— Por que você odeia tanto os mundanos, pai? - pergunto de forma curiosa. Afinal, o que nos diferencia tanto?

— Não faça perguntas idiotas, Clarissa. Eu não os odeio, apenas os desprezos. – ele responde de maneira mal-humorada. Se não os odeia, por que quer tanto que eles nos sirvam?

— Eu não consigo entender – murmuro de cabeça baixa, sabendo que estou entrando em terreno perigoso – O que nos torna tão superiores? Aposto que se eles soubessem de nós, gostariam da gente.

— Já disse para não fazer perguntas idiotas, Clarissa! – a cadeira caiu com um baque alto enquanto ele se levantava furioso e vinha em minha direção – Nós somos superiores á eles, somos os escolhidos por Raziel. E é a nossa raça, são os caçadores de sombras, que vêm protegendo esses inúteis.

O primeiro tapa me acertou em cheio e pude sentir o mundo girar a minha volta.

— A existência deles só é possível graças a nós, caçadores de sombras.

Outro tapa e pude sentir o sangue começar a escorrer pelo meu nariz.

— Cada vez mais os demônios tem atacado nossa dimensão. Cada vez mais caçadores de sombras estão morrendo!

Mais um tapa e eu pude sentir um corte se abrir em minha bochecha e mais sangue escorrer.

— Eles nos devem suas vidas! O mínimo que podem fazer por nós é tomarem do Cálice e oferecerem suas vidas em combate, como os caçadores de sombras tem feito por muitos anos.

Senti meu corpo atingir o chão e tentei olhar para o homem a minha frente. Por que um anjo escolheria alguém tão agressivo para ser superior?

— Mas... Nós somos todos humanos, não somos? Por que Raziel deu preferência a nós?

Os olhos de Valentim queimavam de raiva quando ele olhou para mim e então eu soube que já tinha falado demais e que pagaria por isso. Eu deveria obedecê-lo, não agir por mim mesma.

— Nós somos melhores que eles. Mundanos não são como nós, não possuem sangue de anjo em suas veias. E, principalmente, não são como você: nenhum deles possui sangue de demônio. Para eles você seria apenas uma aberração. Nunca se esqueça disso, Clarissa.

Sua mão voltou a atingir meu rosto e tudo finalmente escureceu ao meu redor.

Sim, eu sou uma aberração, papai. Não sou nada além de um monstro.

Como a filha obediente que eu era, eu realmente nunca me esqueci disso.

Assim como nunca me esqueci de que tudo isso é culpa sua, Valentim.

Para os mundanos, que tipo de monstro você seria, papai?

 ~ ♥ ~

— Então você é a Clary? – o vampiro desajeitado, que Jace diz ter trazido consigo de Nova York, olha para mim de forma curiosa – prazer em lhe conhecer, eu sou o Simon, a propósito.

Apenas aceno em concordância enquanto o observo com atenção: já vi muitos vampiros antes, mas este não se parece com nenhum deles. Na verdade ele não parece em nada com um membro do submundo, muito menos com um caçador de sombras. É desajeitado e parece deslocado, quase como se não soubesse o que está fazendo aqui.

— Então, sente muitas saudades de Madrid? - ele pergunta casualmente enquanto se senta em uma poltrona, em plena luz do sol. Como é possível? Jace me avisou sobre a habilidade incomum do vampiro, mas ainda parece surreal demais para mim. Membros do submundo são inferiores, decadentes. Vampiros são seres impuros, não deveriam suportar a luz do sol. Não deveriam ter essa graça.

— Claro – respondo calmamente, tomando cuidado com minhas palavras. Simon não parece ser do tipo que investiga e tenta obter informações. Na verdade, ele parece apenas interessado em conversar. Desde quando vampiros são assim?

— Sério?! Eu entendo você. Quero dizer, também sinto saudades de Nova York. Mas vocês, caçadores de sombras, não são sempre tão chorosos quanto a Idris: Como se aqui fosse, sei lá, o paraíso na Terra – ele revira os olhos e volta a olhar para mim. E então sorri. Um sorriso quase gentil, eu até diria. Que tipo de membro do submundo sorriria assim? - Eu bem que sabia que você não era como os outros!

— Como assim? - pergunto enquanto franzo as sobrancelhas. Ele continua sorrindo, continua sentado no sol. Continua sendo um membro do submundo, mas tão distante de agir como um. Quem é esse vampiro? Por que ele é tão... incomum?

— Você é diferente dos outros caçadores. Eu soube disso assim que a vi,  embora eu confesse que antes disso tinha pensado o pior de você: afinal, de que tipo de pessoa o Jace seria amigo? Mas, depois que a vi, tive certeza que você não era compatível com nenhum deles. A maioria do pessoal daqui são uns brutamontes mal encarados cheio de armas; enquanto que você parece vocalista de uma banda alternativa ou personagem de um mangá de fantasia.

— O quê? - pergunto verdadeiramente confusa. Mangá? Alternativa? Fantasia?

— Ah, meu D... – ele engasgou por um breve momento, suspirou, e voltou a falar – Droga, acho que no final você não é tão diferente assim. Também não perde seu tempo com coisas de mundanos, é isso? Sério, às vezes não entendo como é que vocês aproveitam o tempo livre de vocês.

— Não costumo ter tempo livre. E meu pai não gostava que eu perdesse meu tempo com essas coisas.

— Pensei que vocês que vivem em institutos fossem mais receptivos com nós, meros mortais. Ah, não, calma: esqueço que esse não é mais meu caso. Desculpe. – ele revirou os olhos de novo e me olhou de forma triste, como se um ser como ele pudesse ter sentimentos.

— O que quer dizer?

— Jace não lhe contou? Eu era mundano até meses atrás. Na verdade, foi por acaso que eu me envolvi com toda essa história de caçadores de sombras, vampiros, demônios... Eu nem deveria estar aqui, na verdade.

Olho para ele, dessa vez de forma mais atenta. Cabelo bagunçado, postura torta, olhar curioso, modos desajeitados. Nada parecido com um vampiro, nada parecido com um membro do submundo ou da clave. Olhar deslocado, como se estivesse perdido. Então é assim que mundanos são de verdade?

— Você realmente não sabe o que é um mangá? Você provavelmente vai gostar, eu acho. – a voz dele ressoa pela sala de forma calma, como se não estivéssemos no meio de uma guerra, e ele me dá mais um daqueles seus sorrisos estranhos, que parece tão... gentil— me espere aqui, eu já volto!

Enquanto ele sobe as escadas tudo o que consigo pensar é que Simon é um rapaz entranho: mundano, vampiro. Não deveria estar aqui. 

Então por que me sinto tão calma na sua presença?

Por que é tão fácil conversar com ele?

— Eu não tenho muitos mangás aqui comigo porque, como já disse, não estava nos meus planos vir para cá. Mas este aqui se chama Naruto, e eu garanto a você que é mais emocionante do que qualquer lenda de caçadores de sombras – ele diz em um tom de voz animado, enquanto abre o pequeno livro a minha frente.

— Uma mesma pessoa escreveu e desenhou essas cenas? Não há nenhum erro nos contornos – murmuro enquanto passo a mão por cima dos desenhos em branco e preto. Os mundanos sempre foram artistas tão bons?

— Gosta de desenhos? - ele sorri de novo – Sabia que iria gostar! Inclusive, pode ficar com esse, se quiser. Para te ajudar a passar o tempo, pois aqui parece que temos muito tempo livre.Quando terminar de ler, venha me contar o que achou. Tenho a sensação que podemos ser bons amigos, Clary.  

Amigos?

Oh, Simon, você é mesmo um mundano intrigante.

Você diz isso de verdade?

Ou se você soubesse quem eu sou passaria a me ver como uma aberração?

 ~ ♥ ~

— Você e Simon passaram muito tempo conversando hoje – Jace fala calmamente, com uma expressão de pura indiferença no rosto.

Se é tão indiferente, por que se preocupa tanto, menino-anjo dourado?

— Eu nunca tinha visto um vampiro capaz de suportar o sol – respondo enquanto começo a subir as escadas, em direção ao meu quarto.

— Curioso, é verdade. Mas não pensei que se impressionasse tão fácil assim.

— Quem disse que estou impressionada? - paro de andar e me volto para ele. Como é possível um anjo ser tão arrogante?

— Então não está?

— Não é da sua conta.

— Você está nessa casa por minha causa, então sim, é da minha conta. Afinal, preciso saber que tipo de pessoa eu trouxe para perto.

— Deveria ter pensado nisso antes – digo e me permito abrir um pequeno sorriso vitorioso, enquanto fecho a porta do meu quarto. Jace fica parado no corredor, me olhando com as sobrancelhas arqueadas.

Ah, menino-anjo dourado, vai ser divertido jogar com você.