá. A primeira das vilas era chamada Blight Town, de acordo com uma anotação feita com a letra de Turner no mapa. Não parecia ficar muito longe.

Se não posso trabalhar por aqui, é só tentar em outro lugar, pensou a égua rubra.


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