Casa de Bonecas escrita por Ravenna Quagliarelli


Capítulo 1
❣ Origens. ❣


Notas iniciais do capítulo

Leiam escutando: https://www.youtube.com/playlist?list=PL_2il0g_a9wVu_e3a7b91M9SG7SUHwF_1

> Espero que gostem e boa leitura sz.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/690959/chapter/1

 

Fevereiro de 1993.

A cada minuto que passava a vontade de esfregar um calendário na cara de sua mãe aumentava. No começo ela achou que não valia a pena sair com a cara marcada por um tapa, agora ela já achava que valia o esforço. Num gesto involuntário ela passou a destra por sua bochecha macia, imaginando-a queimar por conta do tapa. Aurélia suspirou, demonstrando impaciência e se afastou da varanda do seu quarto.

— Mãe, já disse que eu não vou me casar. — Disse, tentando manter-se calma. — Isso é ridículo, em pleno fim do século vinte você insistir num casamento arranjado! Eu tenho uma vida, sabia? Tenho pessoas para conhecer, viagens para fazer, shows para conhecer, tenho que estudar, fazer uma faculdade... Eu não posso destruir tudo assim, do nada, por conta de ganância de vocês dois. Vocês não tem esse direito. Não, não e não.

 — Nosso dinheiro tá acabando, será que tu não entende isso?! Eu já te contei a história de como ficamos ricos trilhões de vezes e, agora, por capricho seu, vamos empobrecer. Pare de ser egoísta, Aurélia.

— Eu sei da história de vocês sim, O.K? Mas não vai ser me vendendo que vocês vão conseguir grana.

— Não vamos te vender, filha. Vai ser só uma aliança, nada demais. Você e o Ernesto se casam, a família dele começa a financiar a nossa e pronto. Não precisa ser de verdade, pode ser só nas aparências sabe?

— Se é só pelas aparências porque diabos vou ter que me casar? Nossa família está falida, não? Vamos sair como os coitadinhos e eles os bonzões, onde isso tem benefício para a gente?

— Com a grana deles vamos crescer, oras! Depois de algum tempo vamos sair por cima.

— E quem garante que eles vão nos financiar mesmo? Hein? E se eles falirem depois? Vale destruir minha vida e a do garoto por causa disso? — rugiu, sentando-se pesadamente na cama. — Ele está concordando com isso, por acaso?

— Isso não vai acontecer, O.K? — Disse sua mãe, massageando as têmporas. — Ele também está com um pé atrás, mas isso não importa. Aliás, nem sua opinião importa, só estou anunciando, como seu pai pediu. — Retrucou ríspida. Se dirigiu até a porta, com passos pesados, obviamente mal-humorada.

Naquele momento Aurélia viu-se sem chão algum. Permitiu que o corpo caísse na cama, mole. Todos seus planos, todas suas expectativas, tudo que ela tinha certeza estava destruído. Tudo. Sentiu as lágrimas virem, mas não deixaram-na cair, definitivamente não deixaria sua mãe vê-la chorar como uma criancinha, uma bebê chorona, uma fraca.

— Sabe o que vai acontecer?  Vou me casar cedo, vou ter um filho cedo, meu marido não vai dar a devida atenção para mim porque tem que cuidar da empresa e vai ter uma amante, mais bonita que eu. Vou virar uma velha de alma, mas não de idade, sem nenhuma expectativa de vida e filhos para cuidar, praticamente sozinha. — Ela engoliu em seco, sentando-se novamente no colchão. — Não vou poder separar, porque não tenho formação alguma, já que não vou fazer faculdade e vou parar de fazer a escola. Minha vida vai ser uma merda, Dona Juliana. E sabe por quê? Por causa de vocês. — Completou amarga.

Sua mãe parou em frente à porta, com a mão já na maçaneta, suspirou e virou a cabeça lentamente.

— Francamente, eu não me importo, minha querida. A única coisa que importa aqui é a grana, não seu destino. Você acha que o meu não é igual? É claro que é. — Ela sorriu com amargura, deixando umas poucas lágrimas escorrerem. — Mas ao menos posso ter dinheiro, roupas, joias, viagens... Esse luxo meu marido não pode me privar e o seu também não vai. Faça o mesmo e tente ser feliz.

Após alguns minutos de silêncio e choque Aurélia se recompôs, pigarreou e perguntou.

— Quantos anos mais velho?

— Seis, ele está na faculdade de Direito, faltam dois anos. — Respondeu se recompondo. Por fim, saiu do quarto, deixando a menina com suas amarguras.

— Isso não existe, Aurélia! — Richard exclamou, incrédulo. — Você só tem quatorze anos...

— Quase quinze. — Cortou erguendo o dedo indicador.

— Que seja, ainda é menor de idade. — Desdenhou dando de ombros. — Estamos na década de noventa, ela não pode fazer isso. Não mesmo.

— Eu disse, mas ela não me escuta. Nunca me escutou. — Murmurou mexendo na ponta de seu cabelo. — Eu não nasci para casar, Richard. Muito menos casar com alguém que eu não conheço. — Ela suspirou, deitando-se no colo do ruivo, retirando o cigarro que estava na boca do garoto, colocando na sua e tragando-o.

“Eu tenho que terminar o ensino médio, entrar numa faculdade de jornalismo, viajar o mundo, ir em vários shows, fazer mais amizades... Agora tudo acabou. Não tem mais nada para fazer, hoje foi o fim da linha. — Completou soltando a fumaça aos poucos.

— Você não pode fumar. —Repreendeu tirando o cigarro dos lábios da menina delicadamente e devolvendo para os seus.

— Você fuma, por que eu não posso? — Retrucou com um sorriso torto e a sobrancelha direita levantada.

— Nossas realidades são diferentes, mon amour. — Disse singelo, dando de ombros.

— Não mais, dear. Não mais. — Num pulo ela ficou de pé e saltou da mureta. — Na realidade, a minha está bem pior que a sua. Ao menos tu tem liberdade, pode fazer o que quiser da tua vida – literalmente. — Ela sorriu maliciosamente. Se tinha uma coisa que Aurélia sabia fazer era cutucar nas feridas alheias e ela sempre fazia isso com o pobre coitado.

Ele bufou nervoso, revirando os olhos.

— Se você acha que vai me provocar, saiba que isso não vai acontecer, senhorita D’Cruz. Não mais.

Ela riu, uma risada que causava arrepios a quem ouvisse de tão límpida, verdadeira e singela que era. Aquele tipo de risada que fazia as pessoas se apaixonarem por ela, no caso de Richard ele se apaixonou mais um pouquinho – o que parecia impossível. A loira puxou a mão de Richard, convidando-o para descer, o que aceitou de bom grado. Como num daqueles filmes de comédia romântica eles começaram a dançar. A música soava em todos os cantos, desde as buzinas dos carros distantes, o som de alguns poucos grilos ou quando um homem passou correndo pelos dois. O mundo era a melodia e era no compasso dessa que os dois dançavam. Não era a primeira vez que os dois faziam aquilo, já estavam acostumados, mas cada momento era mágico, cada momento valia a pena e surtia como uma novidade.

— Tive uma ideia. — Ela sussurrou sem parar de dançar. O garoto soltou um grunhido, demonstrando que ela podia prosseguir. — Você vai ser meu amante. Eu vou casar, vou ter uma família perfeita com ele, mas vou amar você, vou viver com você secretamente.

Richard parou a dança, se afastando dela e encarando-a com a sobrancelha erguida.

— Aurélia, isso não tem graça.

— Não é para ser engraçado, é sério. — Ela bufou, irritada. — Você quer ser meu amante, Richard? Eu não vou amar meu esposo, eu te amo. Só você tem lugar aqui. — Ela apontou para o lado esquerdo do peito. — Aceita?

— Aceito. — Sussurrou, beijando sua testa e voltando a abraçá-la.

Secretamente ele chorou. Sabia que não deveria criar esperanças, que aquilo não era real, nunca seria e, sobretudo, Aurélia se apaixonaria pelo novo esposo. Mas mesmo sabendo da verdade, acreditou em cada palavra dela, morrendo por dentro por ser tão tolo.

∆•∆

Março de 1993.

Mesmo contra sua vontade ela foi. Obviamente não estava animada para conhecer seu marido, mas após tantas súplicas de sua mãe ela resolveu ir.

— Vai ser bom para você! Conhecer o marido antes do casório é uma boa. — Falou animada, alisando a roupa de tenista da menina.

— Claro, sempre é bom conhecer o cara que você vai ter que passar o resto da sua vida contra sua vontade. Iupi. — Retrucou irônica, levantando os polegares e dando um sorriso forçado.

— Pare de reclamar e se você fazer qualquer coisa errada... Vamos conversar lá em casa. — Avisou ignorando o comentário da menina, enquanto passava a mão pelo cabelo preso de sua filha para abaixar os fios que se soltavam. — Esteja avisada.

— Juliana? Ah querida, que bom te ver. — Ouviu-se atrás delas.

Aurélia olhou por trás do ombro da mãe, conseguindo ver as três pessoas que se aproximavam. Uma mulher estava de braços dados com um homem gorducho, ela aparentava ser bem mais nova que o homem o que fez a menina soltar uma risadinha. Atrás do casal um garoto alto andava com a cabeça baixa, aparentemente triste. Todos estavam muito bem vestidos, a mulher possuía brincos, aparentemente, de ouro; por mais simples que parecessem a garota sabia o quão precioso era. O homem tinha um relógio brilhante, igualmente de ouro. O Sol refletia no acessório, fazendo os olhos da menina arderem. Já o garoto... O garoto não possuía nenhum bem de valor, a não ser sua roupa bem passada e o cabelo bem penteado. Tirando isso ele estava normal... Normal até demais.

O homem era um empresário. A mulher uma aproveitadora. E o menino um pobre coitado que vivia para fazer as vontades dos dois. Espera... Empresário, aproveitadora e um pobre coitado. Aquela era uma cópia quase fiel de sua família. Aquela era a família que todo mundo considerava perfeita, a família que sua mãe desejava para ela. A família de seu noivo.

Ela engoliu em seco, sentindo os joelhos cederem, a visão ficar turva. Sua sogra, seu sogro e seu esposo.

Seu esposo.

Ela queria gritar, queria fugir, queria chorar. Mas permaneceu lá, pelo bem de sua integridade física e moral. E lá permaneceu até o fim daquela tortura, sorrindo, sendo o que não era, sendo uma filha e, aparente, esposa perfeita.

Tudo o que ela não era. Tudo o que ela não queria ser.

Δ•Δ

Agosto, 1993.

Ela olhou ao redor, apreensiva.

Ele ainda não havia chegado. Já fazia meses que eles não se viam, ela se perguntava se era por causa de Ernesto ou algo do tipo, mas algo dizia que não. O que a deixava cada vez mais preocupada. Ela sabia dos problemas que Richard tinha e temia que o pior tivesse acontecido.

Enquanto varria o salão de festas com os olhos a procura dele, seus olhos pararam no rosto sereno de Ernesto. Ela podia encontrar a paz naquele mar de chocolate que as pessoas ousavam chamar de olhos, podia acalmar-se com suas palavras por mais poucas que sejam. Ernesto era a calma que Aurélia não possuía. Era a brisa suave em meio a uma tempestade. Sim, durante os cinco meses que eles ficaram juntos tornaram-se grandes amigos. Mesmo com a constante lembrança que um dia eles iriam se casar, que um estava destinado ao outro. Ele era o melhor amigo gay que ela nunca teve. E a garota adorava isso.

Mas naquele momento ele estava nervoso assim como no dia que eles se conheceram. Lançou um olhar nervoso para a garota e se levantou lentamente, se dirigiu até o palco que estava montado interrompendo a banda, cochichou alguma coisa para o cantor, tomou o microfone nas mãos trêmulas e suspirou profundamente.

— Creio que não há dia mais propício para fazer isso. — Começou lançando olhares para o público. — Hoje ela faz quinze anos e até agora não dei presente algum. Aurélia pode vir aqui, por favor.

Ela se levantou lentamente, temendo o que poderia acontecer. Lançava sorrisos nervosos para os convidados. Parou na frente de Ernesto, limpando as mãos suadas no vestido, olhos arregalados e um sorriso amarelo no rosto.

— Aurélia, já faz uns meses que nos conhecemos e iniciamos nosso relacionamento...

Relacionamento. Ela franziu o cenho, desde quando os dois estavam num relacionamento? Aquilo não passava de uma amizade. Olhou para os convidados logo abaixo deles e percebeu que ninguém estava espantado ou surpreso. “Todos sabiam”, pensou entristecida. Ou melhor, todos pensavam que sabiam que um relacionamento ocorria entre eles. Todos pensavam que os dois estavam apaixonados, eram namorados. Todos estavam enganados, inclusive ela. Suas famílias deixaram a entender que um relacionamento de fato ocorria. Olhou discretamente para a mesa onde a família de Ernesto estavam sentados e percebeu que o Doutor Samuel murmurava as palavras em sincronia com seu filho. Lágrimas vieram aos olhos da loira, mas não eram de felicidade e sim de ódio, raiva. Montaram um jogo e usaram os dois como peões.

Ernesto continuava o discurso regado de palavras vazias para os dois e suas famílias, mas para os convidados eram amorosas, verdadeiras. A única coisa que ela conseguiu ouvir daquilo tudo foram as quatro palavras que ela tanto temia:

— Aurélia, aceita casar comigo?

Engoliu em seco, secou uma lágrima que ousava cair e abriu o melhor e mais belo sorriso que pode, deixando de lado toda a amargura.

— Claro que aceito! — Exclamou sorrindo mais e mais para esconder as lágrimas que escorriam mais e mais.

O anel foi colocado em seu dedo e, com um último olhar para a família, ela o beijou. Um beijou vazio, sem paixão, mas ela fez de tudo para parecer que era apaixonado. Se fosse para enganar ela sabia. Enganaria tão bem que até mesmo ela acreditaria naquele amor.

Inúmeros presentes estavam distribuídos pelo seu quarto. Todos embrulhados com papeis brilhosos e fitas perfeitas. Todos presentes caros, materiais, exuberantes. Mas foi só um que chamou a atenção da menina.

Sobre a penteadeira um pequeno buquê com rosas amarelas, vermelhas e brancas. Uma fita branca decorava-o e um pequeno bilhete estava ao seu lado. Rapidamente ela pegou o bilhete e sentou-se pesadamente no banquinho.

Querida Aurélia,

Infelizmente não pude comparecer na sua festa. Ou melhor, nunca mais poderei comparecer na sua vida em geral. Sim, isso quer dizer que minha promessa de ser seu amante está acabada.

Não me leve a mal, por favor. A culpa não é minha. A questão é: algo grande aconteceu.

Meu pai morreu de overdose e minha mãe foi presa pelos roubos. Estou morando com minha família materna agora, no Sul de Minas.

Descrevi com palavras tão simples algo que está me matando por dentro. Acredite, querida, estou sofrendo. Acho que não sei como descrever, ao certo. Por isso ficará tão vago assim.

Te amo, acredite. Espero que seja feliz nesse casamento. E, mais uma vez, me perdoe. Nem tudo está no nosso controle. Mas acho que você já sabe disso, certo?

 

Amorosamente, seu amigo, amante e confidente.

P.S.: Um dia, se o Destino quiser, vamos nos encontrar e nos amar.

Nem se esse encontro for acontecer nas estrelas. Espero que tenha fé assim como eu tenho.

P.S²: Espero que tenhas gostados das flores.

P.S³: Esqueci de desejar-lhe feliz aniversário. Então vamos lá, feliz aniversário e lembre-se: NÃO CHORE, NÃO CHORE, NÃO CHORE :)

 

Ela tentou, mas as lágrimas ousaram cair, cair e cair.

Δ•Δ

Setembro, 1994.

No reflexo podia se ver alguém no auge dos seus vinte e oito anos. Uma faculdade completada, um pequeno apartamento para pagar, um carro seminovo e um amor para recordar. Amor o qual ela se casaria.

Parecia uma utopia, algo longe de ser verdade. E, de fato, era.

Ela não tinha vinte e oito anos, tinha dezesseis. Não conseguiu completar o ensino médio, quem dirá a faculdade? Morava com os pais, não tinha idade para tirar a carta e o único amor que teve voou para longe.

Olhando no reflexo ela viu tudo o que não era, tudo o que queria ser um dia. Não agora. Não tão rápido. Num futuro nem tão distante nem tão longe, apenas num futuro.

Ela via uma bela, mas infeliz, noiva. Via luxo e dinheiro. Sim, principalmente dinheiro. Afinal tudo o que estava sendo construído ali era por causa dele. Via um futuro frio, baseado por negócios e não amor. Via tudo o que ela não era, tudo o que não queria ser.

A porta se abriu e um senhor calvo e magricelo entrou. Aurélia, sem desviar os olhos do espelho, abriu um pequeno sorriso e o cumprimentou com um movimento sutil na cabeça.

— Olá, noivinha mais linda do papai. Olha o que eu trouxe. — Ele disse, escancarando um sorriso.

Colocou uma caixa vermelha que carregava sobre a cama, abriu-a e, de lá, tirou um véu. Na outra mão trazia um buquê com rosas amarelas, vermelhas e brancas, assim como ela solicitou.

— Posso? — Ele perguntou, se aproximando dela com o véu numa mão e o buquê noutra.

— Se você souber. — Respondeu num tom de riso, pegando o buquê.

Ao terminar ele examinou-a minuciosamente com lágrimas nos olhos.

 — Pensei que demoraria mais, mas olhe só! Minha garotinha já vai se casar.

Ela engoliu em seco.

— A partir do momento que se entrega alguém para casar é meio irônico chama-la de garotinha, não acha? — Disse, virando-se para ele.

— Como?

— Isso mesmo pai. Vocês estão me entregando, como se eu fosse um presente perfeito. Já estou embrulhada com esse vestido, vou para a cerimônia para me entregarem. Sabe, me pergunto se Ernesto também concorda com essa palhaçada ou se ele é só mais uma vítima da ganância de vocês. — Ela caminhou até a cama, sentando pesadamente nela.

— O vestido vai amassar, garota. — Repreendeu-a nervoso.

— Tô nem aí para o vestido, eu quero que você me ouça um pouco.

— Foram cinco mil reais gastos nesse merda, tenha cuidado pelo menos! — Exigiu abandonando a face de senhor bonzinho e mostrando o que verdadeiramente era.

— Viu? Vocês só falam em dinheiro, dinheiro e dinheiro! Isso cansa, falou? — Gritou no mesmo tom, levando-se rapidamente e ficando frente a frente com ele. — Eu tenho dezesseis anos e nunca tivemos uma conversa descente, já notou? Tu sempre me abandonava para tratar de negócios. Quero saber se o dinheiro mudou alguma coisa para melhor em você. Se houve uma evolução espiritual ou se você está mais feliz. Você era mais feliz quando era pobre ou agora?

Ele engoliu em seco, virando-se em direção a porta.

— Me responde, por favor. Eu preciso saber. — Choramingou segurando seu pulso.

— Não, eu não melhorei. Na realidade só piorei. — Respondeu após um momento em silêncio. — Feliz?

— Então por que querem me prender nesse mundo de infelicidade? Por que não me deixam ser feliz?

Dessa vez ele se soltou e saiu do quarto, deixando apenas uma fala no ar.

— Vou chamar as empregadas para arrumarem a bagunça que tu fez em si mesma.

Δ•Δ

Junho de 1996.

A enfermeira andava pelo corredor iluminado e vazio com passos apressados. Nos braços um bebê recém-nascido estava coberto por uma manta azul-bebê, indicando que um menino havia nascido. Aos poucos ela foi diminuindo os passos, parando em frente a uma porta branca. Abriu a porta lentamente, espiando por dentro para ver se o senhor que se instalava no quarto dormia.

— Pode entrar, querida. — Murmurou abaixando a revista do cruzadinhas e abrindo um pequeno sorriso. — É ele? — Perguntou esticando o pescoço afim de ver a face do bebê.

— É sim. Quer segurar?

— Óbvio! — Exclamou animado, pegando o bebê nos braços.

Lágrimas vieram aos olhos do senhor. Um neto! Tudo o que ele queria estava se realizando, agora podia partir em paz.

— E Ernesto? Como ele tá?

— Um poço de felicidade, mas, também, quem não ficaria? O filho nasceu saudável, bonito. Já chorou tanto hoje. — “Pena que o motivo não é só o filho”, pensou.

— E minha filha? — Perguntou desviando do rosto da criança. Quase não conversava mais com a loira, após a briga há dois anos. A culpa ainda se instalava nele, mas tentava superar.

— Ah... Ela está se recuperando. — Mentiu tentando manter o mais tranquilo sorriso. Não podia preocupar o paciente nas situações que se encontrava.

— Ótimo, espero que ela seja muito feliz. — Disse sorrindo. Deu um beijo na testa do recém-nascido e entregou a enfermeira delicadamente. — Agora posso partir em paz. Sei que meu amado neto nasceu, minha filha está em boas mãos e meu genro será um bom marido. — Completou, dando um sorriso triste.

— Credo, Dr. Raoni! — Exclamou espantada. — Você vai se livrar desse câncer, aqui é o melhor hospital de São Paulo, somos competentes.

Ele soltou uma risada fraca, balançando a cabeça em negativa.

— O homem não pode interferir no que Deus escolheu para nós, minha filha. Nada será mais forte do que o poder dEle, nem mesmo o melhor hospital do mundo. — Suspirou, pegando novamente a revista. — Leve-o de volta para os progenitores.

A enfermeira assentiu e partiu para a maternidade.

Sentado ao lado da mulher, Ernesto chorava. Segurava sua mão e sussurrava palavras de reconforto, palavras carinhos, palavras de amor.

— Seja forte, por favor, por favor. Nosso filho nasceu e não pode crescer sem uma mãe. Não pode. — Suspirou profundamente, secando a última lágrima que caía. — Por favor, acorde.

Três horas depois, Dr. Raoni D’Cruz veio a óbito.

Dois dias depois Aurélia acordou.

Um mês depois ela saiu do hospital.

Dois anos depois ela voltou, mas por causas bem distintas daquela.

Δ•Δ

Janeiro, 1998.

Cuidadosamente, Aurélia escolhia um livro. Não era porque ela tinha deixado de frequentar a escola que ela pararia de estudar. Na realidade, ela já havia ficado muito tempo parada, agora precisava voltar a antiga rotina.

A principal causa foi, com certeza, o tédio. Não aguentava mais ficar em casa o dia inteiro olhando as paredes. Ernesto tinha que cuidar da empresa. As babás faziam quase todo trabalho pesado em Marcos, ela só tinha que brincar com ele e quando se cansava mandava-o de volta para as funcionárias. A única que restava a ela era voltar a estudar, coisa a qual sempre gostou de fazer (mesmo que secretamente).

Com os livros em mãos, dirigiu-se até a mesa mais próxima. Espalhou os livros por toda sua extensão e lá mesmo começou a devora-los, um por um. Ao seu lado, mantinha um caderno e um pequeno estojo, para fazer as anotações necessárias. Ouviu alguém se aproximar, mas nem se esforçou para ver quem era.

 Até que ouviu a voz.

Ela era tão conhecida e natural para a menina que, de princípio, ela não estranhou. Até notar que era impossível. Rapidamente ergueu a cabeça, não acreditando no que via.

— Não pode ser... — Sussurrou, deixando a caneta cair no chão de madeira envernizada.

— Matemática, hein? Quem diria. — Richard falou pegando o livro que a menina lia. — Para mim você era Humanas, não Exatas.

— Richard! — Ela gritou, chamando a atenção das pessoas ao redor. — Como? Por quê? — Murmurou, boquiaberta.

— Quer tomar um soverte? Talvez lá tenhamos mais liberdade. — Convidou olhando ao redor, desconfortável.

Ela assentiu, arrumando os livros numa pilha. Devolveu-os para a bibliotecária e voltou para a companhia de Richard.

Richard.

Ele parecia ser mais um sonho. Um daqueles sonhos que ela sabia que nunca se realizaria, mas, de repente, lá estava ele. Realizado, verdadeiro. Ele havia crescido alguns muitos centímetros e sua cabeleira encurtara, mas ainda possuía aquele tom avermelhado e chamativo que Aurélia sempre cobiçou. Uma barba nem tão densa, mas nem tão rala fazia presença em seu rosto. 

Ela e seu sonho sentaram-se numa das mesas que tinha do lado de fora da sorveteria mais antiga e gostosa da cidade. Ambos com sorvetes em mãos. De princípio, o silêncio reinou, até ela quebra-lo de vez.

— Por que você voltou? Como tu sabia que eu estava lá na biblioteca? Você estava me seguindo? E, principalmente, você está bem lá? Como estão as coisas?  — Disparou, erguendo a sobrancelha direita minimamente.

— Eu vim aqui para matar as saudades, já que vai fazer cinco anos que não venho. Eu fui ver se a biblioteca ainda era a mesma e, tanã, te achei lá. E não, não estava te seguindo. Na realidade, nem sabia que tu ainda estava viva; não me respondeu é porque morreu. — Provocou com uma piscadela e um sorriso torto. Sorriso, o qual, os anos não mudaram

— Realmente, você deixou muitos contatos naquela carta. — Aurélia bufou, revirando os olhos. — Mas enfim, tá tudo bem por lá? — Perguntou preocupada. Colocou sua mão sobre a dele, sentindo o calor que emanava dele.

— Eu estou muito bem lá. Estou fazendo uma faculdade de História numa cidade lá perto e estou pensando em lecionar.

— História? Sério mesmo? — Ela revirou os olhos, retirando a mão subitamente. — Tem tanta faculdade melhor que História.

— Eu sei, mas eu gosto, sabe? Acho que, sei lá, eu nasci para isso. Sempre gostei, na realidade, mas só agora pude “explorar” esse mundo. — Defendeu-se, colocando um pouco de sorvete na boca. — Mas e você? Como você está?

Ela suspirou, colocando um mecha atrás da orelha. “Como eu estou?”, perguntou-se franzindo o cenho. Estava feliz ou triste? Bem ou mal? Mas, afinal, o que era a felicidade? O que era o bem? Ela estava feliz, mas não era como antes. Não era uma felicidade genuína. Era mais como algo sintético, que colocaram nela. “Isso seria felicidade? Será que no mundo que me encaixo agora a felicidade é isso?”

— Tenho vinte anos, estou casada há quatro anos, tenho um filho de um ano e dez meses. No dia que tive o meu filho, meu pai morreu e eu fiquei em coma. Não completei o ensino médio e estou tentando recompensar tudo agora, o que não faz sentido, mas tudo bem. Nada faz sentido, certo?

— Certo. — Ele sussurrou.

Δ•Δ

Junho, 1998

— Foi bom enquanto durou. — Ela murmurou entre lágrimas, se afastando de Richard num último abraço. — Mesmo longe você sempre será meu eterno amante. Sempre. — Deu um sorriso triste, erguendo-se nas pontas dos pés e dando um beijo em sua bochecha.

— Até logo? — Ele perguntou, puxando-a pela cintura e dando um beijo apaixonado. Daqueles de filmes que tem um final feliz. Mas aquilo não era um filme e eles, pobres mortais, foram destinados a chorar, sofrer, sangrar e, finalmente, morrer por amor.

— Até. — Sussurrou, empurrando-o para a direção do ônibus. Um sorriso bobo estava em seu rosto.

Ele se afastou aos poucos, assoprou um beijo para ela e apressou o passo.

Se eles soubessem que aquela seria a última vez que se veriam teriam aproveitado o ultimo momento.

Δ•Δ

Julho, 1998. Uma semana depois.

Sentada no sofá de sua casa, ela encarava o resultado com lágrimas nos olhos. Enquanto fitava o papel se lembrou da cena de semana passada, parecia tão distante, mas tão real... Por um momento pode sentir o cheiro amadeirado que emanava de suas camisetas ou então sentir a textura da bárbara roçando em seu rosto. Mas então acordou e lembrou-se que o mundo não era o mar de rosas. Nunca seria.

Suspirou e se ergueu, indo em direção ao escritório. Bateu na porta três vezes e aguardou, apreensiva.

— Entre. — Ouviu-se uma voz lá de dentro. E foi o que ela fez. — Aurélia? — Ernesto perguntou, franzindo a testa.

Ela não se estranhou a surpresa, afinal quase nunca entrava no escritório do mesmo.

— Sente-se, por favor.

 Convidou, apontando para uma das cadeiras de couro na sua frente. Aurélia puxou a cadeira e se sentou. Assim os tremores em sua perna iriam diminuir.

— Está tudo bem? Você está... pálida.

— Ernesto, eu estou grávida. — Anunciou, séria. Não estava afim de enrolações, queria que tudo acabasse rapidamente.

O rosto do moreno iluminou-se, ele abriu o mesmo sorriso de dois anos atrás. Rapidamente se ergueu e ficou frente a frente com ela, apoiando a mão em seu ventre.

— Isso é maravilhoso, Aurélia! Uma companhia para nosso primogênito. Temos que organizar o quarto de hospedes, ir ao hospital...

— E o filho não é seu.

Ernesto calou-se. O brilho sumiu. O sorriso se fechou. Aos tropeços ele se afastou. Sua respiração estava pesada.

— Com quem foi? — Perguntou baixinho, trancando a porta do escritório que estava entreaberta.

— Richard.

— Seu ex melhor amigo?

— Sim.

Ele assentiu. Andava em círculos. Seus mãos tremiam. Seus olhos estavam fechados. E então ele parou em frente a parede. Seus olhos se abriram e suas mãos se fecharam num punho. Foram em direção a parede verde musgo uma, duas, três... Incontáveis vezes. As lágrimas começaram a escorrer quentes no rosto de ambos. Aurélia, medrosa com era, andou em direção da porta. Mas ele a impediu.

Pegou seu cabelo e a jogou em direção a parede. Ela ergueu a cabeça, em vão, já que, com um tapa, ele obrigou-a a abaixa-la novamente. Chutou sua costela diversas vezes, socou seu rosto até que o sangue começasse a sair. A brisa suave se revelou uma indomável ventania. A tempestade tornou-se uma garoa quase imperceptível em meio ao todo caos que ele fazia. Os papéis sempre se invertiam uma vez ou outra.

— Eu te amei, Aurélia e você me traiu. Me fale o que falta? Você tem tudo. Tudo. — Falou abaixando-se para examinar o rosto dela. Sangue e inchaço se misturavam.

— Faltou eu amar você. — Ela sussurrou, entre gemidos de dor.

Ernesto largou o rosto dela com violência, fazendo bater no chão com uma força impressionante. Ela soltou um outro gemido de dor, se contorcendo.

— Você vai abortar, não vou cuidar de uma criança que não veio de mim. — Anunciou erguendo-se. Andou em direção a mesa de madeira e pegando o telefone.

Ao ouvir tais palavras, ela encontrou forças onde não havia. Ergueu o corpo e se levantou, apoiando o corpo na parede.

— Você não pode fazer isso.

— Se eu fizer o que você vai fazer? Chorar? — Perguntou com desdém.

— Vou embora e levarei Marcos comigo.

Ernesto riu. Uma risada fria, vazia.

— E para você vai? Para sua casa? Sua mãe iria te chutar. Para a casa do amante? Mas com que dinheiro? Você depende de mim para tudo, Aurélia. Sendo assim, quem dita as regras aqui sou eu. Você me pertence.

Sem forças, ela caiu no chão. Viu o mundo escurecer e a escuridão acolhê-la como uma mãe protetora e carinhosa. A mãe que nunca teve.

A primeira coisa que ela viu foi a luz. Ela ardia seus olhos, mas aquilo não a incomodou. Não muito, pelo menos. Depois se lembrou de tudo. Desde do momento na biblioteca até a escuridão chegar. Logo pensou que havia morrido. Mas o som de passos fez ela ter certeza que seu sonho não se realizou.

— Ela acordou. — Uma voz feminina disse. No seu campo de visão uma mulher loira apareceu, um sorriso tímido enfeitava seus lábios pintados de rosa claro. — Consegue falar alguma coisa, querida?

— Meu... filho. — Murmurou com dificuldade. Sua boca estava dormente e sentia um gosto ruim vindo dela.

— Ah, seu filho... — Ela engoliu em seco. Não era idiota, sabia de qual filho ela estava falando, mas mesmo assim fingiu que nada sabia. — Ele ficou em casa, seu marido achou melhor ele não vir.

Seu marido. Com essas palavras ela tremeu, se lembrando de cada dor, do sangue escorrendo.

— Não. Por favor. Eu... Não quero.

Sentiu uma agulha perfurar seu tecido. A droga entrar e se misturar ao sangue. Adormeceu.

O dinheiro tudo podia. Podia comprar o silencio de um hospital famoso e fazer com que eles realizassem um aborto.

O dinheiro tudo podia. E Ernesto provou isso tirando o filho daquele que ela amava dos cuidados dela.

O dinheiro tudo podia. E foi ele que conseguiu destruir a menina inúmeras vezes seguidas.

Δ•Δ

Outubro, 2000.

O Sol estava se pondo atrás do extenso jardim de sua antiga casa. Ela soltou a fumaça aos poucos, deu um gole na whisky e voltou a tragar o cigarro. Sua mãe a encarava, censurando seus atos.

— Você está carregando uma criança, uma neta minha, no ventre. Pare de fazer essas coisas, vai matá-la.

Aurélia deu de ombros, soltando a fumaça novamente.

— É dele essa cria. Ele tirou a de Richard, quero tirar a dele. Simples.

— Mas você o traiu, você mereceu...

Aurélia negou, depositando o cigarro no cinzeiro.

— Sabe, mãe, eu tenho vinte e dois anos. Sou casada há seis por alguém que antes não nutria sentimento algum a não ser o da amizade, agora o odeio. Tenho um filho que é a única coisa que eu verdadeiramente gostei nessa relação, fui espancada por não amar meu marido e por engravidar de alguém que eu amo. Estou gravida e odeio com todas minhas forças essa criança, porque eu não queria ela. Não que eu quisesse a primeira, mas essa daqui eu realmente não quero. Essa sim eu quis abortar, mas, adivinha, ele não deixou. — Ela deu um gole no whisky, pegando o cigarro e tragando-o. — Ele vive jogando na minha cara que eu dependo dele para tudo, o que não é mentira. Agora você sabe por que vivo esse inferno? — Ela perguntou, colocando os óculos escuros no topo da cabeça.

Sua mãe ficou em silêncio, com a cabeça baixa. O que a fez rir.

— Você é ridícula, Dona Juliana. Ridícula. — Disse dando um último gole na bebida — Agora, se sente mais feliz? A empresa está prosperado, somos ricos. Não era isso que você e o falecido queriam?

Ela continuou em silêncio e com os olhos baixos. Algumas lágrimas começaram a escorrer. Mas a menina não ligou.

— Não foi minha intenção. Desculpa. Por favor.

— Você está triste?  

Juliana simplesmente assentiu. O corpo chacoalhou com um soluço. Aurélia abaixou-se para observar as lágrimas de sua mãe com mais atenção, aproximou-se do seu ouvido e sussurrou.

— Eu não ligo a mínima, minha querida.

Ergueu-se, colocou o óculos novamente no rosto e saiu para nunca mais voltar.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Ficou grande, né? Maior capítulo que escrevo na minha vida kjdkdoçofokqdwq estou emocionada c':

Gostaram ou não? Tem algo a melhorar? E as músicas, escutaram? Quero sabeeeeeeeeeeeeeeeeeeer ♥ ♥ ♥



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Casa de Bonecas" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.