A Criação da Luz escrita por André Tornado


Capítulo 24
A diferença de uma escolha


Notas iniciais do capítulo

"Até na aliança mais honesta se projecta a sombra sinistra da cumplicidade, sabia-o agora por experiência directa."
in Desesperadamente Giulia, Modignani, S. C., Edições Asa, 2004



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O soldado Frint nunca teve qualquer dúvida em relação à sua vocação. Filho, e neto de soldados, o seu destino residiu sempre entre as fileiras de um exército. A estrita disciplina militar fora presença assídua na sua educação desde tenra idade e não se acanhava perante a exigência, o sacrifício e a solidão. Nem se deixava abater pela possibilidade de ter de enfrentar longos momentos de pura monotonia a par de outros de curta e crua exaltação. Fazia tudo parte daquilo que ele nascera para ser e não via qualquer lógica em contrariar a sua natureza. Por isso, foi com muita mágoa que assistiu ao fim do Império Galáctico quando estava no último ano da Academia.

As turmas de cadetes foram desfeitas com a promessa de que eventualmente seriam chamados para ingressar nas fileiras do exército que a Nova República iria criar para defender a paz recentemente adquirida, mas Frint decidiu desistir. Não acreditava numa organização política onde a vontade dos seus líderes não se impunha pela força, onde não se supunha o apoio de um corpo militar devidamente equipado, empossado de autoridade, autorizado a agir segundo a sua própria conduta, liderado por oficiais competentes, leais e ambiciosos. A sua vida tornou-se vazia de propósito.

A atitude do pai também não o ajudou. O velho manteve-se fiel ao Imperador, nunca reconheceu a derrota e acabou por se suicidar na prisão. Falaram em honra nas cerimónias fúnebres, mas Frint sentiu-se ainda mais amargo, desamparado e perdido. Fechou-se em casa e durante algum tempo pensou seriamente em seguir o caminho honrado do pai.

Para se distrair da sua existência miserável, envolveu-se com um grupo de delinquentes que se dedicava a roubar mercadorias das caravanas comerciais que tinham recentemente sido reorganizadas. Quando se deparavam com resistência, também roubavam vidas e foi nesse ambiente caótico e competitivo, entre bandidos, assassinos e desiludidos, que Frint matou pela primeira vez. Homenagearam-no numa cerimónia e ele sentiu que recuperava, ainda que de uma forma enviesada, os rituais magníficos dos guerreiros.

Acabava de ganhar companheiros que, se fizesse um pequeno exercício fantasioso, conseguiam compreendê-lo. Não havia o mesmo grau de camaradagem e de cumplicidade da Academia, mas a tosca substituição servia. E foram esses companheiros que lhe mudaram a vida, uma segunda vez, durante uma conversa numa cantina mal frequentada em Guineash, enquanto se embebedavam com a cerveja local.

— Ouvi dizer que alguém anda a recrutar antigos militares que serviram no Império Galáctico.

— Tretas! – rugiu alguém. – Isso não passa de uma armadilha da Nova República para apanhar os oficiais que lhes escaparam.

— Não, quem me contou sabe destas coisas… secretas. A Nova República não está metida nisto, de certeza.

— Diz o nome do infeliz que anda a dizer essas asneiras!

— Estás interessado?

— Esse cobarde seria incapaz de arriscar o pescoço por tão pouco. Eu estou interessado! – afirmou Frint cheio de bravata, mas com o coração gelado. Não sentira qualquer emoção ao fazer-se voluntário. Estava embriagado, cansado, sobretudo farto da inutilidade de tudo o que o rodeava.

— Estás interessado? Não estou a brincar, isto é a sério.

— Eu também estou a falar a sério – replicou Frint arrastando as palavras, o que não ajudou a emprestar credibilidade à sua determinação.

Recordou-se da Academia, dos rapazes que o acompanhavam nos treinos duros e nos estudos intensivos, com quem discutia os ideais de grandeza do Império e soltou uma gargalhada. Não se lembrava do nome de nenhum deles. Nem dos rostos. Eram todos iguais. Imberbes, anónimos, bem aprumados no seu fardamento.

O outro entendeu a risada como troça e remeteu-se ao silêncio.

Afastaram-se como costumavam fazer depois de concluído mais um trabalho, deixaram Guineash, Frint regressou a casa e esqueceu o assunto. Quando se voltaram a encontrar no setor de Thuris, antes de seguirem as indicações do plano do chefe para um assalto a uma caravana especialmente carregada de riquezas, conforme a dica que haviam seguido, Frint abordou o companheiro.

— Lembras-te do tal boato que dizia que andavam a recrutar antigos militares imperiais?

— Não era um boato.

— Continuo interessado.

Sem os vapores da cerveja, a sua convicção parecia sincera e o outro analisou-o demoradamente, de olhos inchados semicerrados. Estalou a língua e disse, encolhendo os ombros:

— Quando regressarmos.

Frint deteve-o, agarrando-lhe um dos quatro braços.

— Não. Agora. Diz-me com quem devo falar.

— Porquê? Estás a pensar desertar? Logo hoje, que o trabalhinho será mais difícil do que o habitual?

— Nunca desisto, amigo! Certamente que não o farei quando posso ficar rico no final do dia. – Insistiu, apertando o braço do companheiro com força: – Com quem devo falar?

O outro tornou a estalar a língua. Não acusou a dor do garrote no braço. Ou fingia, ou não tinha qualquer sensibilidade naquele membro fibroso. Frint começou a irritar-se quando ouviu o que queria saber:

— No sistema de Benexa. Procura pelos unthu.

O assalto à caravana correu mal e Frint escapuliu-se antes de acabar massacrado como o chefe, a sua guarda pessoal e um punhado de ambiciosos que se deixaram encurralar pelas milícias que protegiam as inexistentes riquezas expedidas para o rei local. Um dos mortos foi a criatura que lhe contou sobre o misterioso recrutamento e Frint acreditou que a sorte estava do seu lado. Sobrevivera ao ataque e conseguira a informação que o levaria para outras paragens, assim esperava.

Antes de regressar a casa passou pelo sistema de Benexa e encontrou a tribo dos unthu, escravizada por uma estranha comissão militar composta por cinco comandantes que haviam servido diretamente o Imperador Palpatine. Tinham um aspeto deplorável, com longas barbas, longos cabelos, fardas coçadas, unhas sujas, mas o seu discurso era espantosamente assertivo e falavam com veemência de O’Sen Kram, que apelidavam de legítimo herdeiro do Império Galáctico. Não foram as palavras daqueles patéticos oficiais que convenceram Frint a alistar-se nesse desígnio clandestino, mas a firme ambição de lhes devolver a dignidade – que acabaria por se estender a si próprio. Já não era digno, não passava de uma sombra ridícula do que tinha nascido para ser, considerava amargurado.

Nunca chegou a regressar a casa. Aceitou a imposição de guardar segredo sobre aquele encontro com a comissão e o imediato despacho para um planeta menor para se reunir a outros numa espécie de recruta. De qualquer modo, Frint não sentia que tinha uma especial obrigação de se despedir do lar ou de algum membro da sua família, com quem ele, de resto, já tinha quebrado todos os elos de afinidade.

Passou tempos difíceis nos sistemas esquecidos da Orla Exterior. Abraçou os extremos da sua condição precária como um ensinamento necessário para se tornar naquilo que sempre lhe estivera predestinado. Não se incomodou com a fome, com a falta de agasalho, com os ferimentos, as humilhações, os padecimentos, o trabalho árduo e ininterrupto. Via tudo como um caminho carregado de obstáculos que deveria afastar, um por um, até alcançar o mundo ofuscante de regalias que lhe estavam reservadas.

Um dia, na messe, anunciaram que a primeira nave iria mostrar-se à galáxia, para intimidar a Nova República e dar início à guerra que poria fim às estúpidas fantasias de um sistema político democrático. Tratava-se da Belirium, um imperial star destroyer completamente remodelado e melhorado, apetrechado com a última tecnologia, maquinaria e veículos de assalto, aéreos e terrestres, a postos nos seus porões. O rejúbilo foi contagiante e o coração de Frint descongelou nesse dia. Ficou soberbo por ter sido um dos escolhidos para a tripulação e quando embarcou estava feliz. Contaram-lhe que O’Sen Kram estava a bordo, não sentiu necessidade de conhecê-lo. Considerou, com a domesticação desse desejo mundano, que estava bem treinado. Um soldado era uma mera peça de uma engrenagem muito maior que servia um propósito global e que, em última análise, beneficiaria o soldado e todos os povos e sistemas defendidos por este.

Olhando brevemente para o passado, o saldo era-lhe claramente favorável.

A sua vida fora salva por causa de um boato.

A sorte continuou a acompanhá-lo na Belirium. Foi escolhido para uma primeira missão ultrassecreta. Era dos mais aplicados, discretos, leais e essas características, ajuizou pragmático, teriam sido importantes para indicá-lo como o homem certo para aquele destacamento. Ficou ligeiramente desapontado ao descobrir entre a seleta equipa alguns imbecis que odiava, mas manteve-se estoico e considerou-os, embora ofendido, como seus camaradas. A colaboração era fundamental para o êxito da missão e não seria ele que criaria problemas.

O secretismo do empreendimento era de um nível tão elevado que apenas os pilotos da nave sabiam o percurso da viagem. Frint aceitou esse facto, mas havia quem andasse a fazer perguntas incómodas e a cochichar na camarata inverdades que o agastavam. Não apenas sobre onde iriam aterrar, mas sobre o carácter da missão, o poder do exército ao qual pertenciam, as probabilidades de vitória e a personalidade de Kram.

Eventualmente, os rumores alcançaram-no.

— Ouvi dizer que transportamos uma coisa.

Na companhia dos bandidos aprendera a valorizar qualquer frase que começava com essas duas palavras, ouvi dizer. Normalmente significavam que havia alguém que tinha informações vitais, embora disfarçadas com camadas de mentiras. O que no caso de uma missão ultrassecreta, podia significar apenas pura bosta. E ele já não era um bandido, era um soldado altamente treinado e obediente. Mas o instinto fê-lo reagir. Poderia descobrir eventuais traidores no grupo que perigassem os objetivos comuns, poderia agir a tempo de evitar o descalabro da ofensiva final, poderia cumprir o seu dever.

Perguntou:

— O que queres dizer com uma coisa? Uma besta? Um animal estranho?

— Não… Uma coisa. – O outro fez-lhe um olhar esgazeado. – Oh!… Ainda não a foste ver!

— A coisa?

Recebeu uma cotovelada que o surpreendeu. A familiaridade fora excessiva.

— Tens de a ver. E depois conta-nos o que achaste…

Desconfiou do repto, mas não o iria ignorar. Teria de reunir o máximo de provas possível para apresentar o caso aos seus superiores, se ali houvesse efetivamente um caso. Por outro lado, a cobardia não lhe era própria, tão-pouco a sobranceria, mesmo que o desafio fosse reles e se revestisse, na melhor das hipóteses, o que os inocentaria, de uma brincadeira imberbe de mancebos desocupados.

Havia ali um grupo que se formara à custa da visualização da estranha carga que levavam e que se julgava superior por ter esse conhecimento supremo. Frint não sabia que havia o transporte de algo mais do que computadores, aparelhos de comunicação, veículos de locomoção terrestre, armas e cartuchos de munições e foi ver do que se tratava.

Descobriu no porão uma porta selada com um código que não estava ativo. Desconfiou que lhe estavam a dar passagem para que se incluísse no grupo e não desdenhou a oferta.

Entrou na câmara acanhada. No centro, iluminado por um foco de luz direto, estava um tubo cheio de um líquido transparente esverdeado e, a flutuar no líquido, estava a coisa. A pele branca, macia e jovem, teria um perfume próprio que deveria ser encantador. Sentiu um nó na garganta, as mãos dormentes.

Não era uma coisa, uma besta, um animal estranho. Era uma mulher.

Estava totalmente nua, os cabelos castanhos flutuavam suavemente em redor da cabeça. A harmonia do rosto era desconcertante. Tinha as pálpebras de longos cílios fechadas, a boca vermelha entreaberta.

Contemplou-a como se faz às coisas belas. Num total êxtase despojado de razão, completamente enfeitiçado por aquela perfeição. Pousou uma mão no vidro que a separava do mundo físico, do seu mundo perecível onde ela seria eterna e ele nunca passaria de ordinário. Abriu os dedos, como se assim pudesse ficar mais perto de tocar aquela deusa, deslumbrado com os mistérios do Universo que guardavam joias daquele calibre. O seu hálito criou uma mancha de vapor na superfície da cápsula e, de repente, ela abriu os olhos.

Ele recuou de imediato.

As íris dela moveram-se ligeiramente para o descobrirem espantado a mirá-la. A mulher não esboçou mais nenhum movimento. Nem um sorriso, nem um pestanejar, nem moveu as mãos delicadas que oscilavam com brandura no líquido esverdeado. Aquele olhar era isento, analítico. Não tinha censura, vida, doçura, mágoa ou desespero.

Ele recuou mais, tropeçando nas próprias pernas.

Quando saiu esbaforido da câmara, ouviu as gargalhadas dos camaradas nas suas costas.


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Notas finais do capítulo

Assim foi o primeiro encontro entre Frint e a Cleo. O que acharam?
A vida de Frint não é das mais felizes e todas essas experiências vão contribuir para moldar o seu carácter. No fundo, no âmago da sua alma, ele é um soldado do Império Galáctico.

Próximo capítulo:
O olhar que mata.



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