O Segredo do Pássaro Amarelo escrita por XCoelhoBranco666


Capítulo 2
Capítulo 2 - CÁPSULA DO TEMPO


Notas iniciais do capítulo

Foi um semi-desafio escrever esse capítulo, mas consegui, pelo menos eu acho que sim. Enfim, espero que gostem, se tiver alguém lendo né XD



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Se estivessem procurando entender o que seria a expressão congelado no passado, aquele lugar seria a definição perfeita. Não que isso fosse uma perturbação. A primeira coisa que Brenda notou assim que botou os pés no rústico caminho de terra, fora as majestosas vegetações cercadas de montanhas que pareciam cautelosamente tingidas ao verde musgo exuberante das mais diversas árvores que erguiam as suas pontas saudando o céu, foi o excêntrico casarão.

Dezenove cômodos e mais de sessenta portas e janelas enraizadas na arcana arquitetura dos tempos arcaicos. Brenda agilmente ligou a tela do seu aparelho eletrônico, analisando as imagens que havia pegado após vasculhar blogs e jornais online. O local era exatamente como nas fotografias tiradas há um século. Suspirou.

— Isso é impressionante! – exclamou – Olha pra esse lugar!

— É como se nós tivéssemos entrado nos contos do pica-pau. – Breno também afirmou com certo encanto, enquanto ainda tentava manter a certa postura negligente. – A fachada é exatamente como Monteiro Lobato descreveu o sítio em Reinações de Narizinho.

— É óbvio que esse é o lugar real. – Brenda já se precipitou-se empolgada, se aproximando cada vez mais da entrada da construção. – Me impressiona ter tão poucos visitantes. Eu não entendo. Por que o governo iria quer esconder isso tudo? – reclamou enquanto abria os braços ao redor dela para enfatizar a noção do espaço e do seu valor.

Breno deu de ombros.

Foi quando, os dois finalmente atravessaram a porta principal.

Seus olhos depararam-se com as paredes uniformes, os móveis estranhamente dispostos num choque de épocas, todos de madeira em suas colorações que se limitavam a bege e marrom, havia poeira, muita poeira que era demarcada pela luz alaranjada do final da tarde que invadia através das janelas, fazendo as partículas parecem flocos de neve que haviam viajado desde um tempo remoto. Era como imergir misticamente dentro de uma antiga fotografia em sépia. Os rangeres das tábuas em que pisavam eclodiam pelos aposentos como bocejos, acordando de um sono profundo.

Brenda se aproximou de uma das placas que havia no local. Seus olhos flagraram apenas partes que lhe faziam interesse.

"Tudo aqui foi deixado do jeito que Monteiro Lobato nos deixou. E assim há de permitir até que a inocência da própria criança que ele cativava volte e quebre as barreiras do tempo".

O irmão assim a acompanhou, quando leu aquilo conseguiu notar a tonalidade poética, no entanto, dentro da mente imaginativa de Breno aquilo soou mais como um encanto. O mesmo encanto em que aquela casa e ele pareciam estar. De braços cruzados, ele abraçou mais ainda o livro que carregava. Aquele seria um ótimo lugar para as suas leituras.

Não deu outra, ele se caminhou já de volta a uma das saídas, a procura de um banco localizada num lugar bem tranquilo em meio à vegetação. Embora Brenda adentrasse cada vez mais na casa, tentada a tirar mais fotos e registrar tudo que podia. Viu um visitante ou dois aqui e acolá. Ninguém que parecesse realmente a pena entrevistar.

Parou por um momento ao deleite de observar algumas das fotografias preto-e-branco penduradas nas paredes. Todas elas do tempo em que Lobato era vivo e estava escrevendo os seus contos sobre as aventuras de Narizinho, Pedrinho e Emília.

A maior parte delas estava acompanhada por legendas que contavam a história de cada. Tinha muitas com a fachada da fazenda e outras eram fotos de família.

Tinha uma que continha dois dos filhos que Lobato teve, na legenda dizia "Guilherme e Martha Monteiro Lobato 1914".

Havia outra que jazia uma moça negra que segurava um dos filhos do autor ainda bebê no colo, "Tia Anastácia e Guilherme, 1913"

e uma ainda escrito "Visconde" que continha um homem velho, de aparência militar, muito bem vestido, apoiando-se a uma bengala.

Mas de todos aqueles detalhes intrigantes. Houve um em especial que tomou o holofote dos olhos de Brenda. Residia esgueirando-se no canto, como se tentasse não chamar a atenção, uma cadeira de balanço. Com toda sua extensão consumida pela impiedade do tempo, acolhia em seu assento uma rústica boneca de pano. Brenda se aproximou, instigada a recomeçar a sua sessão de fotos daquela relíquia. Parou para observar a quinquilharia. Era relativamente grande, poderia ter sido feita para equilibrar-se com o tamanho de uma criança, seu extenso torso retorcido estava decorado com um vestido que, embora as cores estivessem desbotadas e camufladas pelo encardimento, Brenda conseguiu identificar ser branco com bolinhas vermelhas. Além da costura feita amadoramente que deixava escapar ligeiramente resíduos do estofamento de macela, tinha um pequeno tufo de cabelo feito de sobras de lã e os olhos. Os olhos de botão com cílios feitos a lápis. Tão escuros e polidos que a garota pôde se enxergar neles, ou talvez através dos mesmos, a figura das memórias de uma antiga criança que com certeza havia se divertido muito com ela.

Ela abriu a câmera do celular, no entanto se decepcionou ao ver que era impossível pegar uma imagem boa com o tamanho da poeira que cobria os objetos. Ela se sentiu tentada a tocar a boneca e tirar a poeira discretamente, mesmo com a tira de "não ultrapasse" em torno do cenário. Estendeu a mão, receosa, apenas para tomar um susto em seguida pela voz que sobressaiu atrás dela.

— Mocinha... – a voz masculina advertiu.

— Ah... Oi. – Brenda virou-se e topou com um homem já de bastante idade, demarcada pela sua feição e cabelos já grisalhos. Assim que viu o rosto de Brenda, esboçou um sorriso sem dentes receptivo no rosto. Brenda não mentia, achou o jeito dele engraçado pelas primeiras impressões. Ele usava um conjunto de roupas que cobriam todo o seu corpo, com direito a um extravagante cachecol em torno do pescoço em pleno sol de julho. "Idosos e suas manias..."

— É extremamente proibido tocar ou tirar qualquer coisa do lugar nessa casa. Lei principal. Está em todas as placas. O objetivo aqui é manter a casa exatamente do jeito que o autor deixou. – disse ríspido. O senhor carregava um crachá com o nome: "Heitor".

— Desculpe – disse transparecendo vergonha – Só queria tirar um pouco do pó para tirar uma foto da Emília. É para uma reportagem.

— Uma reportagem? – ele perguntou exaltando a curiosidade. O rosto de Brenda logo se iluminou ao perceber que teria que explicar sobre o que estava fazendo.

— Sim. – falou erguendo-se – Estou fazendo uma reportagem para um concurso de talentos mirins. Quero ser uma jornalista.

— Ah é? Vejo que é uma garotinha de nariz arrebitado. – Heitor deu uma risada breve. Brenda apenas assentiu radiante – Sabia que Monteiro Lobato também era jornalista? Ele começou a carreira dele sendo repórter do jornal de Taubaté.

Brenda parou por um instante, atônita, como se procurasse palavras.

— Jura?! Só pode ser brincadeira?

— Não, não é. Lobato foi completo.

— Você é um funcionário daqui?

— Proprietário.

Brenda deixou o queixo cair. Já tirando o lápis da orelha em animação.

— Pode, por favor, me conceder algumas perguntas Senhor Heitor?

— Claro, não vejo problema algum em fazer esse favor a uma moça tão prendada como você.

— Ótimo. Primeiro, a casa está mesmo congelada do mesmo jeito que no século XX?

— Sim. Cada detalhe. E assim há de ficar.

— Nenhuma modificação?

— Procuramos evitar isso. Priorizamos a conservação dela a qualquer custo.

— Por quê? Quero dizer, tem algum sentido além do valor histórico?

Heitor fechou a expressão por um momento, mostrando desconforto.

— Ordens do ministério. Não tenho muito que dizer sobre isso.

— Você tem algo a dizer sobre a fazenda do Visconde?

Heitor arqueou as sobrancelhas em espanto, evidenciando a falta de resposta, então Brenda continuou.

— É que eu e meu irmão estivemos lá mais cedo. Uma fonte anônima nos disse que o lugar todo era uma fachada, que o governo estava tentando esconder a localização da fazenda original, e pelo número de visitantes, devo dizer que com sucesso. Você tem alguma ideia de porque eles estariam fazendo isso?

Heitor permanecia com a expressão pasma diante as perguntas de Brenda, em seguira pareceu ceder e respondeu com outra pergunta.

— Você tem um irmão? – sorriu.

— Er... Sim. O Breno. Mas isso não vem ao caso agora. – deu um baque entre as palavras – Você acha que isso tem haver com algum tipo de conspiração? Porque os arquivos que poderiam comprovar qual é o local real desapareceram da câmara da cultura desde a morte de Lobato?

— Aqui é o local real. – afirmou com convicção.

— É evidente, porém mesmo assim é delicado dizer precisamente sem os documentos do lote. Quero a sua opinião.

— Mesmo sendo mirim, você já tem a língua afiada como de um jornalista de verdade. – Heitor suspirou com um riso começando a dar as costas enquanto se enrolava ainda mais no cachecol.

— Hã? – Brenda surpreendeu-se – Espere. Você não me respondeu nada.

— Respondi o suficiente. Aliás, onde está o seu irmão? Seria interessante conhecê-lo.

Brenda olhou para os lados, atordoada, mas não ia ficar de marra.

— Não sei. – disse – Provavelmente lá fora, somos gêmeos, se ver um garoto muito parecido comigo segurando um livro é ele.

— Obrigado. Aproveite o passeio e por gentileza, não toque em nada. – disse dando ênfase na última parte.

***

Breno estava sentado logo abaixo do caquizeiro enquanto se concentrava na tarefa desafiadora de conseguir manter o livro aberto na página desejada com o vento ameno que percorria em torno do sítio.

Aquele lugar despertava algo especial em Breno. Ele já conhecia bem o sentimento. Sempre o vivenciara enquanto se teletransportava para o universo dos mais diversos enredos e aventuras nas suas páginas impressas, mas agora era de certa forma mais intenso. Ele se lembrava muito bem das poucas vezes em que havia sido introduzido aos contos do Sítio do Pica-Pau Amarelo nos anos da educação infantil, o lugar encantado que parecia se passar numa terra tão além de seus sonhos estava ali. Com ele.

Era reconfortante. Breno não se impressionaria nem um pouco caso, por conseguinte, começasse a imaginar as mais diversas criaturas do folclore nacional espreitando os humanos através das frestas produzidas pelas longas árvores que circundavam o lugar. Os ares de desconhecimento instigante que aquele "templo" respirava o faziam quase se sentir como um dos personagens do seu livro. Foi quando a voz curiosa de Heitor o abordou.

— Gosta de mistérios?

Breno olhou de relance, achando a abordagem desnecessária. O senhor lançou as sobrancelhas na direção do livro que o garoto carregava, como se tentasse justificar a pergunta, ele parecia reconhecer o que estava lendo.

Huhum. – murmurou em resposta – Nada de muito importante, mas gosto de ler para saber se sou inteligente o suficiente para descobrir o final.

— Entendo. Você deve ser o Breno.

O garoto olhou em espanto para o homem.

— Como sabe?

— Conheci sua irmã agora a pouco. Menina inteligente. Completamente diferente de alguém pra idade dela. – comentou com certo encanto nas palavras que descreviam a irmã do menino – Ela me falou sobre você.

— Quem é você afinal?

— Heitor. Dono daqui.

Breno parou por um tempo, mas aquele detalhe pareceu não ter o impedido de ser ríspido.

— Tá. – e voltou-se ao livro.

Heitor deu uma pausa para analisar a situação, até que por fim continuou.

— A história de Monteiro Lobato tem lá seus mistérios, sabia?

Breno ergueu o olhar de imediato. Mesmo que mísero, com uma pontada de curiosidade que já animou Heitor a continuar.

— Jura? Eu venho percebendo alguns mesmo.

— Falo sério. Sabia que Lobato poucos dias antes de partir dizia que já estava ciente da sua morte, mesmo sem ele carregar nenhuma enfermidade ou algo que comprometesse sua vida? Muitos gostam de dizer que ele de alguma forma mística previu a própria morte através do espiritismo, que era a sua religião. Os seus filhos acreditavam que ele tinha poderes.

— Que poderes?

— Não faço ideia. Achei que esse poderia ser um dos mistérios em que você pudesse descobrir o final. Mas parece que você não está muito interessado. – lamentou Heitor já dando as costas, recusando-se a permanecer na arrogância do garoto tão novo.

Breno corroeu-se em vergonha. Não poderia deixar o homem partir daquele jeito. Não quando ele parecia realmente se divertir com aquela viagem toda.

— Não. Espera! – chamou. Heitor virou o rosto de leve na direção dele. – Fala mais sobre isso... – se questionou ao ver que o homem apenas estava parado olhando para ele, foi quando ele percebeu o motivo. Havia faltado algo especial no pedido de Breno - Por favor?

O velho sorriu.

— Será um prazer. – disse sentando-se no banco com o garoto. – Você já leu os livros principais do sítio não é?

— Já. Há muito tempo. No jardim de infância. Mas lembro da história como um todo perfeitamente.

— Diga um pouco sobre Reinações de Narizinho.

— Narizinho morava numa fazenda com sua avó Benta e a Tia Nastácia. Numa tarde, ela acaba conhecendo o príncipe Escamado do Reino das Águas Claras, que acaba a levando para o mundo dele que ficava escondido dentro da cachoeirinha do sítio. E lá os dois se casam. A chegada de Narizinho ao reino desencadeia uma série de aventuras com a sua boneca Emília e o primo Pedrinho com as criaturas mágicas dos contos de fada e mitologia.

— Sim. E se eu de contasse que Narizinho, Pedrinho, Visconde, Dona Benta, Tia Nastácia e Emília e os outros existiram de verdade, de certo modo?

— Sério? – Breno fez uma expressão de desconfiança.

— Sim. Boa parte foi a própria família do Monteiro. Dona Benta era Purezinha, a esposa. Visconde foi o avô. Narizinho e Pedrinho foram os filhos, Guilherme e Martha. Também tinha a faz-tudo da casa Anastácia e o esposo dela, Ezaú que serviu como Barnabé. Emília é a boneca de Martha feita por Anastácia. Tudo está preservado na casa, tem fotos. Até mesmo os cenários que estavam nas histórias existem aqui.

— Como o quê?

— Como o Reino das Águas Claras.

Breno arqueou a sobrancelha em descrença mais uma vez.

— A cachoeira – Heitor consertou a colocação anterior – As pessoas acreditam que ela esteja perdida em algum lugar por aí em meio à mata.

— Onde quer chegar com tudo isso? – indagou Breno fechando a capa do livro, entregando-se totalmente ao assunto. Mas, no momento em que Heitor parecia continuar a dizer mais alguma coisa fora interrompido por algum chamado que ele captou com os olhos.

— Adoraria continuar conversando com você Breno, no entanto, tenho alguns assuntos para resolver agora.

— Mas... – o menino gaguejou – O que você acha que isso tudo teria de importante?

— Nada demais. Podemos nos falar amanhã.

— Amanhã demorará demais! – Breno saltou do banco insistindo enquanto caminhava ao lado de Heitor – Não pode me contar assim que terminar os assuntos?

— Infelizmente não é mais possível te dizer nada hoje. Já está começando a escurecer e o parque irá fechar. – explicou-se.

— Não seja por isso. Eu espero para que o senhor termine de fechá-lo. Eu também ajudo se quiser.

— Isso não será possível rapaz.

— Por quê?

— Você é igual a ela. – Heitor virou-se para ele mais uma vez, desviando do assunto – Essa curiosidade que as crianças carregam é saudável, mas você já está praticamente um rapaz, lhe aconselho a não persistir em assuntos no qual não foi chamado.

— Mas você me chamou. – retrucou.

— Olha rapaz, eu irei te contar tudo. Mas hoje não, entendeu? Olhe as pessoas já estão partindo. – disse apontando para os poucos visitantes que estavam a voltar para dentro o ônibus de turismo com o motor já ligado na partida.

— Mal deu cinco horas. Pelo o que eu sei fecha daqui a meia hora. Por que a pressa?

— Breno, se me dá licença agora, os seguranças precisam resolver algo comigo.

"Seguranças?" foi tudo o que passou na mente confusa do garoto, ele deu um passo para trás, consentido e apenas suspirou – Tudo bem.

Heitor assentiu e foi na direção da parte de trás da casa. Breno permaneceu parado no lugar onde estava, enquanto via o jeito das pessoas nas quais o senhor se aproximava. Eram homens de paletó e gravata, incrivelmente eretos e inexpressivos (com grandes óculos de lentes escuras que aumentava a ideia de seriedade). Seriam particulares? Diferente de seguranças convencionais, esses não tinham crachás nem distintivos. No entanto, os volumes no cós de ambos evidenciavam que estavam armados.

"Por que diabos um monumento municipal precisaria de seguranças desse nível?"

— O que aconteceu? – Brenda questionou ao ver a expressão dele, surpreendendo o irmão que estava tão concentrado que mal havia percebido a sua presença.

— Algo bem estranho. Olhe – apontou.

— São seguranças.

— Armados? Num museu? Que mal tem visitantes?!

— Bem... - Brenda parou por um pequeno instante. Ela poderia muito bem dar vários motivos para aquela cena. No entanto, ela não queria encerrar o assunto com o irmão. Era algo tão raro de acontecer que ela não perderia a chance. – Quer saber? Eu também acho que algo muito estranho está acontecendo. Quando eu estava lá dentro me privaram de tocar em tudo. E quando digo tudo, tudo mesmo. Inclusive outros visitantes. Eles sempre ficavam super nervosos quando alguém se aproximava demais dos objetos. Achei muito estranha essa neura deles de ter que manter tudo exatamente como era mais de um século atrás. E quando alguém olhou o relógio e disse que já estava perto de escurecer aí que eles endoidaram. Praticamente expulsaram todo mundo da casa.

Breno ficou encarando a irmã contar tudo atônito.

— Heitor estava me falando sobre essas coisas relacionadas ao Monteiro Lobato e do nada resolveu parar. Quando perguntei para ele porque ele não podia me contar mais ele ficou nervoso e disse que era porque "estava escurecendo" e saiu pra falar com os seguranças. – assim que ele apontou naquela direção mais uma vez, levando o olhar da irmã junto ao dele, tudo que puderam ver foi Heitor e os dois engravatados sumindo entre as árvores da mata.

Brenda soltou um som em sobressalto e em seguida colocou-se a andar.

— Ei! Brenda! O ônibus... Vai sair agora. – Breno espantou-se ao ver a irmã seguindo a trilha e começando a se aproximar cada vez mais do lugar onde os homens pareciam ir.

— Isso pode esperar. – bradou ela e com isso puxou o lápis da orelha erguendo o caderno – Tenho um caso para cobrir. – finalizou com uma tonalidade animada.

Breno avançou na direção dela, mas Brenda pareceu não perceber e apertou o passo a caminho da reserva de um verde densamente chamativo. Ele sabia que quando a irmã se empolgava com algo ela raramente dava ouvidos para o que quer que dissessem em torno dela, por mais que insistissem, então ele apenas seguiu os passos dela com intuito de evitar que qualquer atitude dela causasse um problema para Clara futuramente.

Ele sentiu o corpo ser saudado pelos pequenos gravetos que lhe espetavam a pele enquanto tentava manter o ritmo para que não visse Brenda sendo engolida pelo verde e ele se visse perdido ali para sempre. Logo o som do motor de ônibus foi se dissipando lentamente como a fumaça que saia do seu escapamento e o som que foi consumido pelo piar de aves nativas da vegetação tropical.

Brenda abaixou-se diante de uma clareira entre as folhagens. O grupo de Heitor parecia estar parado logo à frente. Pareciam conversar algo em particular. Brenda espichou a orelha para que tentasse ouvir algo. Breno aproximou o rosto. Havia um pequeno caminho terreno mais isolado naquela parte da floresta e nele continha um carro estacionado. Era bem chamativo, escuro, polido e com vidros opacos. Mas o que mais surpreendia era o logo que residia na lateral do veículo, um brasão azul e vermelho, com estrelas em seu torno que seguiam os dizeres:

FEDERAL BUREAU OF INVESTIGATION

— FBI?! – Brenda engoliu o ar para manter a exclamação baixa, arregalando os olhos na direção de Breno que praticamente não tinha o que dizer, apenas consentia com um olhar perplexamente conturbado. – Como que o FBI veio parar em São Paulo? Quero dizer... Por quê? – sussurrou com dificuldade de selecionar as palavras.

Breno tentou falar alguma coisa foi quando um farfalhar de folhas lhe prendeu a atenção. A sensação do vento cortando lhe atingiu por trás. O garoto olhou de relance e pode pegar com a beirada do olho a imagem de um dos pássaros passando entre os troncos. Ele se virou pelo reflexo. Só deu tempo de ver o penacho traseiro do bichinho. Uma explosão da tonalidade dourada destacou-se em meio o verde.

Breno levantou o pescoço para ver se ainda conseguia ver o bicho que dera o rasante. Com mais alguns passos para dentro da floresta e ele conseguiu encontra-lo parado por cima de um dos galhos baixos. O garoto prendeu a respiração. Ele não sabia se ficava surpreso ou assustado. O pássaro que vira era um pica pau do peito amarelo. Antes ele surpreender-se com a ironia do destino, mas o que lhe prendia era a majestosa construção da ave. Era maior do que um pica pau comum. Tinha o canto mais forte do que todos os outros pássaros juntos. Era mais detalhado do que aparentava nas fotografias. Tinha olhos enormes, nos quais a pupila amarelada se mesclava com o resto, que pareciam saltar das bordas. E as cores. As cores. Um tumulto estonteante de uma junção dourada quase laranja, como os últimos raios que sol que estavam a desaparecer no céu naquele momento. Como se o pássaro fosse um coveiro místico das tardes que morriam. E ele acolhesse muito bem as luzes delas, guardando-as em seus penachos.

Era possível ouvir o som da partida do carro. Os seguranças estavam se afastando. Deixando apenas Heitor na estrada. Breno acabou por esbarrar por cima de um dos troncos no caminho, agitando o galho no qual o pássaro se empoleirava. A rajada foi tão intensa que, ao passar por cima de sua irmã, Brenda deu um grito em espanto. Alertando Heitor.

A ave voou girando excentricamente em torno do homem velho, deixando o rastro de penas áureas para trás. E Heitor com a expressão mais irritada impossível. O senhor, quase se embolando dentro do seu próprio cachecol, veio para cima dos gêmeos, que viram o seu rosto sendo consumido pela vermelhidão.

— Eu mandei vocês saírem daqui!

Os dois permaneceram calados e parados em seus lugares em choque. Brenda tentava falar alguma coisa, mas lhe faltavam desculpas. O homem avançou mais um pouco, agitando os braços em fúria.

— Vocês precisam sair daqui! – berrou olhando para o céu crepuscular em desespero – Rápido! – os irmãos pularam em susto, sem pensarem mais nada se puseram a correr na direção oposta – Precisam sair daqui agora, antes que eles acordem...!

Breno e Brenda saíram da mata pelo lugar de onde vieram, atravessaram todo o campo e os quintais da propriedade. O ônibus já havia partido, mas eles não ligaram. Apenas continuaram a correr até transpassarem os portões velhos da fazenda. Correram até encontrar alguma estrada com asfalto. Pararam. Ofegantes.

— Acho melhor ligar pra mamãe buscar a gente. – falou Brenda com o ritmo inconstante. Breno apenas assentiu assustado.

*

De volta ao hotel, Clara batia uma ou duas vezes na porta para se certificar se eles estavam bem. Os irmãos apenas assentiam enquanto a mãe se preparava para a noite que iria passar com Eanes. Breno e Brenda passaram o resto do dia enfurnados no quarto. Brenda fingia assistir a televisão enquanto, pesquisava insensivelmente no seu notebook mais informações sobre tudo que os dois haviam visto mais cedo. Breno não tirava os olhos do livro, calmamente refugiado nas engrenagens que estavam em funcionamento na sua cabeça. Até que por fim, a mãe entrou. Exibindo o seu vestido estonteante para as crianças.

— Como estou? – perguntou ela rodopiando no tomara que caia roxo.

— Você está linda mãe. – Brenda sorriu.

Breno apenas concordou com um "Huhum" o que foi suficiente para alegrar Clara que já não tinha como se decepcionar. Estava claramente animada com o jantar e nada poderia atrapalhar.

— Ótimo! – ela comemorou – Já estamos indo, ok? Vocês já entenderam as regras, não é?

— Huhum. – responderam em coro, evidenciando o quanto já tinham ouvido a mãe repetir as advertências.

— Isso. Se precisarem de qualquer coisa é só chamar na recepção. Os funcionários sabem de vocês e irão ajudar. Podem me ligar também, ouviram?

— Sim.

— Podemos demorar, mas não quero isso como desculpa para ficarem acordados até tarde.

Os dois assentiram. Clara sorriu mais uma vez e voou na direção da porta, mas antes de deixar os filhos lá voltou brevemente aos dois, movida pela compaixão.

— Eu amo vocês.

Brenda ficou no parapeito da janela, observando a rua que sua mãe descia, até vê-la entrando no carro de Eanes e sumindo pelas ruelas neocolonialistas tomadas pela áurea noturna.

Sorriu. Satisfeita.

— Perfeito! – disse descendo da janela e puxando a sua mochila que residia por debaixo da cama, saltitante indo a caminho da porta – Eles já foram.

Breno levantou o olhar. Estranhando o que a irmã fazia.

— Onde está indo com a mochila?

— Até a fazenda. – respondeu com o maior convencimento.

Breno deu um salto do colchão, deixando o livro cair de lado.

— O quê?! Não tá falando sério, né?

Brenda soltou a maçaneta e lançou um olhar ironicamente cansado ao irmão.

— Estou. Agora que eles saíram eu posso ir lá e descobrir eu mesma o que está acontecendo. – respondeu e fechou a porta atrás de si.

Indignado por não receber uma justificativa e nem muitos menos uma resposta, Breno correu através do quarto, abrindo a porta. Indo atrás da irmã.

— Ei! – gritou – Ficou maluca?! Sair ás dez horas da noite, sozinha e naquele fim de mundo?!

— Sim. – respondeu sem cessar o passo, abrindo a porta que levava as escadas – Tem algo acontecendo na Fazenda Buquira e eu vou descobrir.

— Não pode ser amanhã? Inteligência...

— Não, não pode. Algo acontece lá ao anoitecer e eu quero saber o que é. Eu ouvi a conversa do Heitor com os seguranças. Tem algo escondido na casa e eu irei descobrir e mostrar a verdade para todos. Terei a melhor reportagem! – disse animada e repleta de entusiasmo. – Eles nunca nos deixariam procurar por essa "coisa" durante o dia, com aquela neura de não tocar em nada.

— Mamãe vai ficar preocupada.

— Ela não vai saber de nada.

— E se ela descobrir?

— Ela não vai.

— E se acontecer alguma coisa com você? Quem vai levar toda a culpa sou eu!

— Eu sei me virar sozinha. Já chamei o táxi, vai chegar num instante. – disse abrindo a porta da recepção. Ao ver que alguns dos recepcionistas estavam na entrada principal, ela deu meia volta. – Vou sair pela saída de emergência dos funcionários.

— Brenda... – Breno rangeu entre dentes seguindo ela. – Você não imagina a encrenca em que está se metendo.

— Então fica ai logo. Se acontecer algo comigo eu deixo a mamãe me castigar sozinha depois. Mas eu estou indo até aquela fazenda – e empurrou a porta de incêndio, sumindo pela rua de trás do hotel.

Breno mal parou para pensar e atravessou a porta também.

— Você pode não encontrar nada.

— Sim, mas eu também posso ser a primeira a encontrar alguma coisa – disse esvoaçando o cabelo, determinada. Os dois dobraram a esquina apenas para encontrar o táxi parado no começo da rua. – Estou indo Breno. Boa noite.

E assim, sem hesitar nem pensar duas vezes, Brenda abriu a porta do taxi e se acomodou no banco do passageiro. Deixando o irmão apenas parado, sem esperanças nem desculpas que a deixassem ficar. Mas uma coisa Breno não podia negar. Que aquela história toda da Fazenda Buquira era intrigante, era. E ele mal conseguia esconder o fato de que havia repassado em sua cabeça a tarde inteira, viajando nos seus mundos interiores, onde ele criava as mais diversas teorias dos segredos que aquele lugar poderia esconder. Era como se estivesse vivendo dentro dos seus livros.

Ele se lembrou do livro que estava a ler. O estudante que havia invadido a biblioteca de Oxford na calada da noite para descobrir o enigma de Alice.

Era quase como se o autor inevitável, Destino, houvesse lhe proporcionado à oportunidade perfeita.

Se o que Brenda houvesse dito era verdade, que havia algo escondido no Sítio, ele não podia deixar aquele táxi partir.

Ele nunca saberia ao certo se não aceitasse toda a insanidade de sua imaginação que insistia em consumir a sua mente, e tentasse.

Então ele gritou. Sentindo esvaziar do seu corpo todo o estigma da postura impenetrável que ele havia cultivado durante os anos, tão fluente como água corrente.

— Brenda! Espere!

A garota ouviu o grito e colocou a mão sobre o ombro do taxista que parou o veículo.

— O que foi agora? – ela perguntou colocando a cabeça para fora da janela ao ver o irmão se aproximar. Mas Breno não disse nada. Apenas abriu a porta e sentou no banco de trás dizendo:

— Nos leve à Avenida Monteiro Lobato, por favor.

*

Quando o asfalto foi substituído pela terra. Brenda teve que pedir para que o motorista acelerasse o carro e desse meia volta, pois eles foram substituídos por mais seguranças que estavam parados em frente à porteira da fazenda.

Dessa vez não eram engravatados, tinham uniformes diferentes. Como se fossem militares. Militares do governo americano. Breno arregalou aos olhos ao ver o distintivo pendurado na lapela de cada um dos guardas.

"Área 51."

Os militares da secreta base 51 dos Estados Unidos estavam na fazenda Buquira.

— O que está acontecendo aqui? – Brenda perguntou para si.

— Seja o que for, é bem sério. – Breno disse convicto e sentindo a curiosidade lhe consumir o corpo cada vez mais como sangue que lhe fluía à cabeça.

— É sempre assim? – Brenda perguntou ao taxista.

— Na maioria das vezes sim. – respondeu – A gente sempre vê pessoal do governo indo até essa casa do Lobato. Deve ser muito valiosa mesmo.

Os irmãos se olharam.

Brenda deu os comandos para o motorista e ele os deixou na encosta da mata, na mesma estrada abandonada e de pouco movimento que eles viram Heitor conversando com os agentes com o carro do FBI. Ficava logo atrás da casa. O taxista estranhou já que não conhecia aquele caminho, no entanto Brenda deu a primeira resposta que vinha em mente e estendeu o dinheiro. O carro partiu sem muita demora.

Agora eram apenas eles, o "Sítio do Pica Pau Amarelo", e fosse lá o que ele estivesse escondendo.

Era completamente absurdo. Ao entrarem na pequena mata que ligava o quintal dos fundos da fazenda à estrada, os irmãos tiveram uma surpresa, puderam ouvir o canto dos pássaros.

Por mais incrível que parecesse, os pássaros estavam cantando a noite. E não era apenas um canto comum. Cantavam com todo o entusiasmo como se fosse de manhã cedo.

As pequenas flores que circundavam a grama podada estavam desabrochadas e gritando numa explosão de cores vivas. Flores nas quais os brotos deveriam fechar-se durante a noite.

E diferente do lado de fora, a casa em si não havia nenhum tipo de proteção. Sem guardas. Sem armas nem militares.

"Estranho" Brenda pensou o óbvio, porque não havia absolutamente mais nada que ela pudesse pensar daquela situação.

— Só pode estar de brincadeira. – Breno assustou-se, atônito apontando para certo local da varanda. A porta estava aberta. E antes fosse destrancada ou entre aberta. Não. Estava escancarada. Como se ainda estivesse em uso. – Eles se preocupam tanto em manter o lugar protegido e conservado e deixam a porta aberta assim?!

— Isso é desmotivador. – suspirou Brenda ao ver a enorme relíquia daquele jeito, mas não demorou muito até dar de ombros – Pelo menos a nossa entrada será menos suspeita e arriscada.

E com isso atravessou o portal empurrando o restante da porta até que a encontrasse com a parede. Brenda tirou uma das suas lanternas da mochila e ligou-a. A casa antes tomada pelo aspecto amarelado como de uma antiga fotografia, tomou um choque de tempos ao entrar em contato com a luz fluorescente da lanterna.

Os passos que os dois davam cada vez mais adentro do local fazia Breno ter a impressão de não estarem ali. Ele se lembrava claramente de quanto entrou em Buquira mais cedo. Se lembrava do piso rangendo brutalmente. Agora estava serenamente calado, como se ainda respeitasse os fantasmas dos antigos moradores que costumavam ali dormir. Não deu muito tempo até que eles chegassem à mesma sala das fotografias. Breno se distraía cada vez mais com os detalhes rústicos que enchiam a sua cabeça das cenas aventurosas que Emília, Pedrinho e Narizinho poderiam facilmente ter passado ali. Como em um filme de CGI invisível.

— Breno... – a voz de Brenda tremelicou com certo nervosismo.

— O que foi? – indagou ainda distraído.

— Era extremamente proibido tirar as coisas do lugar aqui, não era?

— Claro né. A graça do lugar é que ele esteja do mesmo jeito em que era há 130 anos.

Brenda então respirou fundo, e perguntou o que lhe afligia com a tonalidade tomada pela pura mescla do medo do desconhecido:

— Então porque a boneca não está na cadeira de balanço? – a luz de LED bateu sobre o lugar. Ainda era o mesmo. A cobertura de poeira ainda estava lá, mas no assento, a única coisa que havia restado da boneca era a sua silhueta que fora demarcada pelo pó não limpo há bastante tempo.

Breno engoliu o ar em surpresa. Não havia como prosseguir a conversa.

— Acho que alguém deve estar forjando as coisas por aqui também. – Brenda comentou num misto de decepção e ira. – É a única explicação lógica para isso.

— Não tire conclusões adiantadas. – disse o menino se aproximando da cadeira. Ele analisou-a por um momento e continuou – Olhe as formas da boneca. Está perfeitamente marcada na poeira.

— E dai?

Breno lembrou-se de todos os romances policiais que havia lido.

— Daí que se a boneca fosse realmente retirada por alguém, isso iria fazer a maior sujeira e não ficaria um molde tão perfeito como esse.

— A pessoa deve ter tirado com cuidado.

Breno parou por um tempo, até que percebeu algo no chão. Ele abaixou-se e tomou um susto ao conseguir identificar o que era. Mais poeira. Mas eram formas, redondas e achatadas, marcadas uniformemente uma a frente da outra. Como se fossem pegadas... Pegadas extremamente pequenas.

— Olhe isso. – apontou – parece que alguém andou por aqui.

— Isso é muito pequeno para ser a sola de um sapato. – retrucou Brenda.

— Mas...

— Breno, o que você está tentando provar?

O menino calou-se. Incapaz.

— Ai não... – Brenda proclamou quase tendo um acesso – Não. Eu tô vendo onde você está querendo chegar. Não Breno. A boneca não é a Emília. Ela não está viva, não fala e não anda. Beleza?

Breno fechou a cara. Estava a ponto de dizer algo quando o ruído que surgiu na espreita de um dos cantos surpreendeu os dois. Num salto, Brenda virou a lanterna. Foi o tempo de ver um vulto sumir por trás uma das divisões da sala.

Alguma coisa havia se deslocado depressa para um dos quartos.

Alguma coisa estava com eles naquela casa.

— Tem alguém aqui? – Brenda perguntou hesitante erguendo a lanterna e esgueirando a cabeça na tentativa de pegar algo. Um calafrio percorria as colunas dos gêmeos com tanta destreza que parecia ser possível sentir o piso vibrando junto aos ossos deles. Esperaram. Não obtiveram resposta. – Algum bicho deve ter entrado na casa.

Brenda pode dizer nem fazer mais nada, foi o tempo de ela ver o irmão sumindo no corredor. Sem saída, ela o seguiu. Afundando de vez na escuridão mística do desconhecido. Levou um tempo até ela ouvir os passos de Breno pararem logo na entrada do lugar. Ela ergueu a lanterna apenas para se deparar com a expressão paralisada do garoto. E não fosse a toa. Ela também se espantou ao ver que a sala de 130 anos de idade estava tomada pelo caos.

Os móveis estavam revirados, os objetos com cima dos criados haviam se espatifado no chão, havia muito vidro e a tralha havia ido parar apenas de um lado do aposento. E um detalhe, que Brenda teve a curiosa destreza de notar, eram as tranças feitas nas cortinas.

Era como se um redemoinho houvesse invadido o local.

Apenas aquele único local de toda a casa.

— Olhe. – Breno apontou mais uma vez.

Mais pegadas.

Diferentes das de anteriormente, no entanto, mais curiosas impossíveis.

A poeira formava o contorno de um pé humano.

As pegadas cobriam todo lugar, até mesmo o teto.

As pegadas eram apenas do pé esquerdo.

— O que está acontecendo aqui? – ela perguntou. – Se algo desse tipo aconteceu, certamente foi um barulho alto o suficiente para alertar os guardas. Por que eles não vieram ainda? É como se tudo isso fosse... Natural. – organizou os pensamentos e colocou um quê de interrogação na última palavra ainda demonstrando a sua confusão.

— Tem algo nessa sala.

— Diga mais do óbvio.

— Não estou falando da bagunça. Lerda. Tem alguma coisa... Escondida.

Brenda olhou para ele com empolgação.

— A coisa que o Heitor disse estar escondida na casa.

— Sim. E seja o que for que causou isso, procurou por ela e não encontrou.

Brenda aproximou do centro do local, sentindo o vento frio da noite lhe atingir através da janela aberta. Ela ajoelhou-se próximo de onde residia o tapete. Intacto.

— O único lugar onde o vendaval não passou. – disse, então jogou o tecido rendado para longe. Passou a encarar o piso. Todo de tábuas de madeira que se estendiam ao redor da sala. A cera já não mais pegava brilho devido à idade.

Breno veio ao lado dela, pisando sobre o local. A tábua rangeu. Com um pequeno clique, ela saiu do lugar. Estava solta. Um pequeno espaço se abriu, fazendo uma nuvem da poeira remota eclodir em torno dos dois. Brenda tossiu um pouco. Antes que pudesse reclamar qualquer coisa com o irmão, viu a luz da lanterna reluzir em algo. Como o reflexo de algo metálico.

Que vinha de dentro do piso aberto.

Breno também pareceu notar, pois os dois se olharam de imediato. Incrédulos. Brenda puxou o resto da tábua fora, sentindo as fagulhas das farpas lhe fazerem cócegas nos dedos, passou a lanterna por debaixo do assoalho.

— Tem alguma coisa guardada ai dentro! – Breno quase deu um grito e cobriu a boca.

Com os dedos trêmulos, ela puxou o tesouro encontrado com a ajuda da lanterna. Breno logo se curvou para ajudar. Retirando com toda dificuldade através da estreita fenda, um baú com alças metálicas.

— É o tesouro do rabicó! – Breno gritou numa gargalhada ao lembrar-se da situação que passaram durante o dia.

— É uma canastra! – Brenda admirou-se.

— Castra...?

— Sim, um tipo mais específico de baú que...

— Eu sei o que é o significado, não sou lerdo. Mas o que eu quero dizer... – o menino parou por um momento, pensativo – É como a canastrinha mágica da Emília. Como nos livros.

Brenda encara a cápsula do tempo. Confusa e curiosa, ela pega do trinco de metal já corroído pela ferrugem. O mecanismo se desfaz na mão dela quase que instantaneamente, fazendo os dois se assustarem com o ruído. Os dedos ágeis e ansiosos de Breno correram em torno da tampa, levantando-a. A primeira coisa com que eles se depararam foi com a pequena mensagem numa tira de papel, escrita com uma letra caligráfica e belamente inclinada, e com a tinta de pena levemente desbotada pelo inimigo tempo:

"Em casos de emergências Ass: J. B. M. L"

Antes mesmo que pudessem ler em voz alta, Brenda deixou escapar um pequeno grito de espanto. De dentro da velha cápsula, saíra um inseto. Uma barata de corpo negro e viscoso, algo que ela nunca havia visto parecido, tinha quase um palmo a mais do tamanho de uma barata comum. E, estranhamente, estava viva dentro de uma caixa que parecia estar escondida ali há mais de um século.

O bicho asqueroso arqueou as suas antenas pontiagudas, gesticulando-as em torno do ar, como se verificasse os ares novos. Levantou suas asas e, quando ia lançar voo, Breno cancelou a decolagem, empurrando-a com a costa da mão por impulso. Deixando-a cair de volta no abismo negro do assoalho no qual havia vindo.

Suspiraram em alívio. Então, os dois ergueram o olhar na direção do conteúdo da caixa. Não sabiam ao certo descrever o que aquele curioso baú trancafiava. Eram objetos avulsos e, pelo parecer, sem nenhum valor financeiro. Nem mesmo se combinavam. Havia uma garrafa com uma cruz desenhada na rolha, uma lâmina, um minúsculo disco de vinil, um potinho com uma espécie de terra dentro, e várias outras coisinhas do que parecia ser do cotidiano de um passado enterrado.

Brenda se preparava para dizer algo sobre tudo aquilo. Pensou nas possibilidades de isso estar escondido, porque de ter um aviso para "emergências", porque a casa estava bagunçada e os guardas, a noite que parecia não chegar àquela fazenda... Mas toda a sua linha de pensamentos lógicos haviam se esgotado. Tudo parecia normalmente fora do normal. Se é que isso fizesse sentido. Parecia fazer. Parecia fazer um sentido enorme. Ela só, talvez, não era capaz de enxergar.

Ela ergueu o tronco, claramente decepcionada com o que havia encontrado ali. Foi quando levou a lanterna no seu campo de visão. O LED que ela emitiu revelou algo que ela temeu ver.

A penumbra fez os gêmeos despercebem o que estava parado esse tempo todo logo a frente deles.

A luz refletia nas superfícies plásticas e polidas de um par de olhos de botão. Negros e profundos. Como espelhos que transluziam os sentimentos e temores mais profundos da alma humana. Olhos de uma boneca de pano que fez a espinha dos dois se congelar simultaneamente.

Ela estava ali. Sentadinha e comportada. Do jeito como uma criança arruma durante as brincadeiras. Recostada sobre o amontoado do tapete que Brenda acabara de afastar. Não tinha como ela ter ficado ali o tempo todo. Aquele tapete havia sido movido. Não tinha nada ali a não ser por eles. Como, em sã razão, alguém poderia ter entrado na sala e ajeitado aquele brinquedo ali sem que eles percebessem.

Ainda segurando a tampa, Breno estremeceu.

— Acho que isso tudo foi uma má ideia. – disse ele.

— Hoje você está dizendo muito do óbvio.

— Vamos embora.

— Ok. – ela disse fechando o baú.

Foi quando o choque do piso vibrando atingiu os dois em cheio. As tábuas eclodiam com o impacto. A boneca que antes estava sentada avançou com um impulso impressionante na direção de Brenda. Ela deixou escapar um grito em espanto. Sentindo o brinquedo rasgar do ar na sua frente e sentindo a ardência dos flocos de poeira lhe invadir os olhos.

A boneca havia sido arremessada na direção dos dois.

Arremessada por uma força que eles não conseguiam ver.

Brenda sacudiu-se em desespero, mas estranhamente, a boneca não parecida desgrudar dos seus cabelos. Ela sentia o pano velho e imundo quente como uma bolsa térmica. Puxo a boneca pelas mãos e sentiu o estofamento de macela se movimentar entre os seus dedos, um movimento tão incomum, mas ao mesmo tempo tão normal. Um movimento que, se não fosse vindo de um brinquedo, ela julgaria ser de uma respiração.

A iluminação fraca revelou aos olhos da garota a imagem dos lábios de tecido da boneca, selados fortemente com a costura em linha. Era tão intenso que Brenda jurou ter ouvido sua imaginação lhe pregar peças. Ouviu um cochicho. Tão ameno, porém cheio de desespero que fez as orelhas dela formigarem. Suave como uma voz de uma criança que não era dela nem do seu irmão, que proclamou friamente entre as cavidades dos seus ouvidos que se mesclavam com as torções de suas entranhas agitadas:

— Socorro...

A lanterna escapuliu de suas mãos e desapareceu na escuridão dos móveis empilhados. Escuridão. Breno gritava em pânico sobre o que havia acontecido, sem enxergar nada. Os fios de lã do cabelo da boneca enroscavam-se nos de Brenda tão agilmente como se fossem serpentes emboscando as suas presas, asquerosas e peçonhentas. Brenda usou o fiapo de forças que tinha e arrancou a boneca pesada das suas mechas, sentido a macela se estufar e murchar rapidamente dentro dela como batimentos cardíacos, e os cabelos de lã se romperem num estalo chicoteador.

Por fim arremessou a quinquilharia longe. Ouviu o som do pano pesado acertando a parede. Em seguida sentiu a mão de Breno lhe passando de novo a lanterna. Eles se olharam apenas para se depararam com o rosto pálido um do outro. Ela jogou a luz no lugar onde havia jogado a boneca, mas ela já não estava mais lá. Agora só era possível ouvir o som característico eclodindo rapidamente entre os outros corredores da casa. Um ruído constante, pequeno e abafado. Passos fugitivos. Passos tão suaves e precisos como se os pés fossem feitos de algodão.

Nem precisaram falar mais nada. Os dois bateram em retirada. Fugindo pela mesma porta que haviam entrado.

 

 


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Notas finais do capítulo

OBS: Esse capítulo iria ser acompanhado com todas as fotos antigas que eu citei na história para ilustrá-la melhor além de dar mais riqueza à narrativa, mas o Nyah parace estar com algum problema, sempre só acaba indo uma imagem e as outras três não aparecer na versão final :(

Obrigado por ler até aqui, espero que esteja se divertindo. Está ansioso pra desvendar os mistérios do sítio? Bem, eu estou ansioso para contar para vocês rsrs. Se não for incômodo, lhe peço que me dê a sua opinião. Isso vai me ajudar a ter mais disposição para escrever novos capítulos. Nem sei se existe público que esteja realmente interessado em ler uma história que envolva o folclore e literatura nacional, mas enfim, vou tentar continuar escrevendo. Adeus