Carrossel e as Relíquias do Destino escrita por Jel Cavalcante


Capítulo 5
O Jantar


Notas iniciais do capítulo

Valéria está tendo dificuldades para lidar com a sua nova vida. Enquanto isso, Davi acredita estar no caminho certo, seja ele qual for.



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VALÉRIA

— Pela quinta e última vez, eu NÃO VOU me casar com o Paulo Guerra e ponto final! - gritou Valéria, também conhecida como Tempestade Roxa, devido à família que pertencia e aos lindos cabelos que compunham o seu charme e que às vezes pareciam ter vida própria.

Todos ao redor da mesa a encaravam como se ela tivesse enlouquecido.

— Vai, Davi, faz alguma coisa - ela sussurrou, baixinho, empurrando com o cotovelo o garoto loiro e quieto que estava sentado ao seu lado.

— Eh… Como é que eu posso dizer isso… - ele começou, em defesa da irmã - Mãe, pai, a Valéria ainda é muito nova pra casar… Por que a gente não acha outra pessoa que possa fazer isso no lugar dela?

Na ponta da mesa, Aversa, a matriarca da família Hightower, permanecia calma, como se nada no mundo pudesse mudar aquela decisão. E a sua segurança fazia com que Valéria tivesse calafrios.

— É, mãe. Casamento arranjado, que coisa mais brega - ela falou, buscando apoio nos olhos de cada um dos presentes - Além do mais, eu ainda tenho toda uma vida pela frente e não tô a fim de desperdiçá-la dessa forma.

A mulher partiu delicadamente um pedaço de carne e o levou à boca, saboreando cada mínimo detalhe da refeição. Do seu lado esquerdo estava Laura, a filha mais nova, devorando o assado de porco com mel que havia sido feito especialmente para ela. Já do lado direito estavam Valéria, a filha mais velha, e Davi, o do meio. Na outra ponta da mesa, estavam Garon, o pai dos seus filhos, também conhecido como O Rei do Novo Mundo ou O Rei de Poucas Palavras, já que ele quase nunca abria a boca, e Daniel, o primeiro filho de Garon e herdeiro do trono.

— Laura, se você continuar comendo nessa velocidade, é capaz de passar mal depois do jantar - alertou Daniel, tentando falar de alguma outra coisa que não fosse o casamento da meia-irmã.

Aversa olhou para ele, como quem gostaria de matá-lo à pauladas, e em seguida para Garon, seu marido.

— Você vai deixar esse garoto insolente falar dessa forma com a nossa pequena? - ela perguntou, acariciando os ombros de Laura com carinho - A minha filha pode comer da forma que ela bem entender. Onde já se viu um garoto que nem sequer tem o meu sangue, se meter na vida dos meus filhos?

Daniel baixou a cabeça e voltou a mexer no prato com desinteresse. Ele havia sido o primeiro filho do rei Garon, de um dos casamentos mais prósperos já vistos na cidade. Sua mãe era a mais bela dentre as mulheres que usavam o roxo na arena de batalha, porém o destino levou sua alma durante uma invasão da Colônia Antiga. Desde então, Garon passou a viver com Aversa, uma mulher misteriosa, sempre envolta em um manto escuro, da cor da noite, contrastando com os cabelos brancos e as pinturas na face, marcadas com tinta roxa. Com um temperamento bastante forte e controlador, Aversa amava os filhos acima de qualquer coisa. E isso nunca incluiu Daniel, o qual ela mesma adorava chamar de bastardo.

Valéria não gostava da forma como a mãe tratava o meio-irmão, mas esse não era o maior dos seus problemas. Ela e Davi namoravam desde antes do terceiro ano, e, tirando algumas brigas que aconteciam de vez em quando, os dois nunca haviam se separado um do outro. O problema agora era que, naquele mundo paralelo, Davi era seu irmão - assim como Laura - e isso os impedia de seguir com o relacionamento. No Novo Mundo, a família era o bem mais precioso de um homem, e aquilo jamais poderia ser confundido com qualquer outro tipo de união afetiva.

— E então? Será que dá pra voltar pro assunto que realmente interessa? - perguntou Valéria, livrando Daniel da ira de sua mãe.

Aversa pôs um leve sorriso no rosto e amaciou a voz como sempre fazia quando queria convencer alguém a fazer alguma coisa.

— Filha, a gente já conversou sobre isso - suas palavras pareciam uma canção de ninar de tão vagarosas - Essa é a única forma de acabarmos de uma vez por todas com a guerra entre as duas cidades. Além disso, se casar com um membro da Colônia Antiga não é a pior coisa do mundo. Eles podem até parecer um pouco, digamos, selvagens, mas por dentro são iguais a qualquer outra pessoa que você conheça.

“Ninguém se parece com o Davizinho, e é ele que eu amo” - ela pensou, enquanto tentava engolir a comida que havia ficado entalada em sua garganta.

— Você já pensou no que esse casamento te tornaria, Valéria? - continuou Aversa, chegando ao ponto onde queria - Você seria nada mais nada menos que a mulher mais poderosa de todo o reino. A grande rainha que esse mundo nunca teve.

Poder. A única coisa que realmente importava para Aversa, tirando seus filhos. E quanto mais o tempo passava, mais ela sonhava no dia em que todas as pessoas vivas se ajoelhariam diante dos seus pés.

Valéria sempre quis ser rainha de alguma coisa. Nas brincadeiras com as amigas, ela sempre era a mãe, ou a diretora do colégio, ou qualquer outra coisa que a colocasse em posição de poder. Mandar nos outros era uma das suas melhores habilidades. Porém, se casar com o Paulo Guerra seria o seu maior pesadelo. Ainda mais quando o Davi, seu verdadeiro amor, estava bem ali, do seu lado.

— Eu não quero droga de poder nenhum - estava mentindo, e todos sabiam disso - Eu só quero poder viver em paz e governar o que tiver para ser  governado dentro da nossa cidade.

A cabeça de Valéria começou a doer, enquanto revelava cenas de pessoas inocentes morrendo durante a guerra. Faziam alguns dias que não se ouvia falar em morte alguma. Estavam em Crimea, uma das diversas cidades livres do reino e, portanto, um lugar onde as disputas territoriais não alcançavam. Ela sabia, porém, que, se voltasse para casa sem um acordo de paz com a Colônia Antiga, os rumores retornariam aos seus ouvidos. E mais sangue seria derramado em vão.

— Você tá sendo muito anti-romântica, Valéria - disse Laura, entre uma lambida e outra nos dedos cobertos de mel - Imagina só chegar em casa com uma coroa na cabeça e um príncipe do lado? Seria o meu maior sonho.

Por um lado, Laura tinha razão. Ser a rainha de todo o reino seria um grande passo para conquistar cada criatura viva que existisse por aí, mas, por outro, era do Paulo Guerra que estavam falando. E todos sabiam que ele não era nenhum príncipe.

— Eu não sei… - disse Valéria, revelando pela primeira vez um pouco de interesse pelo casamento - O que você acha, Davi?

Desde que os quatro, Valéria, Davi, Laura e Daniel, passaram a viver juntos como membros da família Hightower, muita coisa havia mudado em suas vidas. Davi, por exemplo, se isolava na maior parte do tempo para ler um grande livro escuro-arrouxeado, do mesmo tom dos estandartes do Novo Mundo. Ele dizia que lá estava contido todo o conhecimento que os sábios puderam juntar, e quanto mais adentrava as páginas do livro, mais estranho ele ficava. O garoto estava agora enfrentando um grande dilema em sua vida, já que uma boa parte dele queria que o casamento acontecesse e a outra preferia que achassem uma nova solução para o problema.

— Valéria, minha irmã - ele começou, mesmo sabendo que ela odiava ser chamada daquele jeito - Você precisa entender que essas coisas não podem ser escolhidas. As profecias foram feitas há milhares de anos atrás, e não se pode mudar o destino apenas porque alguém não quer se casar com o Paulo Guerra.

As palavras dele saíram feito uma navalha, machucando profundamente o coração da menina. Aversa chegou a aplaudir o discurso do filho, esperando que os outros a acompanhassem, mas ninguém ousou mexer ainda mais com os sentimentos de Valéria.

— Eu odeio cada um de vocês - ela disse, se levantando da mesa, completamente fora de si.

Valéria se retirou e seguiu em direção ao seu quarto, porém, como estava em Crimea e, portanto, em um castelo que não era o seu, demorou bastante tempo para achar o caminho que dava em seus aposentos.

Quando, por fim, achou a porta certa, foi surpreendida por uma presença misteriosa, que provavelmente a tinha seguido até ali.

— Valéria, espera um pouco - disse o garoto.

Ao perceber que se tratava de Davi, segurando uma luminária cuja chama estava prestes a desaparecer, ela ficou um pouco mais tranquila e ao mesmo tempo irritada.

— O que você quer? - ela perguntou, deixando bem claro que estava com bastante raiva dele.

— Desculpa por tudo aquilo que eu falei - a voz dele era mansa como o uivo de um lobo na escuridão da floreta - Acontece que tá tudo escrito…

— Escrito? - ela interrompeu, ficando cada vez mais furiosa - Onde? Naquele livro imundo que você não larga de jeito nenhum?

Davi respirou profundamente.

— Aquele livro é algo muito importante, Valéria. E lá está escrito que somente o amor pode acabar com a guerra.

— E o quê que o amor tem a ver com isso, Davi? De onde você tirou que eu posso amar o Paulo? Ainda mais tendo você aqui, comigo - algumas lágrimas começaram a escorrer do seu rosto - Você não me ama mais? É isso?

— Valéria, entende logo de uma vez. A gente agora é irmão. Isso nunca ia dar certo.

De repente, o choro foi dando lugar ao ressentimento. E aquela era de longe a maior arma que ela tinha.

— Então é isso? Você prefere acreditar nesse faz de conta do que na nossa verdadeira história? Depois de todos esses anos que a gente passou junto, você quer mesmo que as coisas terminem desse jeito? Nesse lugar imundo que a gente nem sabe como sair?

— E quem disse que a gente não sabe como sair? - os olhos de Davi brilharam sob as sombras do corredor escuro.

Valéria foi recuperando o fôlego aos poucos.

— Como assim? Você tá sabendo de alguma coisa que eu não sei? - ela perguntou, deixando um pouco de lado os sentimentos negativos que se apropriaram do seu coração.

— Ainda não. Mas eu tô chegando bem perto. Como eu disse, aquele livro contém todas as informações que a gente precisa. Só me falta um pouco mais de tempo. Você sabe que ele não é fácil de ler.

Davi estava se referindo ao fato de que o livro havia sido escrito na língua dos antigos. De alguma forma, somente ele era capaz de decifrar as escrituras, porém, aquela leitura consumia toda a sua força. Por isso ele passava a maior parte do tempo isolado e com o livro nas mãos.

— Ok. Digamos que eu acredite nessa sua história... - Valéria estava agora um pouco mais calma - Quando a gente voltar pra casa, você promete que nós vamos voltar a ficar juntos?

— Mas é claro que eu prometo - ele respondeu, fazendo brotar um sorriso amarelo entre os lábios - Nós vamos voltar a ser os dois apaixonados de sempre.

— Ah é? - ela foi se aproximando lentamente e o beijou de leve na bochecha - Então me dá licença que eu tenho alguns assuntos muito sérios pra resolver.

Ela deu as coisas e abriu a porta, com cuidado pra não fazer barulho.

— O que você vai fazer? - ele perguntou, com medo do que ela poderia estar tramando.

— Eu vou me preparar para o meu próprio casamento - seus olhos reuniam um misto de perversidade e ganância - Essa vai ser, de longe, a cerimônia mais linda que o mundo inteiro jamais virá igual.

A porta se fechou de uma vez, deixando Davi desamparado no meio do corredor sombrio, sozinho e completamente perdido.

No interior do quarto, Valéria se encostou na porta, esperando ouvi-lo ir embora e, lá no fundo, ela sabia que, por dentro, ele também estava chorando.


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Notas finais do capítulo

O que vcs acharam deles serem irmãos? E da mãe deles? Tá todo mundo curtindo????



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