Casa de Bonecas escrita por Ravenna Quagliarelli


Capítulo 4
❣ O Regresso ❣


Notas iniciais do capítulo

Demorei? Sim, mas OLHEM O TAMANHO DESSE CAPÍTULO, TÔ TÃO FELIZ HG4JRFPODKPRKPR MAIOR CAPÍTULO DA MINHA VIDA SZ

Eu também fiz uns aesthetics dos personagens, aqui está o link: http://s38.photobucket.com/user/ravennaquagliarelli/Casa%20de%20Bonecas/story

E passei a playlist para o Spotify, link: https://play.spotify.com/user/223msegfpybzlwr7v2ezm6i4a/playlist/4gZuM61glwpSpQyZ8jkIq2

Aproveitem o antepenúltimo capítulo :3



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Outubro, 2011. Uma semana depois.

Marcos sentia uma pequena satisfação ao ver sua mãe desmanchar-se em lágrimas. Sua maquiagem, sempre intacta, estava completamente borrada, o rímel escorrera por sua bochecha e o batom estava borrado. Ele percebeu que o tempo fez mal a pele dela, que ela não tinha mais aquele aspecto de porcelana, agora parecia estranhamente humana com as rugas que apareceram. Seus olhos mostravam um arrependimento de quebrar o coração de qualquer um, mas Marcos sentiu-se feliz ao perceber este arrependimento tão presente, tão cortante.

Se ele se afundou no mundo das drogas a culpada foi ela. Afinal, fora ela que fugiu deixando ele e sua irmã com o crápula do pai; fora ela que preferiu uma paixão passada aos filhos. Por conta da imaturidade de Aurélia, Marcos deixou os amigos o persuadirem e o apresentarem ao mundo das drogas. Se agora ele estava internado numa merda de clínica de reabilitação depois de ter sua segunda overdose, a culpada era ela. E ela sabia disso.

— Por que seu pai não me contou? — Questionou, a voz entorpecida pela tristeza, pelo arrependimento, pela decepção. Ela merecia sentir isso, merecia reconhecer seus erros.

— Por que contar? Você nos abandonou, mamãe. — Respondeu, abusando do nojo da voz ao pronunciar a última palavra. — Ele não queria atrapalhar sua aventura com seu melhor amigo, não queria te encher de problemas dos seus filhos. Talvez você nem ligasse, afinal nem se importou em se despedir da gente quando fugiu. Sabe, a Bel tem a carta que você deixou até hoje, ela fez várias cópias e colocou pelo quarto; uma deixou no espelho da penteadeira, outra no guarda-roupa, também colocou na cabeceira da cama, umas cinco no teto...

— Pare, por favor, pare. — Gritou, levantando-se da cadeira de metal.— Eu sei que o que eu fiz foi errado, imaturo, irresponsável. Eu sei que não estou certa. Mas seu pai é um maldito e você sabe disso porque eu já te contei.

— Eu sei, eu me lembro. Três dias antes de fugir, eu tinha dez anos quando me contou tudo o que ele fez. — Murmurou entre os dentes, levantando-se também. Começou a andar de um lado para o outro, pisoteando a grama violentamente, desprezando o trabalho cuidadoso dos jardineiros. — Eu sei que ele é um crápula, mas isso não vem ao caso agora. Eu só quero saber, mamãe, por que nos abandonou? Sua herança era gorda, eu sei porque papai a usou para mobiliar o apartamento que ele deu para sua amante, dava muito bem para alugar uma casa grande para eu, você, a Bel e seu amiguinho.

— SEU PAI FEZ O QUE? — Gritou, agarrando o pulso do garoto violentamente.

— Isso que você ouviu, querida. Mobiliou a casa da amante dele, ah, e só foi com móveis caríssimos. — Repetiu, com um sorriso vitorioso no rosto.

— Eu não acredito... Eu deixei o dinheiro para vocês.

— Eu recusei por mim e por Bel, não queria nada vindo de você. — Falou, calmo, colocando as mãos no bolso. — Eu sei que só tinha dez anos, mas, bem, eu sabia pensar, sabe? Eu entendia perfeitamente o que estava acontecendo, vocês me forçaram a entender. — Suspirou, pisando com força numa pequena flor branca que ousava nascer no seu caminho. — Mas não mude de assunto, responda minha pergunta: por que não nos levou? Você tinha dinheiro o suficiente para comprar uma casa para gente, mamãe. Por que nos abandonou?

— Porque vocês me odiavam, oras! Você vivia me abandonando e a Bel...

— Você nos afastava, principalmente a Bel. Acho que você a culpava por ter nascido ou por seu casamento ser tão bosta.  —Abriu um sorriso de desprezo. — Você a teve depois do aborto, certo? Podemos ver que você era imatura bem antes, não sabendo separar as coisas. A Anabel vivia te perseguindo, querendo seu amor, querendo chamar sua atenção; você sabe quantas noites ela chorou por você ter a abandonado? Ela está tão triste atualmente, acha que a culpa é dela de você ter sumido, acredita? Você só fez merda, Aurélia.

Ela ficou quieta, apenas assentiu. Cada palavra que ele dissera tinha seu peso de verdade; cada palavra doía nela mais do que um tapa. E Marcos sabia daquilo, sabia o poder das palavras, sabia a dor que elas provocavam; por isso parou. Sentou-se pesadamente na cadeira, cruzando os braços sobre o peitoral.

— Por que você voltou? Arrependimento depois de todos esses anos?

Aurélia arrumou a postura e passou a mão nas bochechas, tentando tirar a trilha negra que o rímel deixara. Passou a mão pelo colar de pérolas que ostentava no seu pescoço, como se quisesse verificar que ele ainda estavam lá, intacto. Abriu um sorriso, arqueando a sobrancelha direita ligeiramente.

— De certa forma foi sim arrependimento. Arrependimento de ter deixado o luxo para trás, de ter abandonado todas as joias, os holofotes, o dinheiro. — Cruzou as pernas, colocando o cotovelo na mesa e apoiando o queixo na mão. — Uma pessoa só está acostumada a receber Ferrari, de repente recebe um Fusca. A comparação é tosca, mas acho que dá para entender. Foi assim que aconteceu comigo, recebia diamantes, de repente ganhei uma bijuteria de 5,99.

— Então foi por ganância? — Marcos perguntou arregalando os olhos.

Ele nunca imaginou que sua mãe fosse cruel desse jeito; mesmo depois da fuga ele não pensava nela assim. Que ela era imatura e irresponsável sim, mas agora gananciosa e egoísta? Sua face contorceu-se numa careta de nojo, seus olhos – azuis como os da mãe – demonstravam um desprezo jamais visto.

— Meu caro, minha ganância vai comprar um anel Tiffany para mim, o amor não. — Respondeu alongando o sorriso.

Seus dentes – incrivelmente brancos – agora pareciam presas, prontas para serem usadas a quem se intrometesse em seu caminho e suas unhas – cuidadosamente tratadas e pintadas de branco – pareciam garras. Aurélia se transformou num monstro durante o tempo que passara fora, talvez foi a ambição que contaminou o amor que um dia ela já sentira ou então ela já era assim, só estava esperando o momento certo para mostrar-se ao mundo.

— Saia daqui. — Marcos murmurou entre os dentes. Rapidamente se ergueu da cadeira, caminhando em direção a construção branca que cercava eles. Pela primeira vez preferiu ficar trancado no quarto daquela clínica a ficar vagando pela clínica.

— Até que para um drogado você está bem lúcido, querido. — Comentou, venenosa.

— Estou aqui há um ano por sua causa, claro que estou lúcido. — Retrucou, parando no meio do caminho.

— A culpa não é minha se você é fraco. Caso você tivesse o mínimo de vergonha na cara poderia ter se segurado, poderia não ter ouvido as pessoas, tentado cuidar da sua irmã. — Gritou afim de que ele escutasse. — Eu não sou a única pecadora daqui, meu bem! Talvez, dentre todo mundo da família, a única que se salvou foi a Bel.

E então pegou sua bolsa, abaixou seus óculos escuros e saiu pisoteando as flores que ousavam se colocar no seu caminho com seu salto.

 Δ•Δ

2011, Outubro. Dois dias depois.

As portas do closet estavam abertas, revelando cabides, prateleiras e gavetas vazias. Espalhadas pelo quarto, dezoito sacolas ostentando logotipos de marcas caras faziam presença. As empregadas haviam acabado de limpar o closet, mesmo se ela não tivesse visto-as saindo Aurélia ia perceber pelo aroma suave que a rondava o cômodo. Elas haviam se oferecido para arrumá-lo, porém a matriarca recusou; ela queria sentir a satisfação de percorrer seu corpo ao arrumar as peças caríssimas nos cabides, gavetas e prateleiras, queria mostrar a si mesma que a riqueza não era mais um sonho, que ela estava ali ao seu alcance novamente.

Aurélia pôs-se a organizar as peças de roupas. Uma a uma, com uma delicadeza impressionante, algumas ela até acariciava e abraçava, como se fosse uma pessoa querida que há muito tempo ela não via. Ela tratou melhor as roupas que a própria filha e, por um pequeno momento, se sentiu mal. Mas toda sua tristeza se dissipou quando uma empregada abriu a porta bruscamente e entrou no quarto, aparecendo na porta do closet.

— Senhora Aurélia, tem um moço querendo entrar, eu deixo? — Perguntou, ofegante.

— Um moço? — Franziu o cenho, virando-se para ela. — Não perguntou o nome não?

— Richard, conhece?

Seus olhos arregalaram-se, o ar faltou-lhe nos pulmões, seu corpo começou a tremer. O que ele estava fazendo ali? Ele não podia estar ali, não podia...

— Aurélia?! Tá tudo bem? — Cecília gritou, correndo até a patroa, abanando-a. — Quer que eu o mande ir embora? Eu mando sem problemas. Venha, sente! Trarei um chá para você, O.K?

— Não precisa Cecília, mesmo. — Balançou a cabeça, desvencilhando-se da empregada. — Deixe-o entrar e fale que demorarei um pouco, quero me recompor. — Suspirou, massageando as têmporas. — Ofereça um café a ele, por mim. Coloque bastante açúcar, ele gosta. Ah, e um pouco de leite. — Ao notar o olhar confuso de Cecília, completou com um sorriso amarelo. — Ele era meu melhor amigo na infância e adolescência, por isso o conheço tão bem. — De certa forma, felizmente, não mentiu.

Cecília acenou com a cabeça, virou os calcanhares e saiu do quarto, deixando a patroa sozinha em seu quarto, Aurélia caminhou até a cama e sentou-se na sua beirada. Seus olhos vazios vagavam pelo quarto ricamente decorado, a procura de uma justificativa para sua fuga, a procura de uma defesa... Não achou nada bom o suficiente, não achou nada para conseguir seu perdão. Balançou a cabeça negativamente, tirando esse pensamento da mente.

— Você não precisa do perdão dele. Não precisa do perdão de ninguém.  — Sussurrou fitando seu reflexo no espelho da penteadeira.

No mesmo instante, começou a ouvir uma briga no andar de baixo. A voz dele carregava um ódio, uma angústia e uma dor que ela jamais ouviu, que jamais imaginou sair da boca dele.

Não vou espera-la aqui, isso é praticamente humilhação! Saia da minha frente agora.

Mas senhor, ela pediu para você esperar! Sente-se, pelo amor de Deus! A Dona Aurélia já vai descer.

Rapidamente, a loira levantou-se da cama, saiu do quarto retirando o pó inexistente da roupa e endireitando a postura, andou pelo corredor a passos largos e apareceu no topo da escada, encarando a cena.

— Não precisa ser tão grosseiro, Richard. Sua mãe não te deu modos? — Questionou, afiada, arqueando ligeiramente as sobrancelhas. Ela ainda sabia cutucar nas feridas alheias como ninguém, ainda sabia soltar seu veneno. E agora, depois de anos guardados, ele estava mais poderoso que nunca.

Ele a fitou. Não precisava usar palavras para acabar com alguém como ela fazia, Richard podia destruir qualquer um apenas com seu olhar. Destilava todo seu ódio, toda sua raiva, todo seu... Medo? Aurélia franziu o cenho ao ver aquela expressão nos olhos do ruivo, sabia que não estava enganada, conhecia aquele sentimento como ninguém, afinal ela mesma já o provara múltiplas vezes. O que causava medo nele? Ernesto? Não, ele nunca teria medo de Ernesto... Quando a verdade chegou foi como um tapa: Richard tinha medo de perde-la para sempre.

A loira não pôde evitar um sorriso triste ao perceber aquilo. Ele perderia, seu medo iria se tornar realidade em alguns instantes. Suspirou e desceu as escadas lentamente, fitando os degraus para não ter que encará-lo. Ao descer o último virou-se Cecília.

— Faça um café para nós, certo? — Pediu, abrindo um pequeno sorriso. — Leve no escritório, estaremos lá.

A funcionária assentiu e saiu de lá praticamente correndo, havia sentido a tensão que se instalara no local e não queria ficar por perto. Nem mesmo Aurélia queria ficar.

— Me acompanhe, por favor. — Pediu, ainda sem encará-lo.

Começou a traçar o caminho curto até o fatídico escritório. Desde que saíra de casa, há cinco anos, não entrava ali. Mas, naquele dia, ela abriria uma exceção. Prendeu a respiração ao entrar no escritório, só soltando quando Richard entrou e ela fechou a porta. Se dirigiu até a cadeira de couro que sentou enquanto escrevia a carta de despedida, cruzando as pernas e indicando uma das cadeiras a sua frente.

— Não quero sentar. — Disse, ríspido. Analisava o local com uma pequena parcela de admiração, certamente todos aqueles livros chamaram sua atenção. Noutras ocasiões ele poderia até sorrir. Mas aquela não era uma delas. Balançou a cabeça, encarando-a; a carranca voltando a face. — Por que fez isso?

— Acho que deixei tudo muito claro na carta, não?

— Ah deixou, claro que deixou. — Rapidamente jogou a bolsa na mesa, abrindo-a. Tirou de lá um papel todo amarrotada, prova que ele o lera diversas vezes. Esticou-o na mesa, pigarreou e começou a ler:

— “Querido Richard,

Serei rápida e direta. Não quero prolongar algo que será doloroso para nós dois.

Sinto muito por nosso amor ter acabado. Ele era um simples amor infantil, algo que não deveria ter prosseguimento... Mas nós, românticos tolos, continuamos com isso. Creio que não seja bom para ninguém se prender dessa forma no passado.

Você deveria viver sua vida e eu a minha (por mais horrível que seja), não vamos tentar mudar nosso destino. Meu destino é ter um casamento de merda, com uma pessoa de merda. Não me preocupo dele ter uma amante, não mesmo. Na realidade, acho melhor assim... Odeio quando aquelas mãos asquerosas me tocam.

A chama entre nós está se apagando (acho que você já percebeu isso) e eu não quero estar aqui para vê-la apagar de vez. Pouparei nós dois disso. Irei embora. Não me procure, por favor.

Amorosamente,

Aurélia.

Ao acabar jogou a carta na mesa, encarando-a com os braços cruzados e a sobrancelha direita arqueada. Não sairia dali sem explicações, não mesmo. Aurélia, por sua vez, apenas estalou a língua e abriu um pequeno sorriso cínico.

— Vejo que sua interpretação está horrível, meu caro. Se não me engano eu escrevi “Não me procure, por favor”, então o que fazes aqui? Expliquei tudo, não vale a pena reviver um amor infantil, vá viver sua vida, eu vivo a minha.

— Como assim não vale a pena viver um “amor infantil”? Tudo o que vivemos não é um mero “amor infantil”! — Bufou, balançando a cabeça. — Não acredito que você vai abandonar tudo.

— O que é “tudo”, Richard? Nosso amor é escasso, vazio! — Afirmou, descruzando as pernas. — Eu só ficava perto de você porque achava que estava contrariando meus pais, ficava perto de você só para confrontá-los! Você era o típico garoto pobre, com um pai drogado, uma mãe ladrona com um bando de filho pra cuidar; era a pessoa que nenhum pai gostaria de ver sua amada e boa filha por perto. Todas as garotas ricas queriam uma amizade como você, eu praticamente ganhei na loteria ao te achar! Na escola todo mundo ficou com aquela inveja mascarada de nojo, todo mundo queria ser eu. — Alfinetou, um sorriso vitorioso passou pelos seus lábios; seus olhos brilhavam de orgulho.

 A raiva de Richard foi substituída pelo nojo. Então ele era considerado apenas um animal em exibição? Um prêmio? Ele teve que se segurar para não cuspir na cara dela ao ouvir tudo aquilo.

— Nossa amizade se constituía em festas que você me levava, furtos de bebidas e maços de cigarro... As vezes nos beijávamos só por beijar, só para fingir que algo existia entre nós. — Deu de ombros, abaixando os olhos. Ela não queria falar aquilo, não mesmo... Mas precisava. — Sinto muito, mas você é um grande iludido. — Completou, baixinho.

Por um momento ele ficou em silêncio, processando cada coisa que ela dissera. Cada informação, cada verdade do passado de ambos. Mas o passado que ela descrevera era algo longínquo, levado pelo tempo. Ele se referia ao amor atual, ao amor forte e avassalador que a fizera fugir. Ao amor digno de poemas e músicas e desenhos. O amor infantil existiu, é claro! Mas ele foi substituído por algo mais grandioso, mais belo.

 — E as promessas de amor? Quando prometeu que eu seria seu amante? E quando eu voltei depois de me mudar para Minas? Nós não nos amávamos naquela época? — Retrucou, erguendo os olhos. — Se nosso amor é escasso e vazio, por que fugiu?

Eles foram interrompidos por um leve bater na porta. Aurélia pigarreou, se recompondo da pergunta.

— Pode entrar.

Cecília entrara carregando nas mãos uma bandeja de prata, sobre a mesma se encontrava um bule e duas xícaras de cerâmica, um açucareiro, uma leiteira de porcelana e duas colherezinhas. Colocara a bandeja sobre a mesa e despejou o café em ambas as xícaras, acenou levemente a cabeça para Aurélia e se retirou, fechando a porta atrás de si.

Aurélia pegara uma das xícaras fumegantes com cautela, afastando a fumaça que subia do café com um sopro e, por fim, o bebericando. Fez uma pequena careta, pousou a xícara na mesa novamente, adicionando uma colher de açúcar e um pouco de leite, ao terminar levantou os olhos e encarou Richard com um ponto de interrogação gravado no rosto.

— Não vai beber?

— Não vai me responder? — Retrucou cerrando a mandíbula.

Ela pegou novamente sua xícara, bebericando do liquido novamente, ignorando totalmente as duas perguntas de Richard. Cruzou novamente as pernas e se encostou totalmente na cadeira. Deu mais três goles no café, estalou a língua e suspirou.

— Sente-se, beba o café, por favor. A Cecília fez especialmente pra você, você sabe que eu odeio café e estou aqui bebendo.

— Tô nem aí. — Resmungou, cruzando os braços e erguendo um pouco o queixo.

Aurélia riu. Novamente aquela risada límpida, verdadeira e singela veio à tona; aquela risada que foi transformada com o tempo em algo falso, automático. Um frio subiu pela espinha de Richard, causando-o arrepios; por um momento achou que eles tinham quinze anos novamente, com inúmeros sonhos e expectativas em mente. E então ele voltou a triste realidade, ao fatídico momento. Suas bochechas coraram violentamente e ele cerrou mais ainda a mandíbula.

— Tem algum palhaço aqui pra você ficar rindo? — Perguntou, claramente nervoso.

— Você é tããão imaturo, Richard. Até me assusta as vezes. — Respondeu, um sorriso ainda ousava desenhar seus lábios. Lábios que há apenas alguns dias ele estava beijando.

— Ah, claro que eu sou o imaturo da história! Afinal foi eu que saí sem deixar explicações e agora estou rindo da situação, eu sou realmente muito imaturo. — Ironizou revirando os olhos.

— Sente e tome o café, por favor. Aí eu te respondo, juro; apenas sente.

Braços cruzados, lábios comprimidos, olhos semicerrados, mandíbula tensa, queixo levemente erguido, respiração pesada. Algumas pessoas o achariam arrogante, mas Aurélia o conhecia muito bem, não morou cinco anos com ele para não conhece-lo perfeitamente bem. A loira sabia interpretar cada expressão, cada gesto, cada ação dele; em sua cabeça havia praticamente uma enciclopédia dos detalhes do Richard. Ele não estava sendo arrogante, estava com medo. Medo de descobrir a verdade, medo de perdê-la. Richard realmente a amava e ela só poderia lamentar por isso estar acontecendo.

Aurélia colocou o leite na xícara de Richard e quatro colheres de açúcar, mexeu o líquido e deixou a colher sobre a bandeja; ela sabia que ele tinha pavor de talhares dentro do líquido, sabia a quantidade certa de leite e açúcar. Sabia de tudo relacionado ao Richard, por isso nem discutiu para que ele se sentasse, sabia que ele cederia. Aurélia sabia de cada fraqueza de Richard e aquilo poderia ser perigoso.

Como o previsto, ele se sentou. Puxando a cadeira bruscamente (fazendo questão que ela arranhasse o piso) e sentou-se, pegando a xícara e dando um longo gole. Richard poderia estar sentido o pior dos sentimentos, mas ele sempre apreciaria um café; e naquela vez não foi diferente. A satisfação se instalou em seus olhos quando o liquido desceu por sua garganta, ele quase soltou um suspiro de admiração, mas, ao se lembrar que não estava ali para ficar tomando cafés, segurou-o.

— Você ainda não respondeu minha pergunta. — Murmurou, voltando a dar mais um gole, dessa vez menor, no liquido.

— É que você demorou tanto para sentar que eu esqueci. Desculpe. — Retrucou, bebericando de seu café.

Ele bufou e revirou os olhos, colocando a xícara no pírex de cerâmica a sua frente. Apoiou os cotovelos na mesa e abriu as pernas. “Postura de questionar e discutir”, pensou ela com uma breve satisfação.

— Se nosso amor é escasso, como você disse, por que fugiu? Por que permaneceu comigo por cinco anos?

— Porque eu ainda queria confrontar meus pais. Eles, com certeza, iriam querer que eu permanecesse num casamento estável, com lindos filhos e muita, muita grana no bolso. Na realidade, eu queria confrontar todo mundo. — Também pousou a xícara no pírex, pegando uma mecha de seu cabelo e enrolando no dedo. — Sabe, depois que as meninas ficam com os badboys elas se casam com caras sem graça e ricos e ficam à mercê duma vida incrivelmente boa e invejável. Eu quis ser diferente e fugi. — Deu de ombros, comprimindo os lábios e franzindo o cenho.

— Se você queria ser tão diferente assim por que diabos voltou?

— Porque eu descobri amar mais o dinheiro do que você. — Respondeu finalmente, engolindo em seco. — E porque foi uma burrice completa ficar confrontando todo mundo. Quero dizer, foi para casar com alguém sem graça e rico que eu fui criada, não tem como mudar isso. Não tem como mudar meu destino, sacou? É tipo colocar um pinguim num deserto, não vai dar certo.

Richard ficou encarando-a incrédulo por um longo momento. Não sabia o que fazer com as mãos, não sabia o que falar, o que fazer... Ficou, literalmente, sem reação. A única coisa que conseguia fazer era umedecer os lábios e engolir em seco. E Aurélia não ousava falar nada, apenas tamborilava os dedos na mesa e dava alguns pequenos goles no café. Um silêncio quase palpável se instalou pelo cômodo, senão fosse pelo barulho dos ponteiros do relógio. Mas, maior que o silêncio, a tensão se fazia presente, rondando os dois, causando-lhes um incômodo inimaginável.

— Então foi por causa de dinheiro? Você desistiu de um grande amor por dinheiro? — Perguntou quebrando totalmente o silêncio, mas não desfazendo a tensão. Essa era praticamente inquebrável.

— Você tem uma mania por expansividade muito estranha, sabia? Não foi um grande amor. — Retrucou, arqueando a sobrancelha direita.

— Claro que foi! E a fuga? E as cartas? E o nosso reencontro?

— Não, Richard, não foi um grande amor. Um grande amor tem sacrifícios...

— E você não se sacrificou saindo de casa? — Interrompeu, abrindo um pequeno sorriso vitorioso.

—... de ambas as partes. — Aurélia completou, cruzando os braços. — Qual sacrifício você fez por esse amor, hein? — Questionou vendo o sorriso vitorioso de Richard desaparecer. — Quero dizer, foi eu que saí de casa. — “Foi eu que fui espancada e humilhada por amar você!”, pensou; mas aquela não seria uma boa hora para revelar aquilo. Nem aquela nem nenhuma outra hora.

— Você fala como se sair de casa fosse um enorme sacrifício! — Rugiu erguendo-se da cadeira. — Se você tivesse ido morar na rua, tivesse passado fome e frio eu te entenderia, mas não! Você foi morar comigo. — Completou apontando para o próprio peito.

— Sair de casa não é um enorme sacrifício, mas abandonar os filhos sim. — Retrucou erguendo-se também.

— Ué, se você acha isso um grande sacrifício então por que diabos fugiu?

— Porque eu fui egoísta!

— Não, você não foi egoísta; você é egoísta por te me abandonado.

— Ah meu Deus, Richard! Você faz noção do que você tá falando? Estou falando que eu abandonei os meus filhos!

— Você nem gostava deles! Tentou matou uma só por ser filha do Ernesto, não venha pagar de boa mãe agora.

— Segure tua língua quando for falar de mim, ok? Há dois dias saí de uma clínica de reabilitação porque meu filho quase morreu de overdose. Ele quase morreu porque fui egoísta. — Gritou apontando para a janela, indicando o lado de fora.

“Sim, eu fui egoísta. Egoísta por ter traído o Ernesto com você naquela época, ele aprendeu a me amar e eu traí a confiança dele; fui egoísta por ter abandonado meus filhos, por ter tentando matar a Anabel. Eu admito que fui egoísta de inúmeras formas e uma delas não foi por ter te “abandonado”. E eu não quero ser egoísta novamente, não mesmo.

Richard assentiu e pegou sua bolsa, colocando-a no ombro.

— Isso é um adeus então?

— Interprete da forma que você quer. — Colocou a mecha de seu cabelo atrás da orelha, encolhendo os ombros.

— Mas antes me responda uma coisa, por favor. — Pediu engolindo em seco e abaixando os olhos, não queria ver a expressão de Richard.

— Diga.

— Você me ama?

Um silêncio constrangedor se instalou no local, foi breve, mas para os dois demorara séculos. Richard se afundou no imenso mundo das repostas, quando não achou resposta que o satisfizesse mergulhou no obscuro mundo das dúvidas: Será que ele a amava mesmo depois do que fizera com ele?  Um amor verdadeiro poderia acabar tão rápido? Mas aquele amor era verdadeiro? Ela tinha razão ao falar que o amor deles era escasso e vazio? Ao falar que um grande amor precisava de grandes sacrifícios? Seria certo só vê-la abandonar as coisas?

Já ela se corroía por dentro condenando-se por ter feito aquela pergunta, afinal que tipo de pergunta era aquela? Ela tinha acabado de sair de sua casa deixando apenas uma carta vazia, sem grandes explicações... É claro que o amor que ele sentia por ela acabou, ela pediu para aquilo acontecer.

— Eu vim aqui te buscar, acho que te amo sim. — Respondeu após muito refletir.

— Ótimo. — Murmurou assentindo lentamente, levantou a cabeça encarando-o e abriu um sorriso trêmulo. —Pare de me amar e não me procures, por favor. — Escrever aquelas palavras era menos doloroso que pronunciá-las, bem menos. — E sim, isso é um adeus.

Ela colocou as xícaras sobre a bandeja e a pegou, equilibrando-a com a destra como fazia enquanto trabalhava de garçonete há apenas alguns dias.

— Cecília, acompanhe o Richard até a saída. — Gritou saindo do cômodo. Alguns segundos depois, a mulher magricela e parda apareceu na sua frente. — Passar bem, Richard. — Murmurou caminhando em direção a cozinha.

Δ•Δ

Janeiro, 2012.

Anabel descrevia detalhadamente cada mudança que acontecera na sua vida. Começara pela magnífica mansão para onde se mudaram, demorando exageradamente na descrição da escada que era “digna do grandioso Palácio de Versalhes!” e no extenso jardim dos fundos da residência “São todas cores e odores, fiquei perdida lá. É completamente maravilhoso!”.

Seus olhos brilhavam de uma forma que Marcos nunca havia visto, um sorriso verdadeiro desenhava seus lábios e seu riso saía fácil. Não parecia mais aquela garota tímida que se escondia atrás das pessoas, que evitava qualquer contato com adultos, que se trancava toda noite no quarto para chorar e que vivia focada demais em sua rotina de estudos e ballet. Anabel estava voltando a ser criança novamente, estava reencontrando aquilo que perdera há muito tempo: a vontade de viver.

Seria a volta de Aurélia que trouxera cor para os dias da irmã? Por mais que fizesse sentindo, Marcos duvidava muito que fosse isso, afinal Aurélia não era o tipo que pessoa que trazia coisas boas a vida de alguém, ela trazia dor, tristeza, sofrimento. Quantas lágrimas a matriarca não tirara de Anabel? Quantas dores Aurélia já provocou? Marcos temia que, com essa aproximação, Anabel sofresse mais. E ele não queria ver as consequências.

Sua irmã era uma ótima pessoa, é claro. Talvez fosse a melhor pessoa dentro daquele ninho de cobras que ele já ousou chamar um dia de lar. Era ela quem ouvia e via tudo calada e sozinha, refugiada no canto mais escuro da casa; ela que sempre encobriu as saídas do garoto para os becos e depois que ele voltava o aconselhava de não voltar mais; ela que se culpou pelo sumiço de Aurélia; ela que teve que aguentar a rejeição da mãe e do pai e Marcos duvidava que um dia ela já conheceu o Amor, na realidade até mesmo ele duvidava ter o conhecido. Anabel aguentou tudo muito cedo, perdeu muita coisa muito cedo, teve que lidar com dores muito cedo... Um dia ela explodiria e ele, definitivamente, não queria estar lá para ver.

— E quanto a Aurélia, como você está reagindo? — Questionou quando ela parou, finalmente, de falar sobre a casa.

— Ela ainda é tão bela quanto uma estátua, seus traços ainda são dignos de invejar Afrodite. Mas, assim como a estátua feita por Pigmaleão*, parece que ela ganhou vida. — Respondeu com um breve sorriso, fitava o céu azul que se estendia sobre eles, seus pensamentos não estavam mais direcionados àquela conversa, provavelmente se encontravam no mundo de mitos que ela tanto lia. — Está mais carinhosa, cuidadosa... Talvez esteja tentando compensar o tempo perdido, sabe? Ela se lembra que eu gostava de doces, então sempre que volta das suas compras traz uma sacola cheia para mim. E uma vez comprou um vestido de boneca para mim, que se parecia muito com um que eu tinha, aí eu falei que eu não usava mais vestidos daquele jeito, ela ficou um pouco chateada, mas depois concordou e me levou para um dia de compras. Foi legal. — Completou voltando a encarar Marcos.

— Isso é ridículo. — Marcos murmurou balançando a cabeça negativamente e franzindo a testa. — Ficou fora por cinco anos e agora tenta resolver a merda que fez.

— Ela ao menos está tentando, Marcos! Você deveria tentar entende-la e parar de reclamar tanto. — Reclamou cruzando os braços.

— Ela desapareceu e você fica aí defendendo ela! Essa mulher te fez sofrer, Anabel.

— E você pensa que quando descobri que você teve uma overdose eu não sofri?

— Isso é diferente.

— Não, é igual! Eu procuro entende-la igual te entendo, você também deveria.

Marcos bufou, revirando os olhos. Por que diabos aquela garota era tão boa? Por que ela só via as coisas boas no mundo? Aquilo o deixava com raiva, porque ele sabia que ela sofreria mais e mais nesse mundo. Pessoas como ela, boazinhas e sem graça, estavam destinadas a sofrer e ele não sabia como impedir aquilo.

— Desculpe, certo? Só estou com raiva por ela ter voltando assim tão de repente. — Murmurou descruzando os braços e tocando no braço alvo da irmã. — Mas ela sabe...?

— Da depressão? — Sussurrou, varrendo o local com seus olhos castanhos a procura de alguém que pudesse falar aquela informação preciosa para a mãe. — Não, ela não sabe.

— Mas você não está indo para a terapia?

— Estou, é claro que estou! Mas eu vou depois que saio da escola, falo para ela que vou para o Clube de Xadrez, o que não é bem uma mentira já que depois das terapias eu vou mesmo para o Clube de Xadrez... — Deu de ombros abrindo um sorriso travesso.

— E a Esgrima, ela sabe?

— Sabe, claro que sabe! Ela foi até me ver numa competição no fim do ano passado, no início ela ficou em choque, sabe? Mas depois que ela viu minhas medalhas se acostumou com a ideia e acho que ficou orgulhosa. — Falou, seus olhos brilharam de felicidade. — Ela também viu minha apresentação de ballet e ficou tããão feliz! — Completou batendo palminhas. — Aliás, eu pedi que ela gravasse um vídeo com meu celular para te mostrar! Eu vivo esquecendo. — Abrira a bolsinha azul que carregava, tirando vários papéis de bala e algumas moedas de dentro dela. — Hm, ele não está aqui... Mas tudo bem, daqui a pouco lá no carro você olha.

— Como assim dentro do carro? Esqueceu de repente que agora eu moro aqui? — Questionou confuso, apontando para a construção que se erguia atrás deles.

— Ah, eu não te falei?

— Falar o que?

— Quando eu falo que nossa mãe mudou, é porque ela mudou. Há uma semana que ela vem discutindo com o papai para deixar você sair daqui, ela diz que você já está melhor, que já está aqui a muito tempo. — Estalou a língua, erguendo-se da cadeira. — Você vai sair hoje, mamãe veio aqui resolver as últimas coisas e te tirar desse Inferno. — Suspirou, desamassando a saia e ignorando totalmente a confusão estampada no rosto de Marcos. — Acabei de lembrar que tenho que mandar mensagem para o povo do Clube de Xadrez, não tenho tanta certeza se terá hoje... Vou lá mandar enquanto não esqueço. Aproveite e arrume suas coisas, já chamarei a mamãe para vir. Até daqui a pouco, maninho.

E então girou os calcanhares, caminhando pela estradinha do jardim até a saída da Clínica.

Não demorou muito para que eles aparecessem, Aurélia na frente, com seus óculos escuros e uma bolsa de couro na destra, enquanto a canhota segurava inúmeras papeladas, já Marcos vinha logo atrás, com uma mochila nas costas. Anabel posicionou a câmera do celular, focando nas duas figuras que se aproximavam do carro e então tirou cinco fotos seguidas, fazendo questão de pegar bem a placa que indicava que ali era uma Clínica de Reabilitação. Depois bloqueou o celular, guardando-o dentro da bolsa, satisfeita com o pequeno passo que dera.

Δ•Δ

Junho, 2012.

Desde que elas tiraram Marcos da clínica o teatro recomeçou.

Durante esse pequeno espaço de tempo que a família retomou a tornar-se “perfeita”, eles foram chamados para inúmeros jantares oferecidos por famílias influentes do Estado, convidados a comparecer em festas de inauguração de restaurantes, boutiques, hospitais e escolas públicos ou qualquer outro evento que envolvia o Governo e famílias de Classe Alta.

Obviamente, inúmeros jornalistas presentes faziam entrevistas com eles, sobretudo Aurélia e Marcos, querendo saber o porquê dos sumiços, querendo tirar uma casquinha de verdade em meio aquelas mentiras; e talvez essa fosse a parte que mais doía na garota. As mentiras eram tão absurdas que a loirinha não podia evitar as caretas e uma pequena risadinha discreta, mesmo sabendo que depois dentro do carro brigariam com ela, Anabel simplesmente não conseguia evitar. E o mais incrível era que Ernesto conseguira ganhar dinheiro até mesmo contando mentiras, com Marcos descrevendo e elogiando exageradamente as maravilhas encontradas num Internato que ele nunca esteve. Internato, o qual, Ernesto havia feito acordos com o dono para divulgar e ganhar dinheiro em troca.

Por que você estava lá? — Indagava os jornalistas afiados, querendo algum furo para estampar na capa dos jornais regionais.

— Eu sempre tive dificuldades no colégio, então meu pai achou esse Internato, o qual foca na reabilitação daqueles que tem dificuldade de aprendizado. O Internato Aciôma é magnifico, além de me tornar um estudante melhor, oferece diversos cursos extracurriculares...

E então continuava a contar as maravilhas do Internato tão ricamente que até mesmo a garota passou a questionar se ele esteve mesmo lá, mas então se lembrou que tanto ele quanto ela sempre aprenderam a serem ótimos atores. Desde crianças aprenderam a dar sorrisos falsos, a mentir, a manipular os outros e, principalmente, a si mesmos; aprenderam a esconder seus sentimentos e fingir que tudo estava bem, que tudo estava perfeito. Os dois foram treinados a manter aquele império de farsas e mentiras intacto, foram treinados a serem perfeitos para o mundo exterior até mesmo quando tudo estava desabando. O problema era que Anabel levou essa ideia de manipulação a sério demais, entrou na personagem que criaram para ela e só saía quando estava sozinha.

Até mesmo dentro de sua casa ela mantinha a máscara de boneca no rosto, com seus movimentos, falas e até mesmo pensamentos controlados. Não era como Aurélia que ao entrar em casa começava a se embebedar, Marcos que começava a se drogar ou Ernesto que ficava indiferente a todos a sua volta e só focava em sua amante. Com Anabel era diferente, ela era perfeita até mesmo com eles, sendo uma boa filha, uma boa irmã, uma boa estudante... Continuava sendo a garota dócil e educada que aparecia na frente das câmeras. Mas, é claro, que uma hora tudo aquilo tinha que acabar, e com ela só acabava quando se trancava no quarto.

A partir do momento que ela entrava em seu mundinho ela deixava de ser Anabel D’Cruz e passava a ser Rafaela Montenegro, a maior fofoqueira e hater das famílias ricas da cidade – inclusive de sua própria –, dona da página de fofocas AZ Anonymous e disseminadora de discórdia.

Anabel mantinha no seu guarda-roupa uma caixa de sapato enfeitada com adesivos brilhantes, a qual passava despercebida por qualquer pessoa, mas ela sabia o poder que aquela caixa tinha. Inúmeras fotos de qualquer flagra que fazia, desde traições até subornos, as verdades constrangedoras de praticamente todas as pessoas da cidade estavam lá. Para a garota aquela caixa era como o Livro do Arraso de Means Girls e, assim como a Regina George fazia, ela espalhava todos aqueles segredos aos quatro ventos. Bastava alguns cliques, e voilà, a discórdia estava disseminada. Depois bastava ela ir para a escola ou acessar qualquer rede social para ver a verdadeira guerra acontecer.

E naquele momento o alvo era nada mais nada menos que Marcos. Não que ela não gostasse do irmão, ela até possuía um forte vínculo com ele, mas aquela mentira de “sumi porque fui para um Internato” já estava irritando-a. Entrou no perfil falso da Rafaela Montenegro e, com algumas palavras, disseminou todo seu veneno:

“Alguns dizem que nosso queridinho Marcos D’Cruz estava num renomado internato. A foto diz que ele estava numa clínica de reabilitação.

Seria nosso eterno crush um viciadinho? Ou estou enxergando demais?

Fique atento ao perfil e a página, postaremos mais novidades já, já o/

XOXO, Rafa.”

Logo abaixo estava anexada a foto que Bel tirara enquanto Aurélia e seu irmão saíam na clínica.

Fechou o notebook com um sorriso satisfeito no rosto. O império de mentiras já estava quase caindo, ela só daria um pequeno empurrãozinho para ajuda-lo cair de uma vez por todas.

Setembro, 2012.

Tudo era muito automático para ela. Chegar em casa depois de um dia cansativo de escola – aula de um idioma qualquer – esgrima, subir as escadas, tomar um banho relaxante, colocar uma roupa confortável, fazer as tarefas de casa, chamar o Marcos e ir jantar. Mas, naquele dia, o desfecho foi diferente.

Anabel bateu na porta de Marcos três, quatro, sete vezes; não ouviu nada. Abriu a porta com a reclamação na ponta da língua, mas ele não estava ali. Ligou para seu celular e o ouviu chamar, Marcos sempre levava seu aparelho quando saía de casa, aquele dia não seria uma exceção. Foi aí que ela ouviu o som relaxante da água escorrendo, aproximou-se do banheiro do quarto de seu irmão, ouvindo o barulho ficar cada vez mais alto, o coração bater mais depressa, o frio passar por sua espinha. “Você está assistindo muitos seriados de suspense, Bel, olhe no que você está pensando... Seu irmão só está tomando banho. Ou pregando uma peça em você. Ele sabe que você é medrosa, ele sabe.”, repetia para si mesma olhando para trás a procura de uma câmera gravando-a. Bateu na porta novamente, três, cinco, doze vezes.

— Já perdeu a graça Marcos, abra logo isso! — Ordenou. — Vou contar até três, se você não abrir eu invado... Por favor, esteja vestido. — Sussurrou a última sentença engolindo em seco. — Um... Dois... Dois e vinte e cinco... Dois e meio... Dois e setenta e cinco... — Suspirou colocando a mão na maçaneta. — Três. — Abriu a porta, fechando os olhos com medo dele estar nu.

Mas ela não ouviu nenhuma risada abafada, nenhuma voz, nenhuma respiração. Abriu os olhos lentamente e então gritou. Um grito desesperado escapou de sua garganta, suas pernas falharam por um momento, as coisas começaram a girar, lágrimas quentes rolavam pelo seu rosto. Ouviu a voz de sua mãe e talvez a de Cecília, sentiu alguém abraçando-a e levando-a para seu quarto.

— Vai ficar tudo bem, vai ficar tudo bem. — A pessoa misteriosa sussurrava. — Apenas tente... Tente esquecer.

Mas aquele pedido era impossível de ser realizado. A figura de seu irmão esfaqueado dentro de sua pequena banheira estava dolorosamente viva em sua mente.

— Quem fez isso? — Perguntou num murmuro quando finalmente achou sua voz.

— Talvez um traficante. Ele entrou em casa quando ninguém estava e o matou... — Esclareceu Aurélia com uma voz surpreendentemente calma.

— Por quê?

— Porque, provavelmente, seu irmão ficou devendo dinheiro a ele. Você sabe que Marcos se afundou de no...

— Não por que o traficante o matou, quero saber por que Marcos entrou novamente no mundo das drogas.

Cecília ficou por um momento em silêncio, fazendo cafuné na cabeça da garota, refletindo. Por fim deu um sorriso triste e soltou:

— Porque as pessoas são cruéis.

A mulher não precisou dizer muita coisa, com aquela pequena frase Anabel já entendeu o que ela quis dizer: Aurélia, Ernesto e até mesmo ela, secretamente, eram cruéis; indiretamente eles foram os causadores da morte de Marcos.

Ao longe, no andar debaixo, quando todo mundo deveria estar em silêncio chorando, rezando ou simplesmente tentando dormir, a voz de Aurélia e Ernesto preenchiam toda a casa silenciosa.

— Se ele morreu a culpa foi sua, quem mandou você fugir! — Ele gritava, socando a mesa.

— Ah, por favor, não coloque a culpa toda em mim, se você fosse um pai competente teria evitado isso. — Retrucava no mesmo tom.

E agora, o que vão pensar da gente? Vão dar total credibilidade para aquela Rafaelinha e vamos sair perdendo.

Não acredito que seu filho morreu e você está pensando nisso, qual é seu problema, Ernesto?

Ele virou só meu filho a partir do momento que você fugiu? Jurava que era nosso.

E então a discussão prosseguia, dando voltas e mais voltas no mesmo assunto. A cada grito e acusação Anabel estremecia um pouco. Não que ela achasse que eles não tivessem culpa da morte de Marcos, a parcela de culpa deles eram tão grande quanto a dela, ela estremecia porque a verdade doía; doía saber que, se Marcos estava morto naquele momento, a culpa era deles, a culpa era daqueles que ele um dia já ousou chamar de família.


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Notas finais do capítulo

E aí, gostaram? Gostaram da Bel? Eu acho ela um amorzinho, estou tão orgulhosa de ter criado ela :3 Vocês vão se surpreender muito com ela (espero).

E os aesthetics, viram? Gostaram?

Comentem, deem opiniões e críticas construtivas :3

Até o próximo cap.



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