De laços e fitas escrita por Literate


Capítulo 17
Capítulo 17




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Era quase onze horas. Can-Can resolveu almoçar mais cedo. Continuava a esperar que alguma de suas amigas aparecesse. Olhou nervosa para o relógio na parede da sala. Foi até o quarto, pegou seus alforjes com algum dinheiro e a carta de indicação dentro e ajeitou-os nas costas. Trotou até a pequena estante do quarto e encarou a flauta que jazia ali. Mentalmente, pediu sorte para o instrumento como se pedisse ao próprio Turner. Em seguida, fez um breve pedido de bem-aventurança à princesa solar para aquele dia. Voltou à sala e foi em direção à porta da frente. Ao abri-la, teve uma boa surpresa: as amigas estavam ali. Skylark tinha um casco levantado como se estivesse prestes a bater na porta um segundo atrás.

“Vocês vieram”, Can-Can constatou aliviada.

“A gente disse que vinha, né?”, Sky replicou e deu um abraço na amiga.

“Vamos indo, a caminhada não é curta”, Gale murmurou. A égua rubra assentiu, trancou a porta e partiram. Rain aproximou-se da pônei de cristal para que trotassem juntas. Iam encostadas uma na outra.

“Como você está?”, Rain perguntou em voz baixa.

Can-Can pensou um pouco antes de responder, “Um pouco melhor. Mas não muito. Eu ainda não consigo acreditar que não vou mais subir no palco do Sun”.

“É só por um tempo. Na próxima temporada eles voltam com a nossa dança e você volta para lá num instante”, Rain assegurou.

Volto para passar mais seis meses e ser mandada embora de novo, a pônei de cristal pensou. Balançou a cabeça para mandar os pensamentos negativos para longe e concentrou-se em observar a paisagem da cidade.

A zona sul de Germane não era tão rica quanto a norte, porém, era definitivamente melhor que o bairro da vedete vermelha na zona oeste. Os pôneis não se vestiam tão bem, mas a maior parte das éguas tinha um vestido recatado e simples para usar; a maior parte dos garanhões usava gravatas, algumas de tecidos muito velhos. Fora os habitantes da cidade, a zona sul era onde se encontrava a maior parte dos viajantes e turistas que passavam por Germane. O rosto de Can-Can se aqueceu em um misto de vergonha e interesse ao ver uma égua estrangeira usando uma sela – invulgarmente chique – no meio da rua. Este tipo de indumentária era geralmente usado pelas prostitutas da cidade (naturalmente, nenhuma sela de cortesã era tão bonita nem possuía tantas joias), no entanto, no país daquela égua, selas continham os brasões de suas famílias e eram símbolos de poder e riqueza. Como se não bastasse a sela, os arreios no rosto da pônei, que era branca como leite e tinha os cabelos negros como a noite, a deixavam com um ar extremamente sensual. Ela era seguida por uma pequena turba de servos – entre eles um pequeno dragão – que carregavam grandes sacolas de compras e alguns caixotes. Todos os olhos na rua a observavam.

“É de Saddle Arabia. Essas éguas são esplêndidas”, Rain comentou com os olhos vidrados na estrangeira.

“Jura?”, Can-Can escarneceu abobada, observando a égua branca virar uma esquina.

Mein liebe, você não sabe o que é dança de verdade até ver uma dessas éguas fazer uma dança do ventre ou dos sete véus”, a égua malhada falou quase nostálgica. Can-Can desdenhou, limitou-se a bufar de leve como se não estivesse impressionada ou como se considerasse que poderia fazer melhor que qualquer égua de Saddle Arabia. Rain riu do orgulho da amiga e empurrou-a de leve com um casco.

As quatro amigas adentravam cada vez mais na zona sul da cidade. Os pequenos prédios comuns de Germane eram substituídos por grandes armazéns, dezenas de hotéis, tabernas e pousadas. Todos os tipos de pequenas barracas de mercadores tornavam o tráfego quase impossível nas calçadas. Can-Can chegou a ver outros pôneis de cristal; estavam bem vestidos e passeavam com altivez em meio à multidão. Talvez fossem pôneis importantes no Reino de Cristal. A égua rubra viu também muitos grifos; alguns deles eram donos de pequenas tendas e vendiam todo o tipo de quinquilharias, mas a maior parte deles era composta por criaturas de visual selvagem, bem mal-encarados; carregavam armas consigo e faziam trabalho de mercenários ou seguranças particulares. Mais de uma vez Can-Can pôde ouvi-los negociando preços absurdos por trabalhos de todo o gênero.

Além do dragão que era servo da égua branca vira mais cedo, avistou também um dragão um pouco mais velho, que ficava numa pequena barraca com um letreiro de correio. Aparentemente ele escrevia as mensagens dos clientes e enviava as cartas com seu fogo por um preço mais em conta que o do correio oficial.

Uma matilha de filhotes de cães-diamante passou correndo por Can-Can. Alguns deles pararam para fitá-la com interesse. A pônei de cristal sentiu-se desconfortável ao perceber que os pares de grandes olhos de cachorro a observaram de modo quase cobiçoso.

Ao mesmo tempo que Can-Can parecia ficar mesmerizada com tudo o que havia ao seu redor, Skylark e Nightingale estavam pouco impressionadas; foram criadas em Manehattan e havia muito pouca coisa que ainda não tinham visto. Após pensar por algum tempo, a égua rubra se deu conta de que nunca havia vindo para aquela parte da cidade com o pai. Não havia praças ali. Tudo o que via era novo. Sentiu-se boba por deixar-se impressionar pela cidade que achou que conhecia tão bem quanto seus cascos.

“Algum problema?”, Rain perguntou de repente.

“Eu nunca trotei por aqui. Não conheço nada”, Can-Can retrucou.

“Está falando sério?”

A égua rubra assentiu. “Papa não vinha para cá. Não tinha motivo”, explicou. “Você conhece as coisas por aqui?”

“Não muito. Só passei por essas ruas algumas vezes”, Rain falou olhando ao redor.

Sky, que havia escutado um pouco da conversa das duas, intrometeu-se, “Você devia perguntar pra Rhiannon como são as coisas por aqui. Já ouvi dizer que ela já esteve na mesma situação que você há vários anos atrás”.

“Demitiram Rhiannon?”, Can-Can perguntou cética.

“Parece que pode acontecer com qualquer uma, né?”, Gale entrou na conversa dando de ombros.

“Até mesmo com as melhores”, Sky retrucou para levantar o ânimo da amiga demitida e conseguiu. Can-Can envaideceu-se um pouco, mas nada disse. As quatro continuaram caminho disputando lugar com vários outros pôneis e algumas carruagens apressadas no meio das ruelas da zona sul. Os camelôs nas calçadas chamavam-nas a todo momento, oferecendo utensílios, roupas, comidas e joias. Mais de uma vez Can-Can ficou tentada a ir até uma barraca que vendia vestimentas bonitas a preços pequenos; mas tinha em mente a prioridade de conseguir um novo emprego. Depois de muito caminharem, finalmente avistaram seu destino: a rua Promontory. Era uma larga via de duas mãos na qual iam e vinham pôneis e carroças num fluxo interminável. De um lado e de outro na calçada ficava uma surpreendente sucessão de bares e tabernas de todos os tipos e tamanhos. Vários dos bares possuíam letreiros de neon que seriam acendidos à noite.

Um pônei terrestre estava jogado na sarjeta em frente a um dos menores bares da rua. Ao seu lado havia algumas garrafas vazias de vinho. O cheiro de álcool que vinha dele podia ser sentido de longe. Quando as vedetes passaram por ele, fez gracejos e assoviou como se jamais tivesse visto uma égua na vida. Gale olhou para o bêbado com nojo; Sky parecia ter achado a condição dele quase engraçada; Can-Can virou o rosto para não olhar para ele; Rain fingiu não ter visto nem ouvido nada. Após mais alguns poucos minutos de caminhada chegaram ao endereço que estava escrito na carta de indicação. Era uma das maiores tabernas da rua. Aparentava ser um lugar muito movimentado, e nada ruim. As portinholas de madeira que davam entrada para o lugar não paravam nem por um segundo.

O estabelecimento de dois andares tinha uma fachada modesta, não se via detalhes sinuosos e complexos como os do Sun pelas janelas. No entanto, havia pequenas sacadas nos quartos do andar de cima que davam para a rua. Na parede, logo acima das portinholas de entrada havia uma placa de madeira que era segurada por uma barra de ferro que se estendia para a rua, em vez de paralelamente a ela e balançava de leve ao vento; nela se lia o nome do lugar: O Corcel Indomável. E logo abaixo do nome da taberna, uma bela e simples imagem de um garanhão correndo fora talhada na madeira.

“Hum... preparada?”, Skylark perguntou em voz baixa.

Can-Can assentiu e respirou fundo antes de dar o primeiro passo para dentro da taberna. Atravessou as portinhas e observou o lugar. O grande salão de piso de madeira, com várias mesas redondas dispostas pelo meio e alguns bancos encostados nas paredes, estava lotado. No canto superior esquerdo do lugar havia um pequeno palco, ao lado do palco, um piano. Ao fundo, o grande balcão com banquinhos; atrás do balcão, estantes com todos os tipos de bebidas e uma passagem que deveria levar à cozinha. No canto superior direito do recinto havia uma passagem que levava ao corredor com os quartos de hóspedes mais baratos e uma escada que ia para o segundo andar e aos quartos mais dispendiosos. No teto, alguns lustres de velas ajudavam a iluminar o lugar em conjunto com a luz que vinha das janelas dispostas por todas as paredes. Garçonetes iam e vinham pelo salão, trazendo e levando consigo bandejas de bebidas e gracejos.

Uma pônei unicórnio se aproximou das vedetes que tinham acabado de entrar no cabaré. A égua tinha pelagem amarelo claro e os cabelos da crina e da cauda – presos por redinhas – castanhos; seus olhos eram rosa-claros. Usava um avental branco com o nome do estabelecimento no peito e uma saia que lhe cobria o flanco. Um sorriso acolhedor formara-se em seu rosto.

“Olá, no que posso ajudar vocês?”, ela cumprimentou em tom amigável.

As amigas olharam para Can-Can. A égua rubra pegou a carta do alforje, leu o nome do destinatário mais uma vez e respondeu, “Estou procurando Herr Keep”. O sorriso amigável sumiu do rosto da pônei de avental e foi substituído por uma torção de focinho e um olhar desconfiado.

“Posso saber o que vocês querem com ele?”, a pônei amarela inquiriu.

“Eu vim pedir emprego. Tenho uma carta de recomendação endereçada para ele”, Can-Can justificou-se rapidamente.

“Hum... entendi.”

Can-Can esperou que ela dissesse algo mais, mas a pônei permaneceu ali, reflexiva. Após algum tempo, virou-se e foi em direção ao balcão. As vedetes puderam ouvir que ela chamava pela mãe. Não muito tempo depois, voltou acompanhada de uma égua mais velha, muito parecida com ela e se vestida da mesma forma – tinham apenas o tom dos cabelos um tanto diferente uma da outra.

“Essa daí veio procurar pelo papa”, a égua jovem anunciou como se entregasse um bandido. A égua mais velha fuzilou Can-Can com o olhar por um segundo e em seguida pôs-se a avaliá-la da cabeça aos cascos.

“Ginger. Vai chamar o teu papa. Dessa vez eu quero ver ele se explicando”, a mãe ordenou para a filha que trotou escada acima num instante. “Pode me chamar de Dame Blight. Herr Keep é meu marido.”

“Oh, olá. Meu nome é Can-Can. Eu vim aqui porque o...”

“Fique quieta, sua pilantra! Não quero ouvir uma palavra sua”, Blight ordenou raivosa. “É com você que aquele safado tem me traído?! Mas é mesmo muita ousadia sua ter vindo até aqui. Não vou te colocar pra fora agora porque não ia pegar bem pros negócios. Mas vontade não falta!”

Atônita, Can-Can não soube como se defender. Jamais vira Herr Keep! Antes que pudesse falar qualquer coisa, Ginger voltou descendo as escadas. Atrás dela vinha um enorme garanhão castanho, de cabelos negros e curtos. Ele parecia cansado.

“O que houve dessa vez?”, ele disse com uma voz forte como trovão ao se aproximar.

“O que houve? Tua amante que houve! Veio te visitar, seu desgraçado”, Blight bradou. As vedetes se posicionaram de forma protetora perto de Can-Can; Rain mais à frente, e as irmãs aos lados da amiga. Todas pareciam tão surpresas quanto a pônei de cristal.

“Ah, mas faça-me o favor. De novo essa história?!”, Keep reclamou e bateu um casco fortemente no chão. “Mandou a Gin me acordar pra isso? Pro Tártaro com você!” O casal começou uma discussão acalorada no meio da taberna, algumas cabeça já se viravam para observar a confusão.

Ginger lançou olhares furiosos para os pôneis que queriam fofocas, alguns não se importaram, outros disfarçaram. A jovem égua lançou um feitiço que silenciou os pais; eles ainda tentaram discutir por alguns instantes antes de perceberem que estavam sem voz. Ambos olharam para a filha que disse, “Vamos discutir isso no balcão”. Ginger lançou um olhar imperioso para Can-Can e fez um sinal para que a seguisse; a pônei de cristal obedeceu, deixando as amigas para trás. A família trotou para trás do balcão, e lá a filha desfez o feitiço. A égua rubra tomou um dos banquinhos para si e esperou. Os três pôneis do outro lado do balcão avaliaram-na por um segundo.

“Nunca vi essa égua na minha vida”, Keep afirmou com segurança.

“E o que ela veio fazer aqui procurando por ti, então?!”, Blight replicou.

Can-Can colocou a carta de Finesse em cima do balcão e empurrou-a em direção ao casal. A esposa olhou com desgosto, mesmo sem fazer ideia do que poderia haver no envelope. O marido observou preocupado, achava que era alguma cobrança extra que contraíra na noite. Ginger pegou o envelope com sua magia, abriu-o e leu em silêncio.

“Ela quer emprego. A carta é do Finesse”, Ginger anunciou calmamente. Um tipo de alívio surgiu entre a família. Não havia sido daquela vez que Blight descobrira as traições do marido; e permaneceria tranquila até a semana seguinte, quando começaria a desconfiar de novo.

“Faz tanto tempo que ele não manda ninguém pra cá”, Keep disse para si mesmo, distraído. “Enfim, o que você faz?”

“Eu era dançarina vedete no Sun”, a égua rubra replicou, sucinta.

“De qual show?”

“Da quadrilha saltitante.”

“Oh! Esse é bom. Fecharam a temporada, não foi? É uma pena”, lamentou o garanhão.

“Você esteve indo ao Sun esses nos últimos meses?!”, Blight interferiu, severa. Keep bufou frustrado e ignorou o comentário da esposa.

“Ouvi muito falar dessa dança, mas nunca tive a oportunidade de assistir” ele falou.

Can-Can não pensou duas vezes antes de disparar, “Poderia ter esse show aqui na taberna”. Os familiares entreolharam-se por um segundo. “Basta me contratar!”, a pônei de cristal insistiu.

“Pode fazer a dança sozinha?”, Ginger perguntou desconfiada.

“Eu criei os movimentos. É claro que posso”, Can-Can gabou-se. “Só preciso adaptar um pouquinho com o tamanho do palco.”

“Sabe cantar bem?”, Blight inquiriu.

Can-Can assentiu. Era uma meia verdade; sabia cantar, mas não tão bem quanto gostaria e nem tinha um repertório muito extenso. Porém, se esforçaria para aprender se fosse necessário.

“Não temos ninguém na noite de terça”, Blight disse ao marido.

“Nem nos almoços de domingo à quarta”, Ginger complementou.

“É o seguinte; pagamos quinze bits por noite, cada noite é feita de uma hora e meia de apresentação. Nos almoços, pagamos dez bits; o tempo de show é o mesmo”, Keep explicou sério. Can-Can pensou por algum tempo, trabalharia muito mais, e mesmo se pegasse todos os horários disponíveis ainda ganharia menos que no Sun. Não tinha escolha, aceitou os termos.

“Espera. Não é só isso. Tem que mostrar pra gente que você vale a pena”, Ginger falou com um sorriso matreiro no rosto.

“Como?”, Can-Can retrucou.

“É meio-dia, a taberna está cheia e o palco vazio ali no canto”, a jovem unicórnio sugeriu. “Surpreenda a todos e o trabalho é seu.”

A égua rubra assentiu. Ginger saiu de trás do balcão e foi procurar o músico da taberna para tocar o piano. Can-Can olhou por cima do ombro e viu suas amigas sentadas numa das mesas do estabelecimento. Tomavam sucos de maçã e olhavam apreensivas a suposta entrevista de emprego que a pônei de cristal estivera fazendo até então. Pediu licença para o casal e foi até as amigas.

“E aí, como é que foi?”, Skylark perguntou nervosa.

“Eles querem que eu dance para ver se sou boa”, Can-Can respondeu.

“Ah, então vai ser fácil”, Nightingale afirmou e sorriu. Rain permaneceu calada, com uma expressão pensativa no rosto. Quando Sky questionou-a, ela respondeu, “Não imagino por que iriam pedir um teste se você tem a carta do Finesse e trabalhava no Sun”.

Can-Can deu de ombros e murmurou, “Acho que é um direito deles”.

“Eu acho que eles estão ganhando uma apresentação de graça para uma casa cheia”, a égua malhada disse com o cenho franzido. “Não vê?”

A égua rubra refletiu sobre as palavras de Rain; por fim, disse resignada, “Que outra escolha eu tenho? Não posso fazer nada a respeito. Preciso do emprego”.

Rain suspirou, sua expressão suavizou um pouco, e disse, “Só não deixa eles te explorarem”. Can-Can sorriu; adorava sentir-se cuidada. Precipitou-se para a égua loira, deu-lhe um beijo na face direita e assentiu. Pediu para as amigas cuidarem de seus alforjes enquanto ia dançar.

Ginger voltara para junto dos pais. Um jovem garanhão estava posicionado ao lado do piano, esperando. Can-Can foi até ele. O nome do jovem era Allegro String, sua pelagem era cor de chumbo; seus cabelos longos, lustrosos e penteados de modo impecável para trás da cabeça eram de tom loiro escuro acinzentado, e um par de pequenas listras cor de rosa – uma muito clara, e outra pouco mais escura que a primeira – o cortava verticalmente entre a têmpora esquerda e o topo de sua cabeça. Sua cauda seguia o mesmo padrão da crina. Seus olhos, verde-claros e amigáveis. Tinha um corpo de porte leve que lembrava um pouco Turner por parecer frágil; mas era bastante esguio, e seu focinho arredondado ajudava a dar-lhe um ar feminino. De longe poderia ser confundido com uma égua. Sua Marca era uma série de partituras sobrepostas.

Sua voz foi muito gentil ao perguntar para Can-Can o que deveria tocar. A pônei de cristal pediu para ver as partituras que ele tinha. Para a surpresa dela, ele respondeu que gravara mentalmente todas as músicas que conhecia. Os dois pôneis conversaram por alguns instantes e acertaram que a vedete dançaria duas músicas e cantaria uma terceira.

As amigas assistiram ao show de Can-Can com olhares solidários em seus rostos. Skylark movia-se de um lado para o outro na cadeira, acompanhando o ritmo da música. Nightingale e Rain bateram de leve com os cascos na mesa a fim de animar o resto da plateia.

A dançarina de cristal deu o melhor de si no palco e não demorou muito para que os clientes do estabelecimento prestassem um pouco menos de atenção em suas comidas para prestar um pouco mais de atenção nela. Não era comum ver um pônei de cristal no tablado, ainda mais difícil era ver um pônei de cristal que dançasse tão bem quanto a égua rubra; com todos os seus passos graciosos e cheios de sugestão. Cada movimento do lombo da égua fazia os olhos famintos do público o seguirem de um lado a outro.

Um meio sorriso enigmático apareceu no rosto de Can-Can; estava orgulhosa de seu trabalho no palco, tinha tomado toda a atenção do lugar para si. Ninguém comia, ninguém conversava, ninguém evitava olhar para ela; tinha até mesmo deixado as asas de alguns pégasos desconfortavelmente esticadas. Dançar num palco menor de um estabelecimento menor era interessante, pois podia observar melhor a sua plateia, mesmo com a casa lotada. A apresentação não durou tanto quanto todos gostariam, e quando Can-Can terminou de cantar uma das poucas músicas que conhecia de cor – um dos sucessos de Sapphire Shores –, uma trovoada de cascos a bater em mesas, assobios e pedidos de mais se fez por todo o salão. Até mesmo Allegro, que não a viu dançar – pois ao tocar o piano ficava de costas para o palco – mas escutara sua voz doce, virara-se para bater os cascos. Can-Can fez várias reverências e agradeceu ao público; lançou sorrisos e deu uma piscadela para uma zebra que batera os cascos mais animadamente que todos os outros pôneis da taberna. A zebra desconhecida ficou com o rosto meio ruborizado e desviou o olhar.

No balcão, a família conversava entre si. Ginger parecia animada; Keep gostara bastante de como a vedete conseguira enlouquecer a clientela.

“Não demonstrem muita animação, já basta todos esses pôneis terem adorado. Se ela achar que gostamos tanto assim, vai querer cobrar mais pelo trabalho”, Blight aconselhou com a sabedoria de uma década como dona de taberna. “Isso é um problema, o povo quer mais dança.”

“É só dizer pra ela que ainda estamos indecisos e pedir pra ela dançar um pouco mais”, Ginger sugeriu com simplicidade.

“Isso não iria colar nunca, Gin”, o pai replicou em reprimenda. “Precisamos de outra desculpa, e rápido. Ela está vindo.”

Can-Can trotou até os pôneis do balcão. “Então, o que acharam?”, perguntou confiante, tinha um sorriso no rosto. Os três pôneis entreolharam-se por um segundo, mas foi Blight quem respondeu, “Você se mexe bem, pequena. Mas eu acho que não ouvimos muito a sua voz; e como deve saber, para sustentar um show de uma hora e meia, não deveria se desgastar dançando muito tempo sem pausas. E nessas pausas é que deve cantar para repor a energia das pernas, sabe? Se não puder cantar, acaba que não nos serviria de nada”.

“Mas vocês me ouviram cantar”, Can-Can retrucou.

“Mas não a ouvimos o bastante. Sei que pode dançar, e dança muito bem, mas para mostrar que canta, precisaria de mais três ou quatro músicas bem executadas”, Blight explicou e lançou um olhar de triunfo ao marido.

As palavras de Rain sobre não se deixar ser explorada vieram à mente de Can-Can como uma bala, no entanto, nada podia fazer. Mentalmente, xingou Finesse por colocá-la na situação horrível em que se encontrava agora. Suspirou de modo quase imperceptível, colocou um sorriso falso no rosto e concordou com Blight. Virou-se e trotou devagar de voltar ao palco. No caminho olhou de esguelha para a mesa onde suas amigas estavam e viu uma expressão reprovadora e nada satisfeita no rosto da égua malhada.

Allegro não saíra do lado do piano. Ao vê-la voltar, disse, “Se for trabalhar aqui, vai precisar se acostumar com esse pessoal”.

“Eles são sempre assim?”, Can-Can perguntou indignada.

“Fariam de um tudo para poder pagar menos”, o unicórnio replicou.

“Quando fui mandada para cá, achei que podia encontrar bons patrões.”

“Não se engane, se comparados a maior parte dos taberneiros da cidade, eles são ‘bons’”, Allegro defendeu triste.

De repente, um assovio animado se fez ouvir do fundo do salão, seguido de um grito: “Vamos, minhas belezinhas, podem começar”. Um garanhão chamara a atenção de todos os pôneis no recinto de volta para o palco. Gritos excitados e elogios de baixo nível foram atirados ao ar. O unicórnio pianista se empertigou; os clientes bêbados que não o conheciam tendiam a confundi-lo por égua. Sem jeito, tomou seu assento e esperou que Can-Can lhe dissesse o que deveria tocar. Por fim, a égua rubra escolheu quatro canções bastante conhecidas em Equestria: A Balada da Princesa; O Pônei Saltitante; A Magia da Amizade; e O Cão-Diamante e a Jovem Pônei. Todas as músicas eram conhecidas por viajantes que as cantavam em várias tabernas por todo o reino, e por todo o tipo de potrinho que pedia para a mãe cantar-lhe algo antes de dormir. Can-Can sequer precisou fazer esforço para conseguir um coral da plateia; a bebida e os atributos corporais da vedete foram mais que o suficiente para erguer as vozes dos garanhões no salão.

Os donos da taberna sorriam de orelha a orelha. Mal podiam conter a satisfação que sentiam por terem conseguido um show tão bom sem terem de pagar uma só moeda. Ginger observava a apresentação com interesse, gostara da voz e da presença de palco da pônei de cristal; pensava que seria muito bom ter uma dançarina de qualidade ali, pois a taberna ultimamente carecia de pôneis que fizessem um trabalho decente no palco. A filha do taberneiro recordou-se do último show interessante que havia acontecido naquele palco: uma pônei unicórnio que dizia ser uma grande feiticeira fizera truques de mágica que Ginger nunca tinha visto. Entretanto, tratar com ela era quase impossível, dado o grande egocentrismo da pônei, que até mesmo falava de si na terceira pessoa. Botaram-na para fora quando Keep não conseguiu mais ouvi-la dizer que era grande e poderosa. Ginger, porém, gostara dela; e apenas não contrariara a decisão do pai de mandá-la embora na época porque a feiticeira cobrava caro demais e não havia modo de tentar pechinchar seu trabalho.

Can-Can deixou-se levar pela animação do show e cantou uma música a mais. Quando terminou, fez uma mesura, recebeu uma salva de cascos, mais assovios e elogios, e indicou Allegro para que a plateia fizesse o mesmo para ele. O pianista levantou-se do banco e fez uma reverência tão excessiva que quase fez seu focinho encostar no chão. Tinha um sorriso largo no rosto, apesar de estar um muito constrangido por ouvir alguns tipos de elogios. A vedete vermelha saltou para fora do palco e trotou com toda a sua altivez até a família do taberneiro. A maior parte dos pares de olhos no recinto a seguiram. Ela prostrou-se logo em frente a Keep, do outro lado do balcão, e esperou que o grande garanhão castanho lhe dissesse algo.

“Muito bem, muito bem. Acho que agora vimos o seu potencial. Temos uma vaga para você aqui na taberna. Se quiser, é claro”, Keep falou da forma mais amigável que conseguia. A esposa e a filha sorriam de um jeito afetado.

Can-Can se sentiu muito desgostosa, seus novos patrões eram uns canalhas. No entanto, sabia mentir, de modo que não foi difícil dar-lhes um sorriso e fazer-se de boba, fingindo não perceber que havia sido passada para trás mais uma vez. “Mas é claro! Eu adoraria trabalhar aqui. Podemos acertar os dias que devo vir agora mesmo”, disse com cínica satisfação. Conversaram por alguns instantes e combinaram que a vedete trabalharia nas noites de terça-feira, e em todos os almoços disponíveis na semana enquanto não houvesse mais ninguém para ocupar os horários vagos.

“Muito obrigada”, Can-Can disse para a família após combinarem tudo. Sem se despedir, virou-se para as amigas e trotou até elas, contendo o impulso de xingar aqueles taberneiros que rapidamente passara a enojar. Blight e Ginger ficaram no balcão, atendendo a pedidos e observando a vedete que não havia dito adeus; fizeram fofocas por causa disso entre si. Keep subiu as escadas para voltar a dormir; dissera à esposa que não queria ser acordado de novo.

Rain, com as patas dianteiras cruzadas e olhar de poucos amigos, não parecia nada satisfeita. “Aposto que se você pedir um copo d’água aqui dentro, antes ou depois de um show, eles descontam do seu pagamento”, disse com raiva.

“E você disse que eu podia até gostar daqui”, a pônei de cristal comentou, ácida.

A égua loira suavizou um pouco a expressão, sentindo-se culpada. Justificou-se, “Eu passei aqui uma ou duas vezes. Esses pôneis nunca pareceram esse tipo de pôneis”.

“Podia ser pior”, Can-Can suspirou; sentiu como se estivesse mentindo. Tomou o último lugar vazio ao redor da mesa das amigas.

“Verdade. Ela podia não ter uma pianista bonitinha pra fazer companhia pra ela”, Skylark ronronou. Ninguém riu da piada e a pônei bege foi obrigada a se encolher na cadeira; ficou calada, o olhar censurador de Nightingale a fuzilava.

“Então, como é que vai ser? O que eles disseram?”, Gale perguntou de súbito. Can-Can explicou como trabalharia, o tempo, o pagamento, o que faria. Após a explicação, Gale replicou descrente, “Eles vão fazer você dançar por mais de uma hora? Assim, sem descanso?”

“Sim e não. Eu vou cantar quando estiver cansada demais para continuar dançando. Vou revezando até o final”, a égua rubra esclareceu.

“E aposto que se o público quiser um bis e você ficar mais tempo do que deveria no palco, eles não vão pagar extra”, Rain constatou, voltando a ficar cheia de raiva.

“Não vão não”, a voz de Allegro se intrometeu na conversa. O jovem garanhão chegara por trás de Can-Can e ninguém havia reparado. “Posso sentar com vocês?” Nenhuma das éguas fez objeção. O pianista foi usou sua magia para trazer uma cadeira vazia de uma mesa próxima e se sentou. A maior parte dos clientes que haviam visto o show já tinha ido embora, mas os que ainda permaneciam, ou os que saiam naquele instante, lançavam olhares desejosos para a mesa da égua rubra.

Rain pensava em como poderia ser perigoso para a amiga trabalhar num lugar como aquele durante a noite, quando havia menos vigilância e Can-Can estaria sozinha. Preciso falar com Finesse, a égua malhada pensou.

Allegro apresentou-se para o grupo de éguas e pegou Skylark de surpresa. O queixo da pônei terrestre quase caiu ao descobrir que ele era um potro; reparou somente quando uma lufada de vento trouxe consigo o odor característico de um garanhão e vinha da direção do unicórnio. Mesmo olhando de perto, podia enganar quem não o observasse com atenção.

“Há um ano eles demitiram uma égua que não quis fazer um bis. Ela queria receber por fora para continuar dançando, mas eles se negaram a pagar”, o unicórnio contou em voz baixa. “É melhor você se cuidar, Can-Can.”

“Se eu não precisasse desse emprego de verdade, falava umas coisas para eles”, Can-Can praticamente sussurrou, temendo que alguma das pôneis no balcão tivesse ouvido algo da conversa.

“Bem, se você precisa mesmo desse emprego, eu tenho duas dicas para você; primeiro, não deixe eles descobrirem o quanto você precisa do trabalho; e segundo, prepare-se para encarar muita coisa ruim. Eles vão se aproveitar de você da forma que puderem”, Allegro aconselhou seriamente. “Ah, e não chegue muito perto de Herr Keep, ele tem fama por assediar as éguas do bairro.”

Can-Can franziu o cenho, torceu o focinho e baixou a cabeça, ficava cada vez mais desgostosa. E apesar de não ter gostado da família do taberneiro, uma parte de si sentiu dó de Blight, cuja desconfiança de traições provavelmente era fundamentada. Sentiu um nojo especial pelo garanhão castanho.

Bufando, Rain parecia cada vez mais descontente com a taberna e seus donos.

Skylark olhou preocupada para a égua manchada. Virou-se para o unicórnio e falou para quebrar o gelo, “Então, como você veio parar aqui?”

Surpreendido com a súbita pergunta, Allegro respondeu manso, “Estava precisando de dinheiro para pagar a faculdade de música, não demorei a descobrir que taberneiros pagam bem por músicos. Acabou que fiquei por aqui ao invés de voltar para os estudos. Tomei gosto pela coisa”. Gale lançou para ele um olhar de descrença que o fez continuar, “Para quem toca, as coisas são mais fáceis. Eles não são tão abusados conosco porque sabem que sem música não tem dança; e que não é fácil encontrar um bom músico”.

Infeliz, Rain lamentou por Can-Can em voz baixa. Todos ouviram. Skylark e Nightingale entreolharam-se sérias, pareciam poder ler os pensamentos uma da outra.

Sky moveu-se para perto da vedete vermelha, abraçou-a com força e usou um casco para erguer o queixo dela e fazê-la olhar para o unicórnio. Em seguida encarou o pianista e falou com uma voz excessivamente preocupada e dramática, “Allegro, você vai cuidar da nossa irmãzinha enquanto ela estiver aqui, não vai? A gente ia morrer de preocupação pensando nela aqui a mercê desses pôneis tão malvados”. O unicórnio assentiu de imediato, meio atônito com o show de dramaticidade da pônei bege. Teria ajudado a vedete de qualquer maneira, geralmente auxiliava as dançarinas da taberna na medida do que fosse possível. Logo, a expressão preocupada no rosto da pônei terrestre se desfez e em seu lugar apareceu um meio sorriso agradecido; seu olhar agora tinha um tom sedutor. Os grandes olhos cinzentos de Sky pareceram reluzir como se houvesse uma chama no fundo deles. Allegro ficou sem jeito com a forma como ela o encarava. O pobre pianista somente pôde ficar com o rosto cada vez mais vermelho enquanto a égua se aproximava dele e plantava um leve beijo em seu rosto, no canto esquerdo de seus lábios e lhe agradecia com uma voz extasiante. Skylark voltou para seu lugar devagar e torcia para que aquele gesto tivesse destruído qualquer possibilidade de o unicórnio deixar de cuidar de Can-Can no futuro.

Rain assistiu a cena toda em silêncio e levantou uma sobrancelha para Nightingale, que lhe devolveu um sorriso satisfeito. Allegro tinha uma expressão completamente abobalhada no rosto; suas bochechas estavam quase tão rubras quanto Can-Can. A pônei de cristal agradeceu ao unicórnio. Ele piscou os olhos algumas vezes achar alguma concentração e fez um aceno positivo com a cabeça.

Após uma breve troca de palavras, as quatro vedetes se despediram do unicórnio e deixaram a taberna. Can-Can caminhava pensativa enquanto as amigas conversavam sobre terem de ir logo ao cabaré – pois precisavam ensaiar e verificar roupas.

“Rhiannon está no Sun, hoje?”, Can-Can perguntou. Lembrara-se de Sky ter dito que a instrutora passara pelo mesmo problema que ela passava agora e imaginou que seria interessante conversar sobre isso com a pégaso rósea. E ainda, uma parte de si queria uma desculpa para ir ao cabaré; acostumara-se a ir para lá de tal forma que parecia estranho ou até mesmo desconfortável não ir.

“Acho que hoje ela tá de folga”, Sky respondeu distraída. “Por quê?”

“Não é nada”, a pônei de cristal retrucou. Então acho que vou passar na casa dela, pensou.

As pôneis seguiram juntas pelas calçadas até onde puderam. Quando chegaram num cruzamento em que seus caminhos se separavam, fizeram despedidas breves. Rain sussurrou rapidamente no ouvido de Can-Can, “Vou passar na sua casa depois que terminar o trabalho. Prepara alguma coisa gostosa pra nós, tudo bem?” E partiu acompanhada de Skylark e Nightingale. A vedete vermelha as viu se distanciando por algum tempo e depois se virou para o lado oposto a fim de tomar seu rumo para a residência da instrutora.

Apesar de nunca ter ido ao apartamento de Rhiannon, sabia o endereço. Uma caminhada rápida para a zona leste da cidade, onde a maior parte dos pequenos prédios de Germane se apoiava uns nos outros, onde as calçadas eram menos largas e as árvores e jardins menos frequentes; num prédio laranja de esquina, bem simples, a vedete entrou pela porta da frente. E após trocar palavras breves com o porteiro, subiu os seis lances de escadas que levavam ao terceiro andar. Lá, virou-se para a direita e trotou até o fim do corredor vazio e cinzento. Prostrou-se em frente à porta do apartamento 304, bateu três vezes e esperou. Ouviu alguma movimentação vinda do lado de dentro e o baque surdo de algo que caía no chão; mais um tempo de silêncio veio em seguida. Can-Can bateu de novo.

“Já estou indo! Quem é que está aí?!”, Rhiannon gritou de dentro de casa com a voz meio esganiçada.

“Sou eu, Can-Can”, a égua rubra respondeu hesitante, temia ter vindo em má hora.

“Ah! Só um instante, amada! Eu estava arrumando umas coisas e me atrapalhei! Me dê um instante”, a pégaso replicou. Logo, o som de cascos nervosos surgiu, vinham em direção à porta. Rhiannon abriu a porta devagar; com esforço aparente sorriu para a visitante e cumprimentou-a. Os olhos da coreógrafa estavam levemente avermelhados. Quando falou, sua voz falhou um pouco. Estivera chorando.

“Eu estou atrapalhando alguma coisa?”, Can-Can perguntou receosa, não quis ser muito direta e perguntar se algo acontecera.

“Oh! Não, não. Está tudo bem, eu só estava arrumando uns livros velhos aqui e eles estão cheios de poeira. Atacaram minha alergia, nada demais”, Rhiannon respondeu com outro sorriso forçado. “Pode entrar, vamos.”

O apartamento da pônei rosa era pequeno, mas muito bem arrumado. Na sala estavam distribuídos uma dupla de pequenos sofás de dois lugares à esquerda, entre eles havia uma mesinha baixa que possuía uma pilha de livros e álbuns de fotografias. Ao fundo havia uma pequena porta de vidro que levava a uma varanda. Grandes estantes cobriam a maior parte da parede à direita. Um corredor à direita levava ao quarto e à cozinha. Rhiannon indicou o sofá para a visitante e pediu licença para lavar o rosto. Can-Can sentou-se obedientemente e esperou. Passou o olhar pelos livros que estavam em cima da mesa. Um dos álbuns de fotografias estava aberto e apresentava uma fotografia solta. Na imagem estavam a instrutora de dança e Diva, bem mais jovens, tomando sorvetes no que parecia ser um parque de diversões; ambas sorriam bastante. Rhiannon olhava para Diva, enquanto a pônei de cristal cerúleo encarava diretamente a câmera. Can-Can não pode deixar a curiosidade de lado e pegou a foto entre seus cascos para avaliar melhor; um movimento desajeitado fez com que a imagem escorregasse para o chão e caísse com o verso virado para cima. No verso da foto, lia-se em letras cursivas pequenas: “Nunca nos divertimos tanto! Foi o dia mais feliz da minha vida”. Seguida da frase vinha uma numeração que datava um dia há quase vinte anos. A égua rubra virou algumas páginas do álbum, em todas elas havia uma foto das duas jovens pôneis; elas pareciam ser melhores amigas. Voltou algumas páginas e percebeu que as fotos as deixavam ainda mais jovens. A primeira foto do álbum era das duas potrinhas galopando por um jardim.

Can-Can ouviu o bater de uma porta e apressou-se em deixar tudo como estava. Rhiannon voltou à sala no momento em que a pônei de cristal devolvia a foto ao lugar de origem. Um olhar ofendido passou pelo rosto da pégaso rósea. “Não devia ficar mexendo nas coisas dos outros”, disse com uma raiva mal contida. Can-Can não demorou em pedir desculpas, muito constrangida.

A anfitriã suspirou e sentou-se no sofá à frente do qual a égua rubra se sentava. Tomou o álbum entre os cascos e observou a foto do parque por um longo período de tempo. “É quase engraçado como a vida dá um jeito de afastar da gente os pôneis que mais amamos”, a pégaso sussurrou tristonha.

A pônei de cristal lançou um olhar solidário para a coreógrafa, mas não pôde deixar de comentar, “Vocês pareciam bem próximas”.

“Quase irmãs. Crescemos juntas”, Rhiannon replicou. Acrescentou com rispidez, como se acabasse de lembrar que estava brava com a visitante, “Nunca mais mexa nas minhas coisas”. Fechou o álbum e depositou-o de volta na mesa enquanto Can-Can pedia desculpas de novo. “Enfim, por que está aqui?”

“A temporada no cabaré terminou e eu não consegui garantir meu emprego, Herr Finesse me mandou para uma taberna e...”, Can-Can falou e foi interrompida.

“Oh, não! Amada, eu sinto muito. Você vai precisar de muita sorte”, Rhiannon lamentou rapidamente com um olhar bastante preocupado.

“Sky disse que isso aconteceu com você também e eu pensei em pedir ajuda”, Can-Can explanou tentando ignorar a preocupação nada auspiciosa da instrutora. A pônei rosa pensou um pouco e fez uma careta como quem tenta lembrar de acontecimentos distantes, balançou a cabeça e respirou fundo antes de responder:

“Já passei três temporadas fora do cabaré na minha época de vedete. Aprendi uma ou duas coisas sobre tabernas, mas o que se precisa mesmo lá é muita sorte”. A égua rubra encarou-a como quem pede ajuda e nada disse. Então a pégaso continuou, “É o seguinte: nunca trabalhe mais de um turno na mesma taberna. Nunca coma ou beba nada que alguém da plateia ofereça. Fique atenta para ver se ninguém está seguindo você ao voltar para casa, imagino que nem preciso dizer para você nunca ir trabalhar quando estiver... você sabe. Evite ficar na taberna, trabalhe e vá embora; taberneiros têm a mania de descontar qualquer coisa que você consuma lá dentro direto no pagamento, e se você não estiver atenta, eles te roubam”.

Ouvira tudo em silêncio, mas quando a outra égua terminou, Can-Can disparou, “Como não trabalhar na mesma taberna? Por quê?”

“Eles vão dizer que pagam pelos seus serviços no final de semana ou no final do mês, se você fizer alguma besteira antes de receber, eles te demitem e você sai de cascos vazios. Faça uma apresentação e exija o pagamento logo após a dança. Seria um sonho se eles pagassem antes. Trabalhando em vários lugares você pode ganhar melhor, as tabernas disputam entre si pelas apresentações no almoço e no jantar, algum taberneiro pode pagar mais para que você dance para ele em vez de dançar pro concorrente, e em contrapartida o concorrente pode aumentar o seu pagamento para que você não saia, entendeu?”, Rhiannon explicou. Can-Can assentiu em silêncio. A instrutora seguiu aconselhando, “Muito cuidado com os pôneis que assistem seu show, vários deles não são bem-intencionados, e em tabernas não há seguranças e você fica bastante próxima da plateia. Além disso, nem toda taberna tem saída pelos fundos, então pode ser que você precise passar por eles para sair, e todos vão ver. Por isso você precisa caminhar por ruas mais movimentadas quando voltar para casa, afinal, nunca se sabe se um deles pode tentar seguir você. Não fique tempo demais depois de dançar, porque fica mais tarde, tem menos pôneis pelas ruas e você corre maior perigo”.

A pégaso rósea levantou-se subitamente do sofá e trotou até a cozinha, dizendo, “E acho bom pensar em um nome artístico. Aliás, mais de um”.

“Por quê?”, Can-Can perguntou. Estava preocupada com tudo o que ouviu.

Da cozinha, a voz de Rhiannon surgiu alta, por cima do barulho de uma chaleira chiando, “Eu disse que eles pagam para você ficar ou para convencer que trabalhe em outro lugar, mas não é nada legal quando taberneiros descobrem que você está brincando assim com eles. É melhor se apresentar com nomes diferentes em tabernas diferentes, assim eles pagam mais pra você ficar por prevenção, por medo de que o concorrente saiba de você e queira te contratar em algum horário vago, entendeu? Você pode pedir um aumento para o seu show em pouco tempo dessa forma. Mas tome cuidado, nem todos os taberneiros aceitam facilmente quando você vai trabalhar com um concorrente, e isso é mais um motivo para usar outros nomes”. Voltando da cozinha após certa demora, a pégaso trazia consigo, equilibrada em nas asas, uma bandeja com um bule fumegante, duas xícaras de porcelana e um pratinho com pequenas fatias de bolo. Deixou a bandeja habilmente na mesa e serviu o chá.

“Meus patrões já me conhecem como Can-Can. E eu peguei todos os horários vagos que eles tinham”, a vedete vermelha murmurou.

“Qual o turno com mais apresentações?”, Rhiannon perguntou.

“Almoço. E danço apenas uma noite na semana.”

“Diga que não quer mais trabalhar no almoço. Torça para que eles não estranhem demais essa mudança súbita. E se dança apenas uma noite na semana, melhor. Procure outras tabernas para preencher os outros horários. Alguns cafés trabalham com apresentações durante a manhã e como não ficam abertos à noite, pagam bem por elas. Pode tentar um desses também”, Rhiannon sugeriu e ofereceu uma xícara para a convidada.

A pônei de cristal aceitou o chá educadamente e tomou um gole; refletia consternada sobre tudo o que ouvira até então. Com um rápido bater de asas Rhiannon voou até o lugar ao lado de Can-Can, deu-lhe tapinhas nas costas e murmurou, “Não se preocupe. Eu tenho certeza que você vai se sair bem”. Can-Can assentiu um tanto insegura.

Rhiannon pigarreou e por um segundo uma expressão amarga passou por seu rosto. “Se a Diva é o que é hoje, ela deve tudo ao sucesso que conseguiu nas tabernas. Ela deu muita sorte. Veja onde ela chegou. Pode ser você daqui a uns anos”, disse quase inexpressiva. Um clima estranho e pesado se apoderou da coreógrafa. Can-Can preferiu não questionar; terminou o chá, mordeu um pedaço de bolo e fez menção a partir. A instrutora aquiesceu e levou-a até a porta.

“Não comente nada sobre o álbum com nenhum pônei, por favor”, a pégaso disse secamente antes de se despedir; e Can-Can entendeu aquilo como uma ordem.

“Certo”, retrucou a pônei de cristal ao passar pelo batente, voltando ao corredor cinzento. “Você vai ficar bem?”

Os olhos de Rhiannon esbugalharam-se, surpresos como se acabasse de perceber que deixara seu estado emocional ruim transbordar. “Oh, amada, não se preocupe comigo. Eu estou muito bem, é que eu fico meio sensível quando mexo nos meus álbuns”, explicou, tentando convencer com uma meia verdade a si mesma também.

“Ouvi uma pônei dizer que vocês duas se odeiam. É verdade?”, Can-Can não pôde deixar de perguntar, poderia ser a sua única chance. Rhiannon balançou a cabeça como se ponderasse e depois balançou afirmativamente. “Por quê?”, a égua rubra acrescentou.

A pégaso rósea abriu a boca como se fosse responder, parou, pensou mais um pouco e replicou, “Amada, isso não é da sua conta nem da de ninguém. Boa noite”, e fechou a porta, deixando Can-Can sozinha no corredor. De súbito a porta entreabriu-se mais uma vez, Rhiannon colocou a cabeça para fora; alertou, “Esqueci de falar, se está trabalhando na zona sul, fique longe da travessa Hummingbird. Lá não é lugar pra você”, e fechou novamente a porta. Após encarar a madeira escura a sua frente por algum tempo, a vedete baixou a cabeça e trotou para fora do prédio.

Caminhou devagar para casa, não tinha pressa alguma. Esquecera-se completamente que Rain dissera que apareceria após o trabalho e não comprou nada no caminho de volta. Ao encontrar a égua malhada sentada no batente da porta de casa, Can-Can ficou constrangida.

“Rain”, cumprimentou sem jeito.

“Primeiro achei que você tinha esquecido de mim, depois achei que algo devia ter acontecido com você, o que esteve fazendo?”, a pônei terrestre falou levemente aborrecida.

“Visitei Rhiannon. Queria falar com ela sobre o trabalho nas tabernas”, replicou Can-Can.

Ponderando, Rain levantou; fez menção a entrar e a parceira se adiantou para destrancar a porta.

Do lado de dentro, a égua loira mencionou em fingido descontentamento, “Pelo que eu vejo, você não preparou nada para nós”. Can-Can balbuciou, tentando encontrar uma resposta; não queria dizer que se esquecera de Rain. Por sorte, a outra égua poupou-a do trabalho de formular algo para dizer, pois beijou seu focinho de leve e disse que estaria satisfeita com um ensopado.

Rain passou o resto do dia e a noite em companhia da égua rubra. Saiu cedo, discretamente e sem acordar Can-Can, na manhã seguinte.


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