Entre cigarros e Morangos Mofados escrita por Izabell Hiddlesworth


Capítulo 4
Gudang Garam


Notas iniciais do capítulo

“O cigarro faz neblina dos meus pensamentos.”
(Katarine Lins)



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 Depois daquela noite no bar, Roger e Victor tinham fugido mais vezes das reuniões no Instituto Schaumann. O banco duro de couro preto da moto tornou-se familiar, assim como as conversas sobre essa ou aquela música clássica que teria influenciado tal música de rock.

 Numa tarde chuvosa de quarta-feira, depois de uma sessão de Batman vs Superman no cinema, Roger descobrira que Victor tinha uma coleção vasta de HQ’s e figure actions, tocava guitarra desde os seis anos e era sócio do pai numa transportadora de médio porte em São Paulo. Por sua vez, ele revelou que seu gosto por garotos tinha aflorado aos quinze anos, num dia dos avós com um primo – ao que Victor deu risada e respondeu que nunca tivera gosto por um gênero específico.

 Na altura em que o primeiro beijo acontecera, Victor tinha uma barba castanho-escura emoldurando os lábios e Roger, olheiras profundas de final de semestre na faculdade. Fazia dois meses desde a primeira carona, desde a primeira conversa decente que eles tiveram. Roger podia se lembrar, todas as vezes que fechava os olhos, do calor e das mãos grandes e calejadas da guitarra em seu rosto, da barba lhe fazendo cócegas e dos lábios macios e inebriantes contra os seus – um sussurro mudo de que não havia nada de errado em beijar o motoqueiro na calçada de seu condomínio. Ele tinha se sentido com quinze anos novamente, com o coração batendo impossivelmente rápido e a cabeça enevoada.

 Daquele beijo seguiram-se outros, mais ousados e demorados – no escuro do bar, ou sob a luz dos postes na rua. Vieram outras confissões, sorrisos diferentes e novos lugares para se divertir à noite.

 Thiago reclamava a toda hora que as reuniões do grupo de apoio estavam se tornando maçantes demais, apelando para o lado sensível de Roger na tentativa de fazê-lo voltar a lhe acompanhar.

                – Aliás, não foi você que quase me bateu por ter “te jogado pra cima do Victor”? – Ele cruzara os braços, torcendo os lábios. – Não acredito que você está realmente enfiando a língua na boca dele.

 Roger revirou os olhos, apanhando seus livros na carteira e se levantando. Pensou que estaria esgotado depois da prova de cálculo, mas falar de Victor lhe dava algumas doses de energia.

                – Não é como se eu tivesse planejado ficar afim do cara.

 Eram os últimos a sair da sala, embora tivessem terminado a prova na metade do tempo. Roger quase não conseguia acreditar que realmente fizera todas aquelas questões demoníacas apenas alguns minutos atrás – tudo tinha passado rápido demais, no automático.

                – Com você, tudo é planejado, Roger – Thiago fez questão de lembrar. – Que foi? Victor fez uma lavagem cerebral em você?

 Ele bagunçou os cabelos do amigo, sorrindo com malícia. Roger se defendeu como pôde com os livros, gargalhando alto e jurando que iria pegar pesado na revanche. Porém, quando os dois irromperam no corredor, alguém trombou com eles de supetão.

                – Oi – era Lígia, com suas feições tímidas e roupas floridas. – Posso conversar com o Thiago por uns minutinhos, Roger?

 Os dois se entreolharam, ainda atracados na brincadeira, com Thiago escancarando a boca.

                – Pelo tempo que precisar, Lígia – Roger sorriu tranquilo, desembaraçando-se do amigo. – Vou para a construtora, Thiago. A gente se vê no Instituto.

 Roger ajeitou os livros no braço e inclinou-se para abraçar Lígia com suavidade. Sabia o quanto ela estava se esforçando para dar aquele tempo a Thiago. Com a consciência leve, ele deixou o prédio de exatas e cruzou o campus em direção ao portão dos estudantes.

 Enquanto caminhava pelas ruas movimentadas, Roger não podia deixar de se sentir estranho. Durante a semana de provas, sua cabeça deveria estar fervendo para segurar todas as anotações e as respostas que dera em cada avaliação. No entanto, muito pelo contrário, ele se percebia estranhamente sereno. Havia sim algo fervendo dentro de si, mas era um desespero bom – tão bom quanto saber que os morangos comprados na semana passada ainda não estão mofados.

 Quando seus pés pararam no meio-fio, esperando o sinal abrir, ele reservou alguns segundos para dar uma olhada no relógio da rua. Era final de junho, do semestre, do primeiro mês de inverno do ano. Isso tudo marcava também – e ele não queria lembrar-se dessa parte – o fim do grupo de apoio e da certeza de encontrar Victor regularmente às sextas-feiras.

—-x—

                – E aí ela disse que podemos ir ao cinema amanhã – Thiago o informou, tão empolgado que estava quase pulando. – Isso não é incrível?! Ela percebeu como eu estou melhor.

                – Ah, então você admite que estava mal? – Roger arqueou uma sobrancelha, presunçoso.

                – Eu sou humano, ué – Thiago ergueu os ombros, como se aquilo fosse uma desculpa suprema.

 Eles alcançaram o passeio de pedra do Instituto com as mãos enterradas nos bolsos e as risadas evaporando no ar gélido. Roger estava feliz pelo avanço de Thiago e por Lígia não estar mais sofrendo tanto. Tão feliz que o anjo de pedra no hall parecia estar se divertindo com ele – embora seus lábios de pedra continuassem indiferentes.

                – E você e o Victor? – Thiago murmurou, virando-se para trás rapidamente como se esperasse que ambos estivessem sendo seguidos. – Não vão sair hoje? Estou particularmente lisonjeado que você esteja aqui para ouvir meu primeiro depoimento em cinco meses de grupo, mas quero que se divirta um pouco.

 Roger o fitou de soslaio, esboçando um sorriso de gratidão.

                – Como você mesmo disse tantas vezes: eu é que te arrastei para cá – ele riu rouco. – Quero ver seu progresso na convivência com o grupo também. Aliás, não quero que o Victor perca as últimas reuniões.

 Thiago assentiu, apertando seu ombro de maneira camarada enquanto subiam as escadas para o segundo andar. Maurício os esperava com um prato de biscoitos finos e seu sorriso habitual.

                – Tenho uma surpresa para vocês hoje à noite! – Seus olhos miúdos cintilaram por detrás das lentes dos óculos de tartaruga.

                –O que você acha que é? – Thiago cochichou assim que tomaram seus lugares, cuspindo farelo de biscoito. – Espero que seja uma surpresa realmente boa. Tipo, sei lá, uma garrafa de vinho seria uma ótima surpresa hoje.

                – É um grupo de apoio contra os vícios, Thiago – Roger lhe deu um cascudo. – Não um desafio de quanto tempo você consegue ficar em abstinência.

 A reunião daquela noite foi agradável e dinâmica, muito diferente daquela primeira em que o grupo mal conseguia se olhar. Maurício conseguiu arrancar gargalhadas espontâneas de todos e Thiago e o cara dos cigarros eletrônicos receberam palmas por seu progresso. Roger estava tão absorto naquela atmosfera de risos fáceis, palmas e lágrimas eventuais, que mal percebeu quando Victor se enfiou – esbaforido pelo atraso – no círculo de cadeiras.

 Trocaram um sorriso discreto e repleto de cumplicidade, mas quebraram aquele contato quando Maurício anunciou a grande surpresa da noite.

                – Muito bem, pessoal – ele bateu uma palma, ajeitando-se em sua cadeira. – Vamos pular para a grande surpresa da noite.

 Thiago cutucou Roger animado, mal podendo permanecer na cadeira.

                – Sem contar essa reunião, temos mais três antes do fim do semestre. Ainda não sei se continuaremos juntos no próximo, então conversei com as coordenadoras do projeto e elas acharam uma boa ideia reunirmos todos os grupos numa confraternização – o monitor puxou um maço de panfletos e passou para a garota ao seu lado fazer o mesmo. – Então, na nossa última reunião, vamos fazer uma festa da fogueira no sítio do Instituto.

 O grupo rompeu em assobios e palmas. Sorrisos animados brotaram aqui e ali e os murmúrios cheios de expectativa foram crescendo. Maurício precisou de dois minutos para retomar o controle da situação, visivelmente aliviado que a ideia tivesse sido tão bem recebida.

                – Vai ser minha primeira festa sem drogas – o cara dos cigarros eletrônicos comentou, parecendo orgulhoso de si mesmo.

                – Vai ser minha primeira festa com pessoas devidamente vestidas – a stripper riu, contagiando todos.


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Notas finais do capítulo

“Você é como um beijo que dou em um cigarro.. parece ser bom, mas me mata aos poucos.”
(Rafael Raniere)