Valentina de Castilhos escrita por Carmen Rey


Capítulo 1
Capítulo único




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Não houve começo.

 

Valentina de Castilhos tinha descendência portuguesa. Um amigo inseparável. Dois gatos. Um irmão mais novo. Um olhar acuminado que costumava espetar meu coração adormecido. Seus cabelos eram vívidos, meio dourados, e acendiam à luz do sol. Eles combinavam com o seu sorriso, e nunca o encobriam, o que era um alívio.

Mas Valentina de Castilhos apenas foi. Ela não é; ela foi e não será mais. Valentina agora jaz aos meus pés e sua boca seca está entreaberta, e eu ainda espero que meu nome saia dali mesmo que num engasgo.

Eu já escrevi alguns poemas sobre ela, mas em poucos minutos estavam todos na lixeira. Nenhuma palavra que eu escrevia parecia chegar perto dela; nenhuma palavra era o suficiente para ela, nada era. Então, ao invés de escrevê-la, comecei a ouvi-la. Em silêncio. Assim, tudo o que eu tinha era a voz dela, e isso bastava para me inspirar por dias, semanas, meses, anos. E eu não precisava escrever nada. Ficava tudo na cabeça.

E os anos. Os anos passavam e às vezes pareciam pausar vagarosamente num padrão sádico que me torturava para me lembrar que apesar de tudo, ainda sou carne e ódio.

 

 

E meu amor mais-que-perfeito,

Que reside numa sílaba só,

Sem sujeito,

Impossível em palavras colocar

Tão sujo, desse jeito.

 

 

Anos. Ela me perseguia por quase anos. Mesmo parada, mesmo intacta com suas rédeas de encanto, ela me perseguia dia e noite. Na verdade, principalmente de madrugada, às 4 da manhã, onde as estrelas pareciam dormir devagarinho e as minhas músicas favoritas já não tinham mais sentido. Era nesse momento que Valentina era minha carne, meu desejo, meus lençóis, meu travesseiro.

Eu me soltava de tudo o que me prendia apenas para tentar alcançá-la. E ela, tão longe, não queria ser alcançada.

Ela queria andar num carro com teto solar, queria ficar dançando até as seis da manhã com seu vestido azul celeste, queria não ser feliz, mas sentir apenas o prazer de procurar a felicidade — para ela, apenas isso bastava.

 

 

Seu amor era ferocidade,

mas não ouso dizer que era dela.

Era meu amor, minha vaidade

Era uma lembrança pérfida que virou sequela

Mas ela, mesmo que finda

das minhas tristezas

é a mais bela

 

 

Eu tinha medo de olhar por muito tempo, temendo que em algum momento ela não estivesse mais lá.

Valentina sempre fugia quando podia, fugia de tudo para descansar e esquecer daquilo que corria para depois de um tempo voltar como se nada tivesse acontecido.

Aos poucos fui me cansando de procurá-la. Em tudo o que eu fazia, ela não demonstrava reciprocidade. Eu queria achá-la, mas ela não queria ser achada. Queria escrever para ela, mas ela não queria se ler nas minhas palavras. Queria escutá-la, mas ela nunca acharia isso o suficiente.

Valentina. Um vento longo e maldoso, frio e silencioso, o meu amor. 

O “de Castilhos” é totalmente de Portugal, e eu gosto de escrever sobre ele porque representa as suas raízes, embora ninguém tenha ouvido muito sobre essa parte de sua história.

De Castilhos é um complemento, não é um sobrenome. Quem via Valentina sempre via Valentina de Castilhos, uma menina de origem nobre e longânime, uma família numa garota só.

 

 

 Ah, a pobre menina que carregava tanto peso nas costas

Definha, definha, definha,

minha menina.

 

 

Valentina de Castilhos não sabe, mas quando quase caiu por completo, eu estava lá. Não fisicamente, mas eu tentei estar lá.

Só eu percebi quando a garota audaciosa começou a minguar, e já não era mais Valentina de Castilhos. Era só Valentina ou Srta. de Castilhos.

Ela não era corajosa o tempo todo. Tinha seus momentos de fraqueza, mas eram implícitos. Não sei como eu pude sequer notá-los, mas minhas paranoias às vezes me fazem pensar que o modo em que os vi foi proposital.

E doeu demais que meu coração estava em um lugar onde meu corpo não podia estar. E doeu, doeu, doeu, como sempre, arrancou de mim coisas que eu achava que não podia mais perder.

 

 

Um terceto minúsculo para a grande Valentina de Castilhos:

T[r]emo

quando lembro 

que não te tenho.

 

 

Então, quando tive que jurar para mim mesmo que estava vazio para não ser surrupiado violentamente mais uma vez, eu mandei Valentina ir embora, porque em mim já não cabia mais dor.

Mas que estranho; uma vez que pensei; o amor rimar com dor! Tanta coincidência, tanta verdade, tantas poesias reais, tantas realidades inexistentes.

E ela era uma das minhas realidades furtivas. As que eu imaginava, e por um segundo eram reais, mas depois iam embora violar os sonhos de mais alguém.

 

 

Valentina não foi a primeira,

mas foi a última

 

 

Nunca vi amor tão violento, tão bárbaro. Uma menina de olhos azuis e sardas…

 

 

Valentina tinha sardas na extensão do nariz até debaixo dos olhos.

A única constelação que eu decorei na minha vida inteira

Estava no rosto dela

 

 

...quem diria, Valentina, a doce e sorridente; animalesca quando fecho os olhos. Ela era a minha fera, meu pecado, e agora só era — tudo se acabou, e ainda sim continuo com a sensação de estar sendo caçado por um amor que nunca me encontrou.

Valentina de Castilhos nunca soube, nem sequer chegou a enxergar, mas em algum canto, eu a amava. Amava até meus olhos arderem e deixassem que aquela paixão brutal vazasse. Era tão desumano o que estava no meu coração em nome de Valentina que passei a visualizá-la como um monstro. Eu tentava achá-la, mas ela nunca se importava, nunca olhava para trás para me ver — nunca tive coragem suficiente para estar em sua frente.

E eu ficava indignado. Totalmente indignado. Como ela ousava me fazer sentir daquele jeito? Como ela, uma garota normal (mesmo que eu a visse com outros olhos, eu precisava admitir que numa opinião geral ela era comum) e incompetente com a reciprocidade pode me fazer tremer por tanto tempo? 

Depois que a mandei embora, passei também a não aceitar o fato de ela ainda despertar batidas fortes e rápidas no meu coração adormecido. Eu simplesmente não aceitava.

Então Valentina agora era um pesadelo, um tremor contínuo, uma nostalgia indigesta. Aquela que desce arranhando o esôfago, fica no estômago para me nausear e se dissolve. A que me deixava imensamente confuso sobre o tempo do meu amor, sendo que na verdade eram poucas horas desde que eu havia decidido que ele nunca existiu. No final das contas, em minha mente, ela era teratismo disfarçado de bondade.

Agora, tudo que era bom nela era nostálgico, mas eu não conseguia digerir. Parecia que tudo era uma mentira, um fardo, uma ladainha maçante, um caminho sem volta. Eu me prendi àquela tristeza porque era a única coisa que eu conhecia dela.

Eu a mandei embora, mas continuei no mesmo lugar.

 

Suicídio

 

Estou

à beira

[de a]mar

 

(Precipício)

 

 

Até que então, já ensandecido — mas lúcido no mundo material —, resolvi matar o meu amor.

 

 

Eu matei Valentina de Castilhos.

 

 

No princípio eu pensei que não seria capaz de sumir com o brilho da constelação mais linda que eu conhecia, então a matei mentalmente. Tentei sumir com tudo o que eu fazia crescer por ela — o amor, o ódio, as dúvidas, o carinho, a tristeza, a amargura —, mas ainda não era suficiente. Eu ainda tinha necessidades carnais; poesia de víscera. Eu tinha a pele; a pele dela (que eu não tinha). Como todo amor, eu tinha meu desejo, a lascívia que eu tentava deixar sutil no que eu escrevia e via, meu ardor, minha vontade de tê-la em meus braços e em todo o meu corpo, minha vontade de senti-la, de respirá-la, de escutar de perto o que ninguém nunca havia ouvido dela antes, minha luxúria. Mas isso era carnal demais para cessar, então eu também tinha que ser carnal com a morte dela. 

Foi às quatro da manhã. Eu ainda pensava nela. As músicas continuavam sem sentido. Ela estava coberta de uma luz azul e seus olhos estavam desertos. 

E foi a primeira vez que Valentina de Castilhos olhou para mim. A primeira, e assim como ela em mim, a última.

Era de uma faca que eu estava acompanhado, e acovardei-me quando cheguei perto dela.

Por um segundo, seus olhos suplicaram, mas logo depois pararam.

No único momento que Valentina de Castilhos sequer se comunicou comigo, eu fiquei em silêncio. Não a escutei. Não a procurei, não a olhei. Foi no momento que eu mais almejei em toda a minha vida que eu também encerrei com tudo aquilo, perdi meus sentimentos e o horizonte pareceu ficar ainda mais longe. Na hora em que um sonho se realizou, ele já não era mais meu sonho.

Valentina ainda estava viva; ela nunca morreria tão fácil. Em meus pensamentos, principalmente, ela sempre viveria. Mesmo fugindo, às vezes se escondendo, mesmo ausente, na minha mente Valentina era constantemente presente. Ainda respirava, mas com os olhos fechados. Sua boca estava entreaberta. Estremeci pelo que pareceu ser menos de um segundo quando fui tomado pelo genuíno desejo de tocá-la com a minha, mas aquilo foi só um reflexo, uma ambição maquinal que já não servia mais.

Mas mesmo com tudo parecendo uma resposta, eu ainda me perguntava.

Por quê?

 

 

Valentina de Castilhos acordou um coração adormecido

que só queria ficar sonhando.

Ela me fez sentir coisas que eu percebi que nunca desejaria

e sentia um ódio puro e tortuoso

e não queria me permitir amar daquele jeito.

E eu amava Valentina de Castilhos.

Por isso a matei.

 

 

Eu não a matei para fazê-la minha. Valentina sempre teve essa natureza que não podia pertencer a ninguém, e eu sabia disso. Eu só precisava acabar com aquele terceto triste que ela havia me deixado, aquele que parecia inacabado, mas que ainda sim, acima de tudo, era [d]ela.

 

 

Valentina

de

Castilhos

 

 

Mais nada, só isso. Ela era a poesia.

 

 

Nada mais me tocou naquele teatro tétrico.

 

 

Eu a deitei no chão. Seus cabelos se trançaram com a grama daquela mata cheia de sombras. Seus olhos piscaram e faiscaram para mim, no meio de todas aquelas árvores e daquela névoa. O céu ainda estava escuro, mas se eu olhasse para cima, podia ver o reflexo de Valentina em todo lugar.

Não a deixei falar. Se escutasse mais de meu amor ingrato, levaria a faca até mim, e a dor se incrustaria em tudo o que são minhas palavras e de lá iniciaria novamente a tentação.

Olhei por uma última vez nos olhos dela. Vi lágrimas. Tampei sua boca com a minha mão que era grande e pálida, e por alguns segundos vi um véu branco se arrastando pelos seus lábios, como que para calá-la com elegância.

Sei que não foi só pelos olhos que ela chorou. Quando a esfaqueei no peito, ela chorou em vermelho. O sangue de Valentina era escuro, mas sua dor era carmim. Eu podia senti-la. Era como a dor que um dia eu senti em seu nome, a dor constante e atroz que para mim não passava de uma beleza que eu ainda não tinha entendido como apreciar.

Era o que era; qualquer coisa de Valentina era beleza.

Ela gritou, mas sua voz ficou abafada. Eu estava por cima dela, chorando pelo meu amor que se ia penosamente, e foi aí que eu percebi o que a faca transmitia: toda a dor. Toda a dor que eu sentia ela agora experimentava através do metal, dos pulsos e dos impulsos dos meus braços. Seus olhos me contavam um horror quase obsceno de tão potente.

Na barriga, no peito, até nas pernas, meu amor se desmantelou em vermelho, derretendo e minguando de tristeza. Sua cabeça pendia para o lado, com aquele azul copiando o pedaço do céu claro que estava prestes a aparecer. Era a única cor que se diferenciava do vermelho que coloria todo o lugar.

Sentei-me ao seu lado e tirei uma mecha de seu rosto, olhando para o único brilho que me iluminou enquanto vivia. 

E agora a faca dorme silenciosamente ao meu lado.

Mas não me abalo, só admiro enquanto ela dorme banhada no veneno que despertei — aquele sangue quase que amaldiçoado.

 

 

Era uma sensação estranha,

mas eu não sentia muita coisa. Era uma sensação estranha

e talvez, quem sabe,

boa também. 

 

 

O céu começou a se pintar de laranja.

Tento escutá-la por uma última vez — contrariando os princípios brutais daquela madrugada — para ver se ouço algo que eu esperasse, mas como sempre, ela não fez juz às minhas esperanças já machucadas.

De Valentina de Castilhos não sobrou mais nada depois do amanhecer.

E mesmo que claro, ainda considero madrugada. As quatro horas da manhã se estenderam, mas junto com ela, matei todos os pensamentos que me torturariam docemente nessa hora de um antigo dia.

Coloquei um fim em Valentina de Castilhos sem nunca ter colocado um começo, e a vejo se despedir de mim com lágrimas e constelações sem brilho. E mesmo assim; definhando, ela está linda, estática com seu eterno encanto. Ela não teve morte ruim, hedionda ou pavorosa. Ela era um espírito livre do cosmos que jogava sua maior e mais feroz explosão de luz no exato momento em que estivesse prestes a sumir.

Explodiu numa supernova e agora tirou sua âncora do céu, para que qualquer lugar onde olhasse não houvesse mais luz.

E mesmo que tenha sido eu, para mim a culpa sempre será dela.

 

 

Meu amor eternamente despedaçará em flor.

 

 

Tudo o que ficou eternizado em minha mente agora é o nome do poema que jaz e dorme sob outras constelações.

 

 

Valentina de Castilhos.


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Notas finais do capítulo

Um dos únicos contos que, entre tapas e beijos do meu subconsciente, sobreviveu ao tempo. Ainda gosto muito dele. Sou muito apegada. Obrigada por ler :)