– Namorada? - perguntou meu pai assim que June saiu do estúdio.
– Não - falei - Minha namorada chama-se Amanda. June é pretendente de Caio.
Angela suspirou ruidosamente.
– Ah! O amor! Que lindo! - e soltou uma risadinha.
– É, o amor é lindo mesmo.
Então ele pegou a mulher pela cintura e a puxou para um beijo. Daqueles cinematográficos.
Meu pai era o tipo de homem que usava o charme para trazer as mulheres para perto dele. E então ele as "fisgava".
Caio e minha mãe não acreditavam, ou melhor, não queriam acreditar, que meu pai traía minha mãe. Muito.
Ele sempre dera aulas de piano, e como qualquer clichê idiota de filmes, ficava com as alunas. Foi demitido de toda escola que ensinou até se aquietar com Angela. Era impressionante que ele tivesse conseguido parar em Angela, mas depois de ver como ele olhou para June, eu tive um pequeno xilique silencioso.
– Acho que você não vai dar conta de ensinar a ela, não é mesmo? - disse meu pai vindo em minha direção.
Olhei-o. Não deixaria ele ensinar June.
– Eu dou conta do recado.
– Desse jeito que você agiu? Corando desse jeito? Não dá mesmo.
– Eu até pensei que ela era sua namorada! - disse Angela dando um risinho.
– Ela não é, e eu dou conta do recado.
– Eu acho que não.
– Pois eu acho que sim.
Olhamos um nos olhos do outro e pude ver a fagulha começar a voar.
Era sempre assim quando eu e meu pai nos encontrávamos. Eu não o perdoava por deixar minha mãe daquele jeito, e nossas brigas sempre acabavam em...
– Para o piano - disse ele sério.
– Agora mesmo.
Nos encaminhamos cada um para um piano. Ele ficou com o bege e eu com o azul escuro.
– Vocês não vão brigar de novo! - disse Angela ficando irritada.
– Espere Angela - disse meu pai - Agora é comigo e Felipe.
Então ele me olhou e fez o sinal para eu iniciar.
Era importante começar com uma música difícil, mas nunca jogar a maior cartada, pois ficava cada vez mais difícil durante a discussão musical.
Então fechei meus olhos, um ritual que sempre me ajudava a me concentrar no piano, respirei fundo e abri a ponta dos olhos para ver as teclas.
E comecei a tocar Rondo Alla Turca de Mozard. Meus dedos passeando pelo teclado e fazendo as notas dançarem pelo ambiente.
Meu pai começou a tocar também, ele sabia essa partitura muito bem e acelerou o ritmo. Eu o acompanhei e começamos um dueto.
Então eu mudei de ritmo e comecei a tocar a Valsa do Minuto de Chopin.
Meu pai exalou um palavrão, mas acompanhou a música com perfeição.
Abri mais os olhos e olhei ao redor. As pessoas começavam a se aglomerar ao redor. Elas normalmente faziam isso quando estávamos discutindo.
Sorri e voltei a atenção para as teclas.
Meu pai mudou de ritmo para a Balada número 1 também de Chopin. Essa era incrivelmente difícil, lutei para acompanhar, mas consegui com muita dificuldade. Gostava muito de Chopin, mas a Balada número 1 não era a minha preferida.
Mudei para Etude 10 op número 12, uma partitura muito difícil, e acelerei o ritmo para dificultar mais ainda.
Meu pai errou algumas notas e sorri comigo mesmo, estava vencendo.
Meu pai deve ter sentido isso também. Pois mudou a música para Islamei. O que foi um erro.
Islamei era uma das músicas mais difíceis do mundo, poucos pianistas podiam toca-la. Meu pai não era um deles. Eu era.
Ele não estava conseguindo acompanhar, era muito rápido. Então soltei minha última cartada: outra das músicas mais difíceis do mundo. La Campanella.
Meu pai soltou um palavrão bem alto e parou de tocar depois das primeiras notas.
Levantei triunfante e suspirei alegre.
– Parece que vou dar aula para June! - falei com um sorriso no rosto.
Ele sorriu.
– Parece que sim.
A plateia aplaudiu e soltou assobios.
Reverenciei as pessoas e desci os degraus de onde ficava o piano azul escuro.
– Tchau pai - falei saindo, todo sorridente, do estúdio.