Pérgamo escrita por Gardella


Capítulo 5
Capítulo 5




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Quando abriu os olhos a primeira coisa que viu foi o borrão branco e púrpuro.

Quando o foco de sua visão se ajustou, ela visualizou o garoto por inteiro. Estava louca. Dois meses se passaram e ele ainda estava ali. Nunca trocaram uma palavra. Ela se acostumou a ter-lo a seguindo, sentia-se menos sozinha mesmo que agora estivesse carregada com uma melancolia constante. 

Era sábado, não tinha nada para fazer. Seus tios estavam de plantão, só chegariam de tarde. Arrumou uma cesta de pique-nique com tudo o que mais gostava, não tinha ninguém para chamar para ir com ela, mas isso não a impedia de sair para curtir um bom dia. Colocou seu Kindle na bolsa e caminhou por 10 minutos até o parque da cidade.

Sua árvore preferida estava com uma sombra maravilhosa. Estendeu a toalha, colocou a cesta no chão e acomodou-se. Seu amigo-imaginário-talvez-não-tão-imaginário sentou-se a sua frente. Ele era tão magro, perguntou-se se talvez ele sentisse fome. Que pergunta besta pensou espiritos não sentem fome

— Qual o seu nome? - perguntou Faith.

Não houve resposta. 

É claro que não houve resposta, ele é fruto da minha imaginação, o nome dele é o que eu quiser pensou.

Continuou comendo mas resolveu ler, ignorando a presença do espirito.

— Não te incomoda? 

A garota olhou em volta procurando de onde vinha a voz, por fim percebeu que era do espirito. Faith mantinha um olhar de dúvida.

— Ficar tão sozinha - esclareceu por fim seu amigo-nem-um-pouco-imaginário

—Eu não estou sozinha, - respondeu Faith - estou com você.

Saber que ele podia se comunicar fazia com que tomasse uma nova forma.

— Qual o seu nome? - pergunto mais uma vez.

— Eu quero dizer com pessoas. - insiste o espírito. 

— Não me sinto sozinha. Não preciso de pessoas - respondeu a garota deixando de lado sua pergunta inicial.

— Você sabe o que dizem, vivendo em uma comunidade você precisa das pessoas. Ninguém vive sozinho.

Faith refletiu. Ela estava mais preocupada com o porque do espírito lhe falar essas coisas do que com o conteúdo da conversa propriamente dita. Chegou à conclusão de que era seu subconsciente tentando questionar seus níveis de socialização.

— Qual o seu nome? - perguntou a garota mais um vez.

— Eu me chamo...

puf

Faith piscou e o espírito desapareceu. Ela ficou tão assustada quando ele desapareceu do que quando o viu pela primeira vez. Era como se todo o ar tivesse sido limpo de uma só vez e um peso houvesse sido retirado de suas costas, mas ela já havia se acostumado com aquilo tudo, sem a melancolia que ela trazia durante esses meses sentiu-se exposta.

Olhou para o lado, procurou rapidamente por ele. Honestamente em seu longo suspiro havia mais decepção que alívio. Talvez tivesse sido curada, não estava mais louca. Começou a arrumar as comidas de volta na cesta. De certa forma ela havia preparado o pique-nique para os dois, não queria ficar sozinha.

Ouviu passos em sua direção, folhas secas quebrando embaixo dos pés. Virou-se abruptamente crendo ser seu amigo-espirito-imaginário, mas o invés disso deu de cara com os olhos âmbar. Seu coração palpitou muito rapidamente, achou que ia ter um infarto. 

Ele se aproximava cada vez mais ficando de pé próximo ao local onde o garoto de pintas púrpura antes se encontrava.

— Posso sentar? - perguntou Samael

Não.

— Sim - respondeu ela.

Um ciclista caíra perto dos dois fazendo um barulho desnecessário, mas útil. Graças a concentração roubada pela queda ela conseguiu se desvencilhar da hipnose.

— O que você está fazendo aqui sozinha? - perguntou o homem.

Sozinha. Mais uma vez alguém lhe dizia isso.

— Não estou sozinha - repetiu a resposta dada anteriormente - estou com você.

Agora que Faith não olhava para seus olhos, conseguia notar muitos detalhes que antes passaram desapercebidos. Devia ter cerca de vinte e sete anos, cabelos negros, barba mal feita, maxilar marcado como o de um modelo. Seu corpo era musculoso mas não marombado. Ele vestia um terno completamente negro, sem gravata. Estava intocado, seu sapato não tinha traços da terra do parque, estava formal demais.

— O que faz aqui? - perguntou ela por fim, observando agora seu rosto, com cuidado para não cair na piscina de seu olhar.

— Estava dando uma volta quando te vi. - sua boca era lindamente desenhada, possuía uma cor vívida, um rosa avermelhado que as pessoas só alcançam depois de um orgasmo.

— Mentira - quando as palavras saíram da boca de Faith ela se surpreendeu, ele no entanto manteve a mesma expressão.

— Você é uma pessoa intrigante - retrucou ele por fim.

— O que você está fazendo aqui? - insistiu a garota.

— Você me intriga. - respondeu Samael - Eu sei que não nos conhecemos, mas aquele dia no ônibus eu senti algo diferente de tudo que eu já havia sentindo. 

Ela continuava olhando-o, esperando o resto da explicação.

— É como se você me atraísse, não sexualmente falando, mas me atraísse pra perto de você. Há uma força... Eu não sei explicar, quase gravitacional. Eu estava passando na rua e te vi, quando dei por mim eu já estava te seguindo.

— Você me seguiu? - Ela arqueou a sobrancelha

— Sim. - admitiu ele por fim - Juro que eu não sou um perseguidor ou algo do tipo, como eu disse, nunca aconteceu isso em toda a minha vida. 

— Eu não acredito em você - disse ela.

— Está me chamando de mentiroso?

— Não seria a primeira vez nessa conversa.

— Você pode não acreditar em mim, reconheço que essa história é absurda. 

Houve segundos de um silêncio profundo. Ela pôde ouvir o ar atravessando as árvores, mas não era relaxante pois sabia estar sendo observada. Cedeu por fim e olhou dentro dos olhos de Samael. Sentiu algo diferente dessa vez. Não era como uma hipnose, assemelhava-se mais com um olhar humano cheio de sentimento. Um sentimento tão carregado, tão forte que a fazia querer chorar. Paixão? Seria isso amor a prim... a segunda vista? Ela não reconhecia esse aperto no peito, era algo muito ruim mas que parecia cessar se ela ficasse perto dele. 

Foi tudo tão rápido, ele já estava muito perto dela. As mãos quentes de Samael tocaram o rosto dela, suas respirações aceleradas se encontravam misturando o hálito de menta com o de Doritos. Sua pele recebeu o atrito do beijo, despertando algo dentro dela, aquele sentimento de lar, pedaço perdido.

Seus olhos se fecharam e naquele momento ela estava completamente vulnerável a ele.

Quando seus olhos se abriram, os dele se mantinham fechados. De repente um choque de realidade percorreu sua mente quando, ao longe junto às árvores, ela viu o espírito de manchas púrpuras observando-a.

Ela empurrou Samael. Ele parecia não entender o que havia acontecido tanto quanto ela, mas em seus lábios havia estampado um sorriso de satisfação.

— Eu ainda não sei seu nome. - disse ele por fim.

— Faith.

— É um prazer te conhecer. Estou atrasado para uma reunião, mas a gente se vê por ai.

— A gente se vê? Não vai me dar seu telefone ou algo do tipo?

— Estamos marcados para ficarmos juntos, vamos nos encontrar, querendo ou não.

Ele se levantou e foi embora sem despedidas.

Ela observava o homem lindo, que havia lhe beijado há alguns segundos atrás sem nenhum motivo aparente, ir embora tão rápido quanto chegou.

— Não faça isso, Faith. - o espírito aparecera ao seu lado.

— O que eu estou fazendo? Guardando a comida que eu trouxe depois de você ter fugido?

— Eu não fugi, me escondi.

— Se escondeu? Ninguém consegue te ver além de mim.

— Você não entende ainda.

— Então me explique! - implorou a garota de forma quase infantil.

— Briathos.

— Quê?

— Meu nome. Você havia perguntado. Mas escute, você não deve falar meu nome para ninguém. Nem para um amigo, ou sua família. Sempre que você disser meu nome eu vou aparecer, por isso você precisa ter cuidado ou outros poderão me chamar.

— Certo.

— Prometa! - foi quase um grito, mas sua expressão não se alterava de forma alguma.

Faith levou um susto, foi empurrada para trás quase que com violência.

— Eu prometo - disse, recuperando o equilíbrio.

Ela olhava para ele, tentando notar algo diferente agora que eles estavam conversando. Nada. 

— O que você é? 

— Seu protetor.

— Tipo um guarda-costas?

— Tipo isso. - respondeu ele depois de alguns segundos pensando

— Por que? - indagou ela, com sincera curiosidade.

— Por que você precisa.

Ela não sabia o que isso queria dizer, mas não achou que ele a explicaria.

— O que está acontecendo? 

— O preambulo de uma batalha.

— Que batalha?

— A batalha do bem e do mal. - respondeu ele com um tom esquisito que lhe cabia perfeitamente.

— Não entendo.

— Você não precisa entender por enquanto. Só não se encontre mais com aquele homem.

— Ele me encontrou.

— Ele ainda irá te encontrar várias vezes, cabe a você afasta-lo.

— E se eu não quiser?

Briathos a olhou claramente transtornado.

— Não... Não... Não... - ele agora estava em pé, andava em círculos, com as mãos sobre as orelhas como se ela tivesse lhe dito algo horrível - não Faith, não faça isso... não... Não lhe dê espaço... Não... 

Era como as balbucias de um louco. Ele se ajoelhou, pegando-a pelos braços e sacudindo-a. Ela estava assustada, não se mexia, seus olhos arregalados, apenas esperava que ele a largasse. 

— Você não pode fazer isso, Faith. Por favor, não faça isso. Eu posso te proteger deles, mas não posso proteger-te de você mesma. - concluiu ainda apertando-a.

Quando ele a largou, visivelmente perturbado, levou a mão à testa, viu os braços de Faith com as manchas vermelhas que ele havia deixado. Briathos gaguejou uma desculpa, aparentemente assustado com a própria força. Ele queria acaricia-la, consertar o que havia feito. Ela estava imóvel e muda enquanto ele parecia não encontrar um modo de toca-la. Quase dois minutos desse movimento, como se ela fosse uma superfície quente demais para tocar, ou tão delicada que ele procurava pegar sem quebrar.

O que é você? Se você é um espírito, por que pode me tocar? - pergunta ela por fim.

Ele a olha sem conseguir responder. Não por desconhecer a resposta, mas por temer dá-la. Seu rosto triste agora aparentava o sofrimento de quem carrega um peso maior do que pode aguentar.

Ela tentava entendê-lo. Ele era como um adolescente que não gostava de criança mas que fora colocado para proteger um primo pequeno. Não havia a linguagem adequada, tudo era muito complicado para a criança entender. Ele ainda queria protegê-la, mas era desconcertante a interação.

— Você está aqui obrigado? Você não precisa ficar aqui. Eu prometo cuidar de mim.

— Sabe - começou Briathos - eu não posso ler mentes. - ele passou a olha-la de modo adulto. Não aparentava mais um adolescente falando, mas alguém muito velho dentro de uma casca - Digo isso para que você não tenha que se preocupar com sua liberdade perto de mim. Também não posso controlar seus pensamentos. Mas existe quem possa. Minha função é evitar que isso aconteça. 

— Quem pode? - interrogou ela com um claro perdão pelo acontecimento anterior.

— É minha obrigação, sim, mas estou aqui por que te amo. - essa afirmação foi de um tom imensamente fraterno - E amo esse mundo, e o universo como ele é. Você é uma arma de destruição em massa Faith. As informações vão vir à você, mas todos nós sabemos que a forma que você irá recebê-las pode mudar tudo...

— Você só está me deixando mais curiosa.

— Fique longe deles.

Deles quem?

— Prometa. - insistiu o garoto.

— Não posso prometer ficar longe deles se eu sequer sei quem são.

— Eu te direi quem é cada um deles.

— Como eu sei que posso confiar em você?

— Eu estou ao seu lado o tempo todo. Desde que nasceu.

— Você pode estar mentindo.

— Com cinco anos você comeu metade de um pote de ketchup escondida e quando seu pai perguntou onde estava o ketchup você disse que havia achado um bicho dentro e jogado fora, foi sua primeira mentira.

— Não me recordo.

— Com treze anos você roubou uma garrafa de vodka barata da vendinha perto da casa de sua avó, levou para uma festa e perdeu a virgindade com um garoto do ultimo ano do colegial chamado Adrian, namorado da sua melhor amiga na época.

Ela olhava para ele ultrajada, mas surpresa e convencida.

— Como você sabe disso? - perguntou por fim.

— Eu te disse, estou com você desde o seu nascimento. Te conheço tanto quanto você mesma. Quando você se machuca, me machuca. Eu absorvo a sua dor, Faith. 

— O que você quer que eu faça?

— Eu quero que você faça toda essa dor valer a pena.

— Eu não sei se eu...

— Não está convencida? Você é cética, eu sei disso também. Sei que sua cabeça está imersa em dúvidas, prometo que tentarei respondê-las, mas agora vamos embora, está ficando tarde. Você fica mais segura perto das pessoas.

Tomaram assim o rumo de casa.


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