Abandono. escrita por JesseJoke


Capítulo 1
Ainda ao meu lado.




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Se o fogo não tivesse existido, a nossa espécie teria morrido de frio? Se os dinossauros não tivessem sido extintos pelo cometa, seriamos nós os seus "animais de estimação"?

Era nisto que eu pensava em pequena. E tinha tantas perguntas... Infelizmente, nenhuma obteve resposta e fui obrigada a descobrir sozinha. A mãe e o pai, tenho a certeza, teriam gostado de me responder.

Sou a Katrina, tenho dezasseis anos. Orfã desde os nove; passei a vida em instituições. À três meses que moro sozinha num apartamento em Lisboa. Apesar de ser menor, fiz um acordo com a advogada e com a segurança social; todos os meses recebo dinheiro e uma pensão de alimentos.

Comecei a tirar a carta de motorizada assim que sai. O pai tinha uma vespa vermelha linda... Passava horas a limpá-la e a dizer-me "Um dia... Também será tua. Pertencia ao meu avô e, mais tarde, ao meu pai. Quando fores grande deixo-te conduzir!". E piscava-me o olho enquanto me abraçava com o braço que não estava sujo de óleo.

Sempre idolatrei o meu pai... Assim como à minha mãe... Tenho saudades deles. Eu costumava ser bastante mimada. E talvez seja por isso que me sinto ainda mais culpada! Se eu tivesse sido mais prestável, mais amiga. Mas eu não sabia o que me esperava; era só uma criança, imaginava transformar-me numa fada ou numa princesa! E nunca consegui entender como tudo aconteceu...

Um carro. Um camião. Um acidente da A1 arruinou a minha vida. Pelo que me contaram, o pai teve morte instantânea mas a mãe conseguiu resistir por uma semana até que os paramédicos me deram a noticia...

É difícil pensar no quão boa era a minha vida antes de... antes disto! Eu não sei; chorei durante horas na cadeira do hospital. Por vezes vinham ter comigo estranhos e perguntavam-me se eu me tinha perdido dos meus pais. Nunca lhes respondia e a enfermeira boa tirava-os de lá por mim.

Foi com a morte deles que tudo começou.

Por momentos pensei que, se corresse muito, poderia chegar até eles. Que sentiria as mãos ásperas do pai nas minhas e as mãos quentes de dedos longos e bonitos da mãe nas minhas faces rosadas, salpicadas por pequenos grãos de terra. Corri pelos corredores brancos de paredes brancas e luzes brancas. Corri para fora do hospital, as minhas tranças desfeitas pelo vento, o barulho das ambulâncias enervava-me. Ainda hoje enerva. Cai no alcatrão duas vezes. Tinha ambos os joelhos e as mãos lascadas, nem por um segundo parei para enxugar os olhos. Ainda não queria acreditar, chorava com a possibilidade de me virem a deixar e não por já me terem deixado! Achava-me mesmo capaz de alcançá-los... Mas depois alguém agarrou-me; um enfermeiro que me levou de volta para dentro. Comecei a gritar, e insultava-o, dizia-lhe que precisava de ir, que eles estavam a fugir e que não se podiam ir embora sem mim! Mas ele não me largou e por semanas odiei-o.

A enfermeira boa abraçou-me quando me viu. Ai já estava calada e olhei de lado para o enfermeiro. Ela limpou-me os joelhos e as mãos, beijou-mos e olhou para mim com as suas iris verdes. A mãe também tinha olhos assim... grandes e bonitos como um prado.


"Tens de ser forte. Por vezes Deus tenta ensinar-nos algo maior que nós próprios. E nós temos de aguentar para fazer aqueles que amamos felizes... És uma menina inteligente; vai ser difícil mas vais superá-lo. Tem fé... Tem coragem... Hás de entender um dia!"


Depois, beijou-me o nariz e deixou-me sozinha a meu pedido. Voltei a chorar. Falava com o pai e com a mãe. Fazia-lhes perguntas. Imaginava as suas faces... A mãe tinha um rosto redondo e branco com pequenos grãos de café à volta do nariz, os olhos como duas lanternas verdes e o cabelo castanho encaracolado pelos ombros. O pai de lábios retos, alto de olhos cinzentos como o céu num dia de trovoada, a expressão meiga e severa, o cabelo negro em contraste com a pele morena. Eu amava-os... Amava muito! Mas suponho que isso não tenha chegado.


Desde essa altura que corro sempre. Todas as manhãs, acordava mais cedo e dava algumas voltas à instituição da parte de dentro do recinto. As pessoas não entendiam o porquê de eu correr todos os dias àquela hora. Somente eu sabia; quando corria, estava com eles. A mãe e o pai corriam à minha frente e eu tentava sempre apanhá-los. Por vezes tocava-lhe, mas nunca puderam ficar ao meu lado, aqui.


E a enfermeira boa tinha razão. Eu consegui superá-lo! Mas nunca consegui entendê-lo... Apesar de às vezes chorar, a dor já não é tão grande e consigo pensar claramente. No entanto, não dá; não dá para encontrar uma explicação razoável para tudo isto... Acho que teve de ser assim.


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Notas finais do capítulo

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