Entre cigarros e Morangos Mofados escrita por Izabell Hiddlesworth


Capítulo 3
Camel


Notas iniciais do capítulo

“E eu impávida finjo que não tenho dono. Pontas de cigarro apagadas eu recebo. Um dia vou pegar fogo.”
(Clarice Lispector)



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                – Você não vai mesmo entrar comigo?

                – Como eu já disse umas cinquenta vezes: não – Roger revirou os olhos, batendo a porta do carro. – Esse é só o gostinho do troco que eu vou te dar por ter me largado aqui na semana passada.

 Os dois passaram pelos portões gradeados do Instituto assim que o segurança lhes liberou a entrada. Thiago ainda insistiu com Roger, tentando, desesperadamente, não ficar sozinho na reunião daquela noite.

                – Qual é? Você sabe que eu tenho crise de ansiedade às vezes – ele abriu os braços, pulando na frente do outro quando alcançaram o hall de entrada.

 Roger fechou o cenho para ele, ajeitando o livro debaixo do braço.

                – O grupo de apoio está aí para te ajudar com isso – foi a resposta direta. – Se você tivesse ouvido os pedidos da Lígia para largar a maconha, ou não beber tanto nas festas, nada disso seria preciso. Você nunca ouve ninguém, Thiago – Roger encarou os olhos escuros do amigo com seriedade. Detestava dar sermões paternais, mas era o jeito. – O grupo vai te ensinar que ouvir os outros faz bem à saúde.

 Thiago torceu os lábios, percebendo que estava tocando o limite da paciência alheia.

                – Te vejo às dez – ele girou nos calcanhares, andando com os ombros caídos até as escadarias.

                – Dez e meia, se o Maurício resolver contar a história do touro pela milionésima vez – Roger observou.

 Assim que os tênis vermelhos de Thiago sumiram no andar superior, ele deu meia-volta e seguiu para o jardim lateral do Instituto. As noites de abril ainda eram frias, mas aquela estava bondosa o bastante para se suportar com a jaqueta jeans. Então, ele aproveitou para aproveitar um pouco da luz da paisagem noturna, sentando-se tranquilamente num banco de madeira entre dois arbustos estreitos.

 Tinha acabado de retirar o marcador de página em forma de dragão quando mãos grandes e quentes apertaram seus ombros. Assustado, Roger se preparou para levantar e gritar por ajuda, mas uma das mãos o calou enquanto a outra o manteve no lugar.

                – Você sempre se assusta fácil assim? Ou agora está apostando na pornografia literária? – Agora ele conhecia aquela voz.

 Roger tombou a cabeça para trás, libertando sua boca e encontrando seu pseudo-agressor. Com um ar indiferente à sua reação e as pontas dos cabelos lisos roçando em suas bochechas, Victor tinha um cigarro entre os dentes e os olhos fixos nos dele.

                – Você sempre aborda as pessoas assim? Ou é idiota por natureza? – Ele livrou-se das mãos e voltou-se para o livro.

 O marcador tinha ido para no chão junto com o livro fechado. Tinha perdido a página em que estava e a certeza de que demoraria um pouco para encontrá-la era desanimadora.

                – Ah, perfeito – murmurou.

 Victor rodeou o banco – a mancada na perna direita quase não era perceptível – e abaixou-se na grama úmida do jardim para recolher seus pertences.

                – Foi mal – mas ele certamente não se sentia mal de verdade.

 Roger praticamente arrancou o livro de suas mãos e enfiou o marcador de qualquer jeito logo depois da capa.

                – Você não deveria estar na reunião?

                – Pergunto o mesmo. Não está pagando de babá hoje? – Victor sentou-se ao seu lado, sacando um isqueiro de cobre para acender o cigarro nos lábios.

                – Precisamos deixar eles andarem com as próprias pernas às vezes.

                – E do mesmo jeito você está aqui, esperando a reunião acabar – Victor acusou.

 Roger apenas assentiu, desejando que ele ficasse quieto e o deixasse ler em paz.

                – Game Of Thrones? – Victor apontou para o livro em seu colo, apoiando o antebraço no encosto do banco. – Uau, já é o último livro.

                – Que lançou, sim. Estou relendo – Roger deu de ombros, encarando o desenho do dragão negro.

                – Ah, eu não tenho saco para ler. Mas acompanho a série.

 Aquilo foi o suficiente para amolecer uma pequena porcentagem do muro prático e desconfiado de Roger. Victor conseguiu envolvê-lo numa conversa extasiante sobre especulações, teorias e comentários empolgados de Game Of Thrones – nunca conseguia encontrar alguém que realmente gostasse daquele universo como ele. Quando deu por si, o assunto havia convergido para bandas amadoras que tocavam melhor do que muita gente que vinha estourando na mídia.

                – Hoje tem um show mais ou menos assim num lugar que eu conheço – Victor terminou o segundo cigarro, apagando na terra sob o banco. – Quer ir? Prometo que te levo para casa quando acabar.

                – “Um show mais ou menos assim num lugar que eu conheço” – Roger o imitou, rindo. – Você ouviu o que disse? Soou como um sequestrador.

                – Talvez você realmente precise ser sequestrado.

 Ele pensou em Thiago no segundo andar, encolhido numa das cadeiras de plástico do círculo com os braços cruzados. Pensou nos esforços que ele e Lígia – a ex-namorada-benevolente-demais de Thiago – tinham empreendido para que o amigo adquirisse algum juízo. Sobretudo, pensou na última sexta-feira, quando fora abandonado no Instituto Schaumann e Victor lhe deu uma carona até o condomínio.

                – Talvez – concordou, suspirando e deixando os ombros descerem. Sentia-se pesado, como se um milhão de coisas ainda estivessem marcadas como pendentes em sua lista de tarefas da semana. – Preciso ser sequestrado de mim mesmo.

 Victor pareceu estudar a parede de mármore do prédio em frente por vários minutos antes de levantar-se com brusquidão, incitando Roger a fazer o mesmo inconscientemente.

                – Você está oficialmente sendo sequestrado, Roger – o motoqueiro agarrou-o pelo pulso, puxando-o com determinação em direção aos portões. – Você vai no show comigo.

                – Vou? – Mas o capacete já estava em suas mãos e Victor com as mãos no guidom. – Mas e o Thiago? Preciso avisar que...

                – Você pode mandar uma mensagem quando a gente chegar lá – a moto roncou baixo, soltando uma lufada de fumaça na rua silenciosa. – Não me faça voltar atrás com a minha boa ação do dia.

 E como se mãos invisíveis o empurrassem gentilmente, Roger entendeu que estava tudo bem subir naquela moto mais uma vez.

—-x—

 A vodca no copo baixo estava quase no fim, com os cubos de gelo derretendo e a casquinha de limão já murcha. Era o segundo – ou seria o terceiro? –; de qualquer forma, o último.

                – Eu gosto dessa música – Victor comentara, indicando a banda no fundo do bar com o próprio copo.

 Era um lugar pequeno e abafado, nos confins do centro da cidade, com poucas mesas e muito espaço para pular em frente ao palco. Roger já tinha estado em ambientes assim no começo da faculdade, mas descobriu rapidamente que não suportava o barulho, o cheiro enjoativo de cigarro e álcool e os bêbados por muito tempo.

 Naquela noite, ele estava fazendo um esforço para suportar o conjunto. Se ignorasse o fato de Victor estar fumando e bebendo ao mesmo tempo – ele deveria estar na reunião do grupo de apoio— e o holofote azul cruzando seu rosto a cada trinta segundos, poderia dizer que estava se divertindo. Na mesa afastada da rodinha de pessoas agitadas pela música, eles podiam conversar banalidades despretensiosas – com voz alta para se fazerem ouvir –, beber e desfrutar dos covers que faziam o bar tremer.

                – E qual é? – Roger quis saber, tomando o último gole de seu copo.

 Victor baixou seu copo, a meio caminho da boca, para encará-lo com curiosidade.

                – Sério?

                – Seríssimo. Não escuto muito rock. Minha linha é mais no samba, na bossa nova... – Roger parou quando percebeu a expressão divertida que Victor fazia. – Ok, eu deveria ter dito antes de você ter me arrastado para cá.

 Victor gargalhou, soltando uma baforada com toda a elegância desfrutável e voluptuosa que um motoqueiro podia ter.

                – Killing In The Name Of – ele respondeu por fim. – Do Rise Against the Machine. Eles fizeram outro arranjo, mas a essência da música é essa.

                – Vou ouvir a original quando chegar em casa.

                – Agora você acha que sabe o suficiente sobre mim? – Victor encostou o dorso na mão nos lábios, com o copo de vodca escondendo parte de seu rosto.

 Um fio de eletricidade subiu pela espinha dorsal de Roger, fazendo seus dedos abandonar o copo vazio e fechar sua mão em punho.

                – Eu sabia que tinha a ver com o Thiago sugerindo que eu estava afim de você – ele revirou os olhos, concentrando-se em esconder a satisfação no fundo do âmago.

                – E não está? – Victor recuou em sua cadeira. Suas feições eram brincalhonas, mas seus olhos passavam um brilho diferente que Roger quase se convenceu ser decepção.

 A parede onde sua cadeira estava encostada tremia com as caixas de som do bar, reverberando aquela música que ele não conhecia. Sua cabeça começava a latejar com o barulho e o álcool, o peso da semana e a leve culpa por ter abandonado Thiago no Instituto, a insegurança e a vontade de descobrir se Victor também queria saber mais sobre ele.

                – Você não acha engraçado como o universo brinca com a gente às vezes?

                – Principalmente quando a lua faz conjunção com Júpiter e Saturno – Victor lhe ofereceu um sorriso de canto, passando alívio e encanto.

                – É, principalmente – Roger devolveu o sorriso, inclinando-se sobre a mesa.

                – O universo está brincando com você?

                – Talvez.

                – Isso é bom?

                – Eu não sei. Deve ser.

 Victor esperou que ele se decidisse, comprimindo os lábios e batendo os dedos sobre a mesa ao ritmo da música – que chegava ao fim com gritos entusiasmados e batidas frenéticas da bateria.

                – É sim. Bom encontrar você.

                – Também acho – ele alargou ainda mais o sorriso, com o timbre de soberba mais acentuado em sua voz.

                – Eu sempre faço uma série de colocações e levantamentos desnecessários para decidir se estou ou não afim de alguém – Roger torceu o nariz, desaprovando as próprias atitudes exatas e metódicas demais. – Mas você parece querer as respostas na hora, sem pensar demais, de um jeito espontâneo. Senti isso quando pus os olhos em você duas semanas atrás.

                – E?

 Roger ergueu os olhos para Victor, afundando-se neles em busca algo que traduzisse aquele súbito interesse.

                – Eu me convenci que estava afim de você tão rápido que minha parte lógica não teve tempo de opinar.

 Victor avançou para ele sobre a mesa, inclinando o rosto com a respiração hesitante. Roger surpreendeu-se pela proximidade, afastando-se com cautela e a sombra de um sorriso nos lábios.

 Tomou aquilo como um sim: Victor queria saber mais sobre ele também.

                – Não me leve a mal, Victor. Mas eu sou um cara difícil – e riu deliciado, com aquele frio gostoso e aterrorizante na barriga.


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Notas finais do capítulo

“Sempre me gabei de nunca ter sido usuária de nenhuma droga e nem ao mesmo ter experimentado cigarro ou ter dado trabalho com bebedeiras. Sempre fui saudável além da conta. Até que me caiu a ficha de que ele era pior do que cocaína.”
(Tati Bernardi)