Dança da Extinção escrita por yumesangai


Capítulo 3
No palco da vida o papel principal é a Morte


Notas iniciais do capítulo

Trigger: #Sekai



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/690945/chapter/3

 

Sehun não se considerava um entendedor de arte, ele apreciava e sabia apreciar, mas não era algo que estava em seu sangue.

Talvez tenha sido destino que o tivesse feito decidir entrar no teatro, de tantos prédios e escombros pela cidade, ele acabou seguindo para o que considerava menos óbvio, mas teatros têm cantina, cozinha, bombonière, talvez ninguém tivesse pensado nisso, talvez as pessoas enxergassem apenas o palco, cadeiras e cortinas quando tentassem visualizar um teatro.

As portas duplas da entrada principal estavam trancadas com um cadeado, mas uma das portas estava com o pino quebrado na dobradiça, com dois chutes Sehun conseguiu uma passagem improvisada. O lugar não estava completamente destruído ou saqueado, mas os corredores estavam escuros, mas tudo bem, ele tinha uma lanterna.

Nunca use uma lanterna apontada para frente ou você só ilumina um ponto específico, lanternas tem que ser direcionadas para cima e elas iluminam muito mais do ambiente. Luhan havia o ensinado, como muitas outras coisas, era ele quem o mantinha vivo.

Se Sehun estava vivo até agora era por causa dele

Todas as portas estavam fechadas com corrente e cadeado, Sehun já havia contado umas cinco portas naquele estado, costumava ser um aviso do que quer que estivesse lá dentro deveria continuar lá dentro.

Sehun não era um tolo. Só porque costumava significar não fazia disso uma regra, também poderia ser um depósito, de armas ou comida e um teatro não é um lugar óbvio e não ter criaturas se chocando e grunhindo contra a porta também era um bom sinal.

Curiosamente a última porta estava com a corrente, mas o cadeado não estava fechado. Aproveita a sorte que o destino lhe dá ou a tolice de outro. Ele abre a porta e se depara como uma cena que o acompanharia pelo resto da vida.

Era arte. Era morte. Era a junção de tudo de errado nesse mundo com a mais pura arte.

No palco principal um ator, um dançarino, uma pessoa, um sobrevivente. Ele dançava, seus pés eram como plumas, ele caia com maestria sobre o palco, seu corpo se movia como se fosse feito de vento, seu tronco tombava para qualquer direção em qualquer grau sem apresentar dificuldade. Suas mãos estavam fechadas numa adaga banhada em sangue.

Criaturas errantes subiam ao palco aos poucos, uma tentando subir sobre a outra, as que conseguiam iam com seus braços esticados na direção dele. E ele dançava, não havia música, mas não precisava.

As vezes era balé. As vezes era qualquer outra coisa. Ele girava e seus braços com precisão acertavam próximo das têmporas dos caminhantes. Eles se arrastavam, dois, três, cinco, seis na direção do garoto. Ele conseguia se jogar no chão e os eliminando nessa dança lenta.

Seus pés se movem e curiosamente o palco não estala, nenhuma vez.

Deveria ser belo ou poético, mas desde que o mundo deixou de ser mundo que Sehun não aprecia mais as coisas belas. Embora ele não fosse admitir que ficou parado por um tempo considerável o vendo dançar, ele se move como água, rodopia pelo ar enquanto acerta precisamente uma adaga no crânio de mais um errante.

Sehun para de apreciar o que estava sobre o palco quando mais cinco conseguem passagem pela pequena escada na lateral.

Ele ainda dançava com mais quatro. Era um pouco demais, mesmo para um palco tão grande.

— Hey! — Ele berra. Sobe numa cadeira de couro vermelho e sacode os braços. A mochila é largada embaixo de um dos bancos.

O montante que estava tentando subir ou que estava perdido frente ao palco começa a caminhar em sua direção, por várias direções e por várias passagens, mas Sehun também sabia dançar.

Ele pulava entre as cadeiras e fileiras, no momento sua melhor arma era um taco de beisebol, mas ele dava conta.

Três, seis, um agarra seu pé e ele cai.

Chutou a primeira criatura nojenta que caiu em sua direção e rolou para baixo dos bancos.

Mal havia conseguido se pôr de pé novamente e uma mão em putrefação o agarra pelo cadarço da bota, ele foi tropeçando e tentando chutar a criatura, mas as mãos derretidas eram feitas de chiclete?! Ele não soltava e os outros estavam o cercando.

As criaturas estavam perto demais para sacudir o taco de beisebol. Ele larga o taco na cara de um deles e puxa a arma do coldre preso na coxa e dispara três tiros nos mais próximos, roda a arma entre os dedos de volta ao coldre e puxa uma faca que acerta bem próximo do pé, acertando a mão nojenta, a criatura ganiu. E ele consegue sair daquele cerco.

Foi tomando um pouco de distância que percebeu que o garoto do palco havia parado, ele parecia ao mesmo tempo impressionado e indignado. Ele salta do palco, seus movimentos são rápidos, ele não comete o mesmo erro de Sehun em subir nos bancos.

Como se chama? Plié? Ele afunda a adaga no crânio de um, enfiou o pé no peito do errante que grunhiu mais alto e puxou o cabo prateado. E ele gira num pé só e acerta outra criatura que batia os dentes de forma estalada.

Era um objeto real e parecia pesado. Sehun se distraiu, com o objeto, com a habilidade dele, mas principalmente com ele.

Seu olho esquerdo estava pintado de vermelho sangue, seu cabelo era algo entre o prateado e o branco e a cor não estava desbotada, a luminosidade não era perfeita, as luzes de emergência estavam acessas e o palco estava ligeiramente iluminado, não era como um cinema.

— Droga.

Quatro mãos se fecharam sobre o taco de beisebol, Sehun tentou puxar, mas não funcionou. O jeito foi largar sua arma com eles. Pegou novamente a faca do bolso e acertou o primeiro que apareceu, mas um segundo o segurou pelo calcanhar, era um caído no chão com a cabeça estourada e o maxilar fora do lugar, ele tentava morder, mas não tinha dentes, a boca deslocada tentava se fechar em seu pé, mas Sehun estava usando um coturno, a criatura estava apenas banhando o couro preto em pele e sangue, mas ele não tinha mais tempo a perder.

A faca era de curto alcance e as criaturas estavam muito perto, os braços erguidos com suas unhas descolando e pele decomposta também não era convidativo. Muito menos o rangido de fome que eles emitiam.

Mas ele estava pensando muito. Seus pensamentos estavam lentos. O ambiente era grande e todo dividido com fileiras de cadeiras, eram dois contra... cinquenta? Quarenta? Por que eles não tinham começado a correr ainda?

Não era uma questão de orgulho. Não mesmo. Sehun preservava a vida acima da estupidez humana, ele não tinha nada a provar.

Não para ninguém. Nem para ele mesmo.

Mas havia um dançarino no palco antes dele chegar, um garoto com movimentos majestosos, talvez um profissional, dançando para uma plateia sem vida.

Uma mão em seu braço. Outra em seu ombro. Uma boca aberta na direção de seu rosto. E em segundos sangue respinga em seu rosto, a criatura cai em seus pés, o barulho do disparo veio do palco, o garoto acena com um sorriso.

Sehun tirou a arma do coldre e dispara nos dos mais próximos e em seguida recarrega com o pente que estava na bota. Menos três, quatro... sete... doze... quinze.

Ele não gostava de desperdiçar munição, não quando era possível se livrar deles com uma faca, mas ele estava sem paciência e com sangue e miolos escorrendo pelo cabelo.

Mais criaturas voltaram a subir no palco. O garoto continuou rindo, ele usava as poças de sangue no palco para escorregar e se esquivar.

Sehun estava cansado e sem paciência, ele recarregou a arma e disparou nos errantes que ficaram para trás, o último estava sobre o palco.

 O dançarino estava para acertá-lo, mas Sehun finaliza com um disparo.

Talvez fosse vingança, pois o impacto faz sangue jorrar em seu rosto. Agora eles estavam iguais, banhados pela mesma chuva.

O garoto aplaude e desce do palco, até a altura do calcanhar estava banhado em vermelho, ele parecia não se importar. Esfregou os pés no carpete macio como se estivesse tirando a poeira.

— Não que eu não esteja agradecido nem nada, mas eles eram a minha plateia.

A voz era rouca, fosse o cansaço ou fosse uma naturalidade ou talvez fosse um sinal que Sehun estivesse negligenciando a companhia de seres humanos há muito tempo. Talvez estivesse esquecendo como outra pessoa soava.

— Você estava dançando com mortos vivos.

E talvez a constatação fosse óbvia demais.

— E daí?

E era. Sehun percebe que de fato não se importa e apenas dá de ombros. O mundo não era mais mundo, aparentemente alguns dançavam com os mortos. Era a dança da extinção, deles ou de si próprio.

— Como entrou? As portas estavam trancadas.

— Eu destranquei. – Mentiu.

— Obviamente. Por quê?

Seu tom era suspeito assim como a situação, talvez Sehun devesse ter pensado melhor a respeito, por que ele estaria preso num salão com mais de cinquenta errantes?

— Um cadeado não estava fechado.

A mais pura e simples verdade.

— Era pra ser uma armadilha, já pensou nisso?

— Não.

E de fato não havia. Sehun não era um justiceiro, esse era justamente o tipo de situação que ele evitava, confrontos e pessoas.

Quando o cadeado foi fechado os dois caíram sentados no chão de tapete vermelho do corredor do teatro, cada um numa parede, o garoto o observava com um sorriso. Sehun não era de desviar olhares, isso não o incomodava, no entanto, agora que tinha algum tempo ou todo o tempo do mundo...

— O que aconteceu com o seu olho?

O direito era castanho, o esquerdo estava pintado de vermelho, possivelmente algo havia estourado.

— Acidente.

Não era uma resposta satisfatória, mas não importava.

Sehun se levanta, ainda cansado, com menos munição e não havia conseguido comida.  Alguns dias eram simplesmente uma perda de tempo.

— Você não precisa de companhia?

A voz do garoto soou próxima, mas ele não havia se levantado. O tapete era confortável e agora seus pés estavam doendo.

— Não.

— Isso foi rápido. – Ele ri como se fossem próximos e como se estivesse ofendido com a rejeição.

Sehun o encara como se esperasse que o garoto fosse se levantar os obrigando a alguma luta inútil, em busca de comida que nenhum deles possuía. O garoto o encarou de volta, com um sorriso desafiador, mas estava unicamente brincando de quem iria piscar primeiro.

Ele perde.

Com o resultado da disputa que só ele sabia que estava competindo, se sentiu na obrigação de compartilhar algo. Embora seu inconsciente o avisasse que já estava em débito, por ter sido salvo e tudo mais.

— Você sabe como teatros funcionam?

— No que isso é relevante?

— Geradores. – Aponta para cima.

Os corredores estavam com as luzes acessas, não havia grandes janelas, não havia janelas naquele corredor, em qualquer outra situação isso seria um breu. Não faria diferença se o sol estava a pino ou se era meia noite.

Sehun arqueou a sobrancelha, ligeiramente curioso. Ok, luz, mas não era como se ele já não estivesse completamente acostumado a trabalhar com a falta dela, embora era sempre bem-vindo enxergar o ambiente.

— Chuveiros. Água quente.

Sehun não era patético. Ele não abriu a boca e ficou em estado de choque. Água quente estava em extinção.

Quando o garoto se levanta, ele foi obrigado a segui-lo, ninguém em sã consciência diz onde está a fonte da juventude e vira as costas sozinho.

— Como você disse que se chamava?

— Eu não disse. – Ele ri. – Mas pode me chamar de Kai.

— Sehun.

Eles apertam as mãos enquanto andam, é tão desconfortável quanto parece.

— Esse é o seu verdadeiro nome? - Porque Kai não soa como um nome muito convincente e mesmo com a falta de hierarquia, Sehun não era louco de dizer exatamente o que pensava.

— Estamos vivendo no P.A., isso importa?

— Acho que não. P.A.? Pós Apocalipse?

— Você entende rápido. Mas você pode escolher qualquer nome, quer continuar sendo Sehun?

Era uma pergunta séria, mas quantas pessoas iriam refletir de fato sobre isso?

— É a única coisa que ainda me pertence, eu não tenho mais nada além de um nome. E por que Kai? É um nome artístico?

— Acho que sim, faz parte de mim há muitos anos.

— O que tinha de errado com o seu nome?

— Nada, mas não era eu.

Eles ficam em silêncio. Algo confortável, algo que os dois estavam acostumados.

— Não faz sentido, não é?

— Nada disso faz.

Kai empurra uma porta de acesso restrito a funcionários e eles seguem por um corredor, sala anexas estão vazias e com portas fechadas, parecem pequenas, provavelmente camarins ou depósitos. Sehun conta pelo menos sete ao longo do percurso.

O vestiário é grande, os armários estão todos abertos, visivelmente arrombados. Um pé de cabra está ocupando um dos bancos de madeira.

— Shampoo, Condicionador, desodorante, paste de dente, escova de dente, pente, toalhas, meias, sapatos e mudas de roupa, pode escolher algo.

Sehun dá uma olhada mais curiosa no conteúdo, era a primeira vez que ele tinha uma opção de escolha, não que nunca tivesse dado a sorte de parar numa farmácia não devastada ou numa casa com armários cheios, mas ele simplesmente havia parado de se importar. Mas não antes, não com Luhan.

— Achei um de blueberry, já viu isso antes? – Ele jogou a embalagem azul. —  Acho que combina com você.

— Qualquer um iria servir.

— Claro que não!

— E você, Hyung?

— Mel. Do jeito que andamos pelo sol vou conseguir mechas naturais, quem diria.

Sehun pega o primeiro shampoo e condicionador que vê pela frente. Puxa uma toalha que estava pendurada numa porta. Kai estava no quinto chuveiro, Sehun decide ficar no da frente ao lado oposto.

A água caia quente. Realmente quente, Sehun se enfiou embaixo d’água e nunca mais quis sair.

Foram pelo menos mais cinco minutos até perceber que o barulho do outro chuveiro tinha parado.

— Hey.

Sehun salta e quase bate com a cabeça no azulejo.

— Que diabos? – Virou o pescoço apenas para encontrar Kai dentro do espaço.

Do pequeno espaço.

— Você meio que me salvou lá.

— É? De nada.

— Eu quero retribuir o favor.

— Tenho certeza que aparecerão outras oportunidades.

— O mundo está um caos e você tem vergonha disso?

Sehun gira os olhos, era uma questão de bom senso e princípios ou simplesmente de não confiar em estranhos, mas ele não queria vocalizar isso pra pessoa que havia o levado para um lugar com água quente.

Talvez ele estivesse em débito com Kai ou talvez eles estivessem pagando tudo agora.

— O que você quer? – Pergunta cruzando os braços e saindo debaixo da ducha quente.

— Vamos economizar água. - Kai sorri, um de seus sorrisos largos. Um sorriso de alguém que não tinha uma única fibra de vergonha. Talvez isso o fizesse tão... diferente, além do cabelo e do olho.

Sehun queria perguntar sobre isso, talvez ele devesse perguntar.

Kai se aproxima alguns passos, não precisa de muito para que eles ficassem desconfortavelmente próximos e então ele cai de joelhos. O sorriso se transforma como se ele estivesse com vergonha, embora fosse uma mentira óbvia, ele era bom nisso, em fingir ser algo que não era.

Oh.

Oh.

Sehun fecha os olhos, ele escuta a risada de Kai, não, ele não iria abrir os olhos. Não iria se permitir ver refletido ou fazendo parte daquela insanidade. Ele também não queria pensar.

Sua nuca bate contra o azulejo e ele não se importa. Seus dedos se fecham nos fios prateados com mais força do que pretendia. Kai não se importa.

Se isso era retribuição então ele não iria negar, o mundo já havia o exaurido demais e ele estava cansado.

Eles não economizaram água.

***

No final o teatro era mesmo um bom esconderijo, a cozinha ainda tinha um estoque de enlatados e era a melhor refeição que Sehun teve em duas semanas. O alojamento tinha um sistema de segurança com cartão de acesso.

Kai insistiu que eles fizessem pedra, papel e tesoura para saber quem iria dormir na cama de cima do beliche.

Kai perdeu, aparentemente ele não era bom com apostas.

O sono era involuntário, era a primeira vez depois de uma quantidade de tempo incontável que poderia dormir bem e seguro.

— Você tem esse falso bravado no rosto. Quão ruim esse novo mundo foi com você?

A voz de Kai soou abafada, a pergunta era aleatória, sono ou estava com o rosto contra o travesseiro, Sehun já havia aceitado que ele era alguém que não se media, para se portar ou para falar. Ele agia como se não devesse nada ao mundo.

— Eu não falo sobre isso.

Ele não queria soar amargo ou quebrado, mas um buraco vazio quando cheio de ar não está completo.

— Desse jeito então, tudo bem, nós não falamos sobre isso.

Seu tom era compassivo, mas o da maioria das pessoas era. Não dava para ter certeza se ‘nós’ era Kai e qualquer que fosse seu verdadeiro nome, como uma dupla personalidade ou se era sobre eles. De qualquer forma, não importava.

Ele fechou os olhos e dormiu.

Sehun não se importava.

Mas ele iria.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Dança da Extinção" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.