O Segredo do Pássaro Amarelo escrita por XCoelhoBranco666


Capítulo 1
Capítulo 1 - NARIZ DE PANO


Notas iniciais do capítulo

ATENÇÃO:

É recomendável que você pelo menos conheça o universo dos livros de Monteiro Lobato, na qual essa história se baseia, para você ter uma melhor experiência da mesma. Esse livro foi criado a partir de informações, lugares, nomes de pessoas e entre outros casos históricos verídicos. Entretanto, todo o enredo e mitologia criado em torno desses fatos não passam de mera ficção... Eu acho...



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Era julho. A paisagem mundana que podia ser vista através das janelas do carro em movimento era de certa forma apreensiva. O vento cortante parecia fazer o verde do capim esvoaçar em contraste a enorme claridade proporcionada pelo sol vespertino. A luz era forte, no entanto, a temperatura era amena. Perfeito. Como quaisquer férias de primavera deveriam ser.

    Já havia feito um bom tempo desde a última vez em que os irmãos Breno e Brenda haviam pisado no solo de sua cidade natal, Taubaté. A mãe passara o trajeto inteiro cantarolando no volante, ligando e desligando o rádio a procura de músicas que não fossem hits bregas da estação, e claramente empolgada com todo o passeio de duas semanas, tagarelando sem parar e sempre questionando os filhos se eles se lembravam de certos locais em que viveram os seus primeiros anos de vida nos seis anos passados.

    Os filhos, tão pouco exibiam essa animação. Ambos mal se falavam, no entanto sabiam o que o outro sentia. Um intenso tumulto de questionamentos confusos da cabeça até o estômago. Era difícil talvez contar se a mãe estava realmente interessada em rever a cidade em que teve os filhos com o antigo esposo ou se estava apenas absurdamente consumida pela abstinência da nova paixão que havia encontrado no tal lugar. Clara claramente ia se casar de novo. Os irmãos nunca a viram tão contente com um namorado igual nos últimos anos, aquela viagem com certeza seria apenas um pretexto para dar as boas notícias.

Breno bufou no banco de trás, ligeiramente se distraindo pelas mechas de Brenda que balançavam livremente pelo vento da janela entre aberta. Eles se lembravam da cidade muito pouco. Breno e principalmente sua irmã, bloquearam por completo todas as infortunas memórias nas quais foram acumuladas naquele lugar. A grande bola de neve que deu início em Taubaté e foi tomando forma, seguindo-os até nos dias de hoje. Eles decidiram concordar, mesmo sem falarem um com o outro, sobre fingir o esquecimento e a incompreensão daquele local. Seria como a primeira vez. A primeira vez no lugar que deixaram quando o pai os deixou.

Longo e deplorável conto que não era necessário reforçar em voz alta e nem nas linhas de um papel.

O garoto abaixou o volume do aparelho celular, retirando de leve os fones do ouvido para poder pegar a nova fala da mãe.

— Aí estamos! – exclamava em júbilo – Olhem só! A placa! A placa!

Os gêmeos levaram os olhares simultaneamente para as janelas esquerdas do veículo. A mãe diminuía a velocidade para que desse tempo para que os filhos admirassem junto a ela.

BEM VINDO A TAUBATÉ.

CAPITAL NACIONAL DA LITERATURA INFANTIL.

As primeiras casas davam os seus sinais de vida. Começavam pequenas e tímidas aqui e acolá, mas em seguida, a paisagem se abria para um caminho de construções decrescente. As casas iam ficando maiores e mais majestosas, exibindo suas arquiteturas neocoloniais exuberantemente opcionais ao tempo que insistia no passar das décadas em massacrar o artístico.

Taubaté não é o tipo de cidade que você pode classificar como pequena, mas também não pode classificar como grande. Era como um lugar já desenvolvido, no entanto, onde a população se mantinha de antigos hábitos e "notícias" se espalhavam por ela como ventos cochichadores.

Foi quando apareceu. A estátua central. Havia uma grande escultura que simbolizava todo aquele município da melhor maneira resumida possível. Uma imagem rochosa de Monteiro Lobato parado logo ao lado de sua personagem Narizinho segurando a sua boneca de pano Emília.

Não era a toa que Taubaté tivesse recebido o título de Capital Nacional da literatura infantil. Havia sido o lar de Monteiro Lobato. O maior escritor de histórias fantásticas que o país já havia visto. Praticamente todo aquele cenário municipal estava rodeado e enfurnado nas inspirações dentre outras coisas que levaram Lobato nas criações de seus livros.

— Incrível, não é? – Clara comentou com a filha.

Brenda tirou uma foto com o celular e em seguida abriu o caderno de notas que sempre levava consigo, tirando de trás da orelha um lápis e começando suas anotações, freneticamente entusiasmada.

Ela respondeu a mãe com um sorriso que não mostrava os dentes.

— Verdade mãe, incrível!

— Agora só temos que encontrar o Eanes – disse quase suspirando ao falar o nome do novo cônjuge – Temos que achar o hotel dele e guardar as coisas de presa. Não podemos perder tempo. Quero que vejam tudo daqui.

Se Brenda e Breno soubessem ao menos o que e o quanto vivenciariam a partir daquele simples monumento, teriam pedido para a mãe dar meia-volta e fugir daquela cidade para o bem de todos.

***

O carro parou logo em frente ao hotel que ficava no centro da cidade. Brenda saiu do banco da frente, assim que seus pés pisaram em solo taubateano, o pensamento eclodiu na sua mente.

"Úmido".

O clima do lugar era predominantemente úmido, nada que fosse absurdamente frio. Tinha sol, no entanto era nivelado. Talvez fossem apenas os sintomas da primavera atingindo o corpo dela, que já estava acostumado à temperatura intensa da capital São Paulo, movida a poluição dentre outros fatores. Ela passou o cabelo para trás da orelha, sutilmente atrapalhando a posição do lápis na sua orelha.

Breno veio por trás carregando algumas das malas e com os fones em torno do pescoço. A mãe o acompanhava com mais bagagem, entretanto, as soltou de imediato assim que a presença esperada saiu das portas da entrada do hotel.

— Clara! – Eanes exclamou em total comemoração indo ao encontro dela.

— Eanes! – ela respondeu com a mesma intensidade, deixando que ele a envolvesse num abraço.

— Fiquei preocupado que vocês talvez não conseguissem achar o caminho até aqui! Já estava indo te ligar. – dizia ele enquanto surrava o nariz próximo à bochecha dela.

— Hm... – Clara soltou um som num quase desdém – Ainda sou capaz de ter essa cidade na palma da mão.

Foi quando o novo homem lançou o olhar na direção da beirada da calçada, onde as crianças permaneceram na mesma posição durante todo o momento. Suas sobrancelhas arquearam-se instantaneamente, gesto de total surpresa, quase que falara "Ah!... É mesmo." Mal se lembrando da presença dos gêmeos. Ele se esforçou enquanto olhava para eles e esboçou um sorriso.

— São eles? – dirigiu a palavra à Clara. Que respondeu apenas assentindo enquanto olhava para os filhos em compaixão.

O homem se aproximou delas, Eanes não parecia ter uma diferença muito grande de idade em comparação a Clara, era relativamente baixo para alguém de sua idade, com o cabelo mal alinhado que revelava um pouco de calvície, olhos opacos, no entanto convidativos, além da camisa social com a marca do hotel no qual ele era o dono.

— Você deve ser a Brenda. – ele cumprimentou a garota abrindo os braços para lhe dar um abraço efetivamente caloroso – É ótimo finalmente te conhecer.

— Oi. Obrigada – respondeu simpática, desfazendo-se do abraço em seguida.

Eanes virou-se para o garoto, sorrindo afetadamente. Abrindo os braços mais uma vez com todo o entusiasmo que conseguia carregar.

— Você só pode ser o famoso Breno!

Ele se dirigiu para ir de encontro ao menino. No entanto, acabou sendo surpreendido por uma pontada de leve na barriga. Surpreso, Eanes se afastou um pouco para se deparar com a mão do garoto estendida para ele. Breno não dirigia um olhar hospedeiro e nem muito menos dizia palavra alguma. Eanes fechou a expressão e recolher os braços receptivos, dando a mão ao garoto e balançando-a.

— Desculpe... – Eanes completou sem graça – Prazer.

E com isso, voltou à Clara sem ter recebido a resposta do menino.

— Já reservei os quartos de vocês. Farei questão de que tenham o melhor conforto em quanto estiverem em Taubaté. – explicou enquanto voltava para a porta, Clara sorriu.

— Vamos. – ela fez um gesto para que os filhos continuassem a trazer as malas em direção da recepção.

Assim que entraram, foram surpreendidos pela jeitosa decoração do local, tudo fazia menção à arquitetura característica do município. Tudo falso. Mas era uma falsificação de primeira. Eanes fez um gesto para o recepcionista que assentiu ao apontar para o elevador.

*

Tropicando as malas para dentro do compartimento, não demorou muito para que todos chegassem ao andar determinado previamente. Eanes foi na frente, abrindo a porta para as crianças.

O quarto era como o resto. Jeitosamente minucioso à arquitetura. Era uma suíte com duas camas, havia uma grande janela que dava uma vista agradável do parque municipal de bem distante.

— O que acharam? – Clara arriscou a pergunta.

— Vamos ter que ficar juntos o tempo todo? – havia sido a primeira coisa que Breno tinha pronunciado desde quando chegou a Taubaté, e não havia sido nada agradável.

— Você gostando ou não. – a mãe respondeu na mesma tonalidade.

Breno deu de ombros e jogou algumas das malas sobre a cama mais próxima da janela.

— Eu gosto. – Brenda manifestou-se, atraindo o olhar do casal que mostrava satisfação.

— Fico feliz em saber disso – comentou Eanes sorrindo de orelha a orelha – Vou mostrar o quarto da sua mãe. É melhor se apressarem, em meia hora preciso ter vocês para o almoço. Tenho certeza de que estão todos com fome.

— Entenderam, não é? – Clara advertiu os irmãos, mais para Breno do que para Brenda.

Brenda assentiu, sentando-se na sua cama. O irmão pouco se importou. Ela deu um último aviso e Eanes fechou a porta. Deixando a suíte em que os irmãos haviam sido isolados em completo silêncio.

Eles se olhavam. Hesitantes.

Em algum momento, um dos dois teria que começar a conversa. Afinal, não poderiam apenas fingir que não percebiam a presença do outro durante duas semanas.

— Ela parece feliz. – Brenda teve coragem. Surpreendendo o irmão.

— Ela está feliz. – Breno respondeu dando a maior ênfase que conseguia na frase, e em seguida se jogando no espaço vazio que restava na cama. A luminosidade do meio dia foi de encontro ao seu rosto. Tão ironicamente radiante diante as emoções conturbadas do menino. Ele puxou o zíper da sua mochila ao seu lado e retirou com a ponta dos dedos o livro que ele tinha começado a ler um pouco antes da viagem.

Breno passou a imergir no universo dos livros num período relativamente recente. Antes, parecia uma atividade árdua para uma criança do jardim de infância que tinha dificuldades de aprendizado, mas, agora era um refúgio em que o pré-adolescente poderia desfrutar de um mundo, mesmo que temporário, em que ele não era forçado a crescer. Sim, seu livro favorito certamente havia sido Peter Pan.

A história que agora estava se aventurando era relativamente curiosa para a situação na qual estava inserido. Ele estava lendo um livro que contava sobre Martin Roque, um estudante que ganha uma bolsa de estudos numa faculdade na Inglaterra e com uma viagem inesperada ele começa a desvendar um mistério por trás do conto infantil "Alice no País das Maravilhas". Era tentador. Breno adoraria dar um escape do usual, seria incrível algo como naquela história acontecer com ele durante a viagem na sua terra natal. Mas o garotinho já sabia que a vida não era feita de finais felizes e nem de reviravoltas inesperadas, e sim de broncas de mãe e o detestável último pedaço de gengibre que sobra no final do prato que os pais sempre te obrigam a comer. E o que havia acontecido entre ele e a irmã naquela cidade há seis anos, estava apenas para provar a corrente de desventuras.

— Você já leu algum conto de fadas que tinha um padrasto malvado no lugar da madrasta? – a pergunta inocente de Brenda lhe acertou em cheio o coração sem que ele percebesse.

— Não sei não. – respondeu apenas ao abrir o livro nas primeiras páginas em que havia parado – Não me lembro de ter visto algo assim antes. – enquanto falava observou o caderno de notas aberto próximo às coisas da irmã – Talvez você devesse escrever sobre isso.

Brenda pulou do colchão.

— Isso é um disparte em relação à minha futura profissão – disse ela empinando o nariz, dando ênfase na palavra disparte, que acreditava ser importante para alguém da idade dela dizer – Uma jornalista sempre deve citar apenas os fatos. – reproduziu como se houvesse decorado um texto – Você era quem deveria escrever esse conto. Está sempre enfurnado em livros fantasiosos.

— Cedo demais para falar isso Brenda.

— Não entendi.

— Nós ainda não sabemos se a coisa do "padrasto malvado" será uma fantasia ou um fato.

*

A construção do lugar era tão majestosa e caracterizada que os irmãos nem acreditaram estar num restaurante. Eanes havia levado todos para um estabelecimento chamado Moinho Restaurante. Que, pelo o que o cônjuge havia dito, era muito bem falado por todos na região. Eanes já se precipitava, querendo saber de tudo sobre os gêmeos. Na maioria das vezes, ele respondido com uma simples resposta ou com um aceno de cabeça.

— Então, pelo o que sua mãe me falou, você quer ser jornalista quando crescer?

Brenda apenas assentiu, acanhada, mas tentando manter uma posse direita. Clara lançou lhe um olhar para se esforçar melhor, no entanto ela respondeu tomando um gole do refrigerante. Numa saia justa, Clara se impôs.

— Ela é muito inteligente Eanes. Brenda se inscreveu num concurso de escrita informativo para o público infanto-juvenil nesse mês. Ela vem pensando sobre o que escrever desde o começo do ano.

— Jura?! – disse Eanes inclinando-se mais para o lado da garota, mostrando interesse – Pois saiba que você veio no lugar certo Brenda! Taubaté tem um ótimo passado em relação ao jornalismo e literatura. Tenho certeza que aqui você conseguirá muita informação importante para a sua... – ele parou tentando descobrir sobre exatamente Brenda escreveria.

— Reportagem. – ela completou, o homem sorriu em resposta – Sim, eu li sobre na internet. – ele fez um gesto para o caderno de anotações próximo a seu prato.

Clara e Eanes se olharam, já tinham terminado o almoço, mas as crianças continuavam a mordiscar os restos do prato. A mãe lançou o olhar na direção do filho e cutucou Eanes, o garoto espiava nada discretamente as páginas do livro que estava lendo. Parecia mais interessante e, inocentemente, ele se mostrava negligente à situação.

— Breno... – a mãe começou a advertir, não gostava quando o menino lia na mesa, muito menos num espaço público. Eanes fez um gesto para ela, contendo-a. Em sinal de que poderia segurar a situação.

— Você também gosta de escrever como a sua irmã Breno? – ele perguntou.

— Não.

— Você parece gostar muito de ler. Também nunca pensou em jornalismo ou algo assim?

— Gosto de ler coisas boas.

— O que você acha que são "coisas boas"?

— Coisas que eu leio.

— E o que você está lendo?

— Histórias que nunca aconteceriam na vida real.

— Ei! Espera aí! – Brenda colocou-se entre a conversa – Os fatos que são escritos no jornalismo não são coisas chatas!

— É sim! Notícia chata de gente chata!

— Pode parar, não é não.

— É sim. Chata que nem você!

— Eu não sou chata! Você que é uma criançona e só lê livros de criança!

— Breno e Brenda! – a mãe esbravejou no meio do estabelecimento, antes que a situação se agravasse e ela tivesse que passar uma vergonha maior. – Deu. – colocou a ordem entre os dentes. As crianças se conterem, Brenda fez a expressão de maior desgosto que ela conseguia reproduzir e Breno deu de ombros e abriu o livro bem aberto entre os pratos para que todos pudessem ver. Ele sabia que a mãe odiava a leitura na mesa, e aquela era uma forma que Breno tinha de dizer "você não tem controle total da situação".

Eanes respirou fundo.

— Breno, as coisas da sua irmã não são chatas...

— Vai ficar do ladinho dela. – fez birra baixinho.

— Não é isso, as suas coisas também não são chatas. – Eanes se sentiu entre paredes, pensou um pouco e por fim continuou – Se pudesse fazer uma história, sobre o que contaria?

— Sobre um menino sortudo que não nascesse sendo irmão da Brenda.

— Mãe! – a menina virou-se histérica – Olha só ele começando de novo!

— Breno! – Clara se ergueu e puxou a capa do livro, que deslizou para o outro lado da mesa.

— Ei! Não é justo. – ele protestou, agora falando em alto e bom tom diferente das outras vezes.

— Para de ler e come o que sobrou do seu almoço! E calado. – ela mandou. O garoto olhou de soslaio para o que tinha ficado no prato em que a sua mãe havia feito. Gengibre.

— Não vou.

— O quê? – A mãe sussurrou, aproximando o ouvido dele, fingindo desentendimento – Repete isso mais uma vez.

O garoto contraiu o pulso, olhava para o alimento de aparência nem um pouco convidativa para o seu paladar. Sentiu a térmica lhe subir as veias.

— Devolve meu livro. – a sua voz falhou em meio a um soluço.

— Come o gengibre Breno.

— Não.

— Então eu acho que você não vai ter o seu livro pelo resto da viagem.

Breno sentia suas pequenas mãos vibrarem, a última vez que ele sentiu aquilo foi durante os seis anos. A sensação gélida subindo do estomago e irradiando através dos seus fios de cabelo. O sentimento da perda. O livro era a coisa mais importante para ele naquela semana e agora ele não tinha mais. Ele perdeu a coisa mais importante para ele de novo e por culpa da mesma pessoa.

— É tudo culpa sua. – ele disse entre os dentes o rancor que transbordava em ódio, olhando de soslaio diretamente nos olhos de Brenda. Se uma gota da saliva de Breno escorresse da sua boca, certamente iria ser o suficiente para corroer o estofamento da cadeira em que estava sentado – É tudo culpa sua de novo.

— Não é culpa minha se você não quer comer o gengibre. – ela disse desviando o olhar, tentando não transparecer o abalo.

Breno se levantou. Ainda sem tirar os olhos da irmã. Ele se aproximou dela, ficando próximo o suficiente para que Brenda sentisse a corrente elétrica de raiva que dominava o garoto evaporando por seus cabelos. Mais intimidador impossível.

— Já que você gosta tanto dos fatos, porque não usa a sua reportagem para contar pra todo mundo a verdade.

— Breno, já pedi pra parar com isso. – ela insistia, afastando o rosto.

— Vai! Conta pra todos que foi você quem matou o meu pai.

— Breno! – Clara se levantou, o grito ecoou por todo Moinho restaurante, fazendo todos os clientes presentes se calaram em temor diante o baque repentino. Mais um pouco e Clara derrubaria a mesa com tudo em cima – Já passou dos limites! Vai esperar lá fora!

— Devolve meu livro. – Breno sentiu as lágrimas quentes lhe atingirem o rosto.

— Lá pra fora! Agora!

O menino tentou falar mais alguma coisa, sentiu um nó na garganta e as palavras se misturarem dentro de si como um turbilhão de emoções. Apenas abaixou a cabeça e saiu batendo o pé. Clara o seguiu com os olhos sem se preocupar com o que poderia lhe acontecer lá fora. Ao se virar para a filha, Brenda continuava na mesma posição, com a expressão atônita e pálida.

— E você... – a mãe continuou dirigindo-se a ela, a menina ergueu o olhar cautelosamente como um cãozinho com o rabo entre as pernas – Você se acha muito madura, mas ainda tem muito o que aprender.

Assim que finalizou, sentou-se, se deparando com a expressão difusa de Eanes que tentava se manter firme e forte. Brenda suspirou ainda conturbada.

— E-eu... Eu vou no banheiro. – disse descendo da cadeira, a clientela seguiu a menina com os olhos, e o clima no restaurante foi se estabelecendo na medida em que ela desaparecia de vista nos fundos da construção.

Clara suspirou, apoiando a cabeça entre as mãos. Exausta.

— É sempre assim? – Eanes sussurrou tocando o ombro dela.

— E isso porque ainda são 'pré-adolescentes' – disse demarcando o desconforto que sentia diante da expressão que definia suas crianças, a expressão na qual ela não confiava muito – Imagina daqui a alguns anos...

Eanes afagou o cabelo dela.

— Isso é por causa do seu primeiro esposo?

— Sim. – ela disse soltando o ar.

— Olha... – Eanes se preparou para o que iria pedir – Eu sei que você já me contou a história, mas... Porque exatamente o Breno disso aquilo pra irmã dele?

Clara dirigiu o olhar a ele, ela via que não havia maldade no que perguntava. Eanes era dócil e compassivo, só queria ajudar. Clara tomou controle das rédeas de seu coração e começou.

— Tem algo que você não sabe. – ela disse calma e pausadamente – Ele sofria de derrame crônico, como você já bem sabe. Quando as crianças começaram a crescer, os casos dele começaram a ficar piores. E isso foi bem no tempo em que eu tinha conseguido a vaga de enfermeira no hospital regional de São Paulo. Eu não tinha tempo o suficiente para olhar os meninos... E nem o pai deles. Cada semana era um novo incidente, eu tinha que ficar de olho nele e dar assistência médica todos os dias. – ela fez uma pausa, Eanes segurou a mão dela – Até que chegou a noite. Quando as crianças tinham seis anos, eu estava sozinha com as crianças. Breno já estava dormindo e Brenda ainda parecia bastante acordada. Eu tinha recebido uma ligação de emergência do hospital e tive que correr. Não tive tempo para nada. Eu confiei a saúde do meu marido nas mãos de Brenda. Disse a ela que se o papai começasse a agir estranho ou pedir por ajuda que era para ela me ligar imediatamente, assim eu mandaria ajuda médica para lá. Depois de horas, recebi a ligação. Não era Brenda, e sim o Breno. Estava chorando muito. Corri imediatamente. – Clara segurou um soluço – Brenda viu o pai ter o derrame e ficou assustada, assustada o suficiente para que ela não conseguisse se mexer nem falar. Foi só depois que tudo aconteceu que ela deu o grito que acordou Breno. Quando eu abri a porta do quarto, ele estava lá sacudindo o pai. Ele berrava com a Brenda "Porque você não ligou?! Porque você deixou o papai assim?!" várias vezes sem parar. Ele já havia partido e não houve nada que eu pude fazer.

Eanes passou o braço por cima do ombro de Clara, que lutava contra as emoções.

— E desde então... – ele prosseguiu com o discurso que ela não conseguia manter – Breno passou a culpar a Brenda, não foi isso?

Clara assentiu.

— Mas, pelo menos, vejamos pelo lado bom. Se não fosse por isso, nós nunca saberíamos que Brenda portava a síndrome do pânico. – a mulher tentou esboçar um sorriso a Eanes, num sinal que demonstrava ela estar bem. – O que me incomoda é o fato de eles não terem superado isso ainda entre os dois. Sei que são crianças que foram forçadas a crescerem com uma experiência traumática. Mas não posso deixar que eles cresçam com a mente assim.

— Você quer que eles se deem bem?

— É tudo que eu vim tentando durante esses anos.

— Leve eles ao Sítio do Pica-Pau Amarelo.

Clara virou o rosto na direção do conjunge com a sua expressão estampada pelo desentendimento e confusão.

— Que?

— O parque Monteiro Lobato. Esse será o melhor para os dois. Venhamos e convenhamos Clara, Taubaté não é chamada de "a capital da literatura infanto-juvenil" à toa. Eu já estive nesses lugares. Todos os anos, várias crianças vão para lá, a maioria em excursões de escolas. Eles fazem sempre essas atividades em dupla, onde eles têm que completar tarefas sobre a vida do autor e coisas assim. Tem até acampamentos no período das férias.

— Você está querendo prender os dois em correntes e obriga-los a gostem um do outro.

— Não Clara, não mesmo. Isso é a cara dos dois. Imagine um lugar que misture a história do passado do maior escritor infantil que o Brasil já viu, imagine isso para a reportagem de Brenda. E outra, o lugar é praticamente de onde vieram todas as inspirações de cenários reais para Lobato criar o mundo mágico do sítio quando era vivo, Breno estará praticamente vivendo num mundo de fantasia dentro da vida real. Claro, não é capaz de fazer os dois se gostarem para vida, mas com certeza eles se divertirão muito juntos. Nem que só por essas semanas.

Clara estava atônita, sentia uma centelha de esperança chamuscar no fundo da sua alma.

— Você é incrível Eanes. Obrigada. Vou providenciar isso.

— Eu providencio. – ele disse segurando a mão da mulher com mais força – Você vai passar sobre isso Clara, eu sei que vai... Nós iremos passar. Se Deus quiser.

***

— Já estou entediado só de ouvir. – Breno resmungou assim que ouviu a mãe falar sobre o lugar no qual eles iriam.

— Pois eu tenho a absoluta certeza de que você e sua irmã irão adorar o museu.

— Não gosto de museus, eles são empoeirados – retrucou.

— Não esse Breno, o do Monteiro Lobato é um museu em céu aberto da vida real. Ele mostra a fazenda que ele morou com vários pontos que serviram como cenários dos livros que ele escreveu.

— Mas, só vai ter gente velha e metida a inteligente.

— Ouvi dizer que a maioria são crianças da sua idade.

— Tenho a opção de voltar para São Paulo?

Clara ignorou e voltou-se à Brenda.

— O que você acha?

Brenda permanecia reclusa, Clara não se importava, era mais fácil Brenda acabar reclamando que queria um museu empoeirado e com gente velha metida a inteligente. A menina assentiu, ela via claramente o que a mãe estava tentando fazer com tudo aquilo, e ela não iria impedir. Brenda já poderia ver o quanto Clara tentava e sofria com aquela situação. Ela não faria as coisas mais difíceis.

— Acho que vai ser muito legal. – respondeu.

— Ótimo. – Clara assentiu em demonstração da sua satisfação. O ônibus por trás deles abriu as portas. Era um veículo diferente, dedicado exclusivamente as áreas de turismo. Tinha os símbolos de Taubaté estampados em torno de toda sua lataria reluzente, que aumentava a sensação seca que pairava naquela mesma tarde. As crianças ajeitaram as suas mochilas sobre as costas e em seguida lançaram um olhar à mãe que estava transbordando de insegurança. – Não se preocupe – ela os acalmou – estarão seguros nesse, caso precisem de alguma coisa é só falarem com alguns dos atendentes do parque. Todos conhecem o Eanes e o hotel.

Eles assentiram, mas foi um daqueles que transpareciam a trégua. As crianças já estavam cansadas de negar o passeio então apenas se deixaram levar. Breno deu os primeiros passou e foi para dentro do ônibus, Brenda voltou para dar um beijo na bochecha da mãe.

— Se divirtam. E juízo.

— Tchau mãe. Te amo.

— Também te amo linda.

Brenda já acenava para Clara através das últimas janelas sujas do ônibus, a mãe respondeu com beijos no ar, até que a poeira levantou e a fachada conhecida do hotel passou a ser substituída pelo cenário neocolonial do município.

A garotinha colocou a mochila entre as pernas assim que se sentou sobre o banco com o estofamento velho e encardido. Breno se esforçava para observar a paisagem através das janelas opacas enquanto ajeitava um dos fones no ouvido. A sua irmã puxou o zíper da bolsa, rapidamente revirando-a.

"Aposto que vai ser o caderninho." Breno debochou em seus pensamentos ao olhar de soslaio.

— Toma.

A ponta áspera do objeto havia ido de encontro ao braço de Breno. Ao descer o olhar, o garoto soltou um baixo som em sobressalto. Brenda lhe estendia o livro que ele estava lendo.

— Como foi que...? – indagou gaguejando.

— Peguei da bolsa dela quando ela não via. – explicou Brenda.

Breno desfez o olhar turvo e abocanhou o objeto com as mãos, repleto de êxito. Conteve o canto de vitória ao ver o marcador ainda residindo nas primeiras páginas. Brenda apenas recostou sobre a cadeira, enquanto observava a paisagem mudar lentamente, as mais diversas construções majestosas se moldando cada vez mais em casa medíocres que se mesclavam com a vegetação, até que enfim, nada mais sobrara além das árvores da área rural de Taubaté.

*

Havia uma enorme placa logo na entrada do lugar, de madeira e entalhada com os dizeres "Sítio do Pica-Pau Amarelo" do jeito mais decorado e atraente possível.

O coração de Brenda deu um pequeno salto em exaltação. Ela estava prestes a conhecer o lar de um dos escritores mais importantes do país, ninguém na idade dela iria ter alguma história como aquela para contar no concurso de jornalismo mirim.

Ainda contendo a animação ela ultrapassou a porteira, deparando-se com um verdadeiro parque. Crianças menores corriam entre os mais velhos e se penduravam nos galhos das árvores, a maioria acompanhada pelas famílias que faziam piqueniques no gramado onde residia um majestoso coreto repleto de pinturas com os personagens de Lobato.

Brenda suspirou em encanto. Não por julgar a submissão imaginativa de uma criança que acreditava estar no verdadeiro lugar em que sonhava enquanto lia dos livros do Pica-Pau Amarelo. Mas sim, pelo valor histórico em que iria carregar em mãos. Aquele lugar seria perfeito.

Havia uma menina totalmente tomada por uma vestimenta repleta de retalhos e remendos coloridos, usando uma peruca de mechas de tecido, fazendo uma clara representação da personagem Emília em um verdadeiro arco-íris de linha que enchia os olhos das crianças mais novas ao redor dela. Com certeza uma das funcionárias do local. Os meninos, curiosos, tocavam os braços da moça e corriam até os pais com as eufóricas perguntas "É a Emília mesmo? Ela é de pano de verdade?".

Breno sorriu ao ver aquilo, era certo de que sua idade não passava de 6 a 7 anos de diferença daquelas crianças, ele não acreditaria na Emília. No entanto, aquilo lhe trazia memórias de uma certa época em que ele provavelmente poderia acreditar.

— Ouvi dizer que o rabicó está escondendo um tesouro minha gente! – ela atuava muito bem para alguém da idade aparente dela, fazendo a voz aguda da personagem, enquanto rodopiava na entrada da casa.

"A casa..." Brenda refletiu observando a construção. Não era nada majestosa. Parecia uma simples moradia de roça, toda branca, com poucas janelas. Também havia uma enorme cruz que havia sido fincada no pátio de terra logo em frente a ela. "Nada muito surpreendente para um monumento."

— Ora, ora! – exclamou uma voz em tom de surpresa, saindo por de trás da porta, estava a mulher que interpretava a Narizinho. Vestida com roupas juvenis. Essa sim era bem mais velha do que a funcionária vestida como Emília, e as duas, estranhamente, se pareciam – Essa boneca espevitada está sempre inventando histórias. É uma mentirosa, isso sim!

— Não é. Não é. – Emília bateu o pé demonstrando sua indignação. – O rabicó tem um tesouro, eu juro.

— Ora, se está dizendo a verdade por que não prova então? Onde está o tesouro.

— Ouvi dizer que está escondido no campo de futebol, perto da estátua da dona Benta!

— Tem um campo de futebol aqui? – Breno comentou com a irmã.

— Qual o problema? – ela quis saber.

— Estranho eles construírem algo assim num lugar que era para ser um patrimônio.

Brenda parou por um momento diante a observação do irmão. Ela agitou a mochila.

— Tem razão. – disse ela abrindo-a e em seguida retirando o seu caderno – Eu posso descobrir isso agora. – sorriu sem mostrar os dentes ao retirar o lápis da orelha.

— Então, vamos! – Emília retrucou ainda na conversação com Narizinho, enquanto fazia um gesto para o resto das crianças seguirem ela – Vamos até lá que eu mostro!

E assim se foram. Deixando apenas "Narizinho" interagindo com as outras poucas crianças que restaram.

— Boa tarde. – Brenda a cumprimentou assim que se aproximou.

— Olá! – a mulher a saudou sem sair do foco do personagem.

— Eu me chamo Brenda. Estou fazendo uma reportagem sobre Monteiro Lobato e Taubaté. Você poderia me responder algumas perguntas?

— Uma reportagem?! – exclamou ela levando as mãos no rosto, fingindo a surpresa de uma garota ingênua – Eu adoraria ajudar.

— Ok. – Brenda analisou enquanto rabiscava as páginas pautadas – Esse lugar existe há quanto tempo?

— Uns 130 anos mais ou menos. – respondeu – Mas só virou um parque recentemente.

Não muito interessado na interrogação, Breno escapuliu para dentro da casa, mais interessado em ver os possíveis cenários em que as histórias do sítio ocorriam.

— Quem morava nessa casa exatamente? Além de Lobato?

A mulher franziu o cenho diante das questões da menina. Parecia questionar a si mesma sobre aquilo rapidamente.

— Acho que alguns tios dele. Ou talvez os pais.

— Acha?

"Narizinho" parou um pouco, a sua expressão radiante de nariz arrebitado saiu de foco. Quebrando o personagem.

— Não estamos permitidos de falar tudo sobre esse lugar. – a mulher respondeu em sua voz normal.

— Porque não podem? – Brenda questionou assustada.

A mulher arqueou as sobrancelhas, demonstrando uma espécie de espanto com desconforto diante do que ouvira. Em seguida voltou as mesma expressões de antes.

— Oh, me desculpe. – exaltou a voz de Narizinho – Eu disse errado. Não é que não estamos permitidos, é que na verdade eu não sei. Uma garotinha curiosa como você deveria tentar descobrir.

— Mas...

— Porque não vai com as outras procurar o tesouro do rabicó? Tenho certeza que a Emília inventou uma boa história dessa vez. – ela apenas interrompeu as perguntas de Brenda, deixando o personagem tomar conta enquanto se afastava dela com as outras crianças – Vamos! Vamos encontrar o tesouro!

Brenda ficou deslocada. Sem entender muito bem o que havia acontecido, correu para dentro da casa a procura do irmão. Ela topou com as paredes contendo algumas imagens antigas das feições de lobato. E também com uma pequena sala com uma estante repleta de edições antigas dos livros do autor.

— Breno? – chamou.

— Aqui. – respondeu não muito longe. Brenda logo o seguiu apenas para se deparar com o irmão observando a mobília da cozinha antiga. – Olha só, isso é demais. É praticamente a cozinha da Tia Nastácia, igual nos livros. – comtemplou Breno com os olhos graúdos diante das panelas de cobre que estavam penduradas próximas ao forno à lenha.

— Breno, nem chegue perto. – Brenda já chegou advertindo, reconhecendo o irmão que tinha – Isso são objetos raros. Melhor nem pensar em tocar.

— Tocar desse jeito? – Breno provocou acertando o palmo em cheio no fundo de uma das panelas, observando a irmã se corroer em desgosto. Foi assim que o pequeno barbante que sustentava uma delas se rompeu, o cobre escapuliu das mãos do garoto e a panela acertou em cheio o piso do aposento. O som metálico e estridente do material correu por todos os cantos. Brenda enrijeceu os dedos em fúria.

Breno já foi logo se abaixando para recolher o erro que havia causado sem intenção.

— Olha o que você fez! – ela berrou – Eu avisei! Isso é raro, podemos ter inúmeros problemas se quebrarmos alguma coisa aqui!

Ao pegar a panela, Breno estava prestes a assumir a culpa quando seus olhos flagraram algo incomum. Fazendo suas sobrancelhas se arquearem num quê de desconfiança.

— Só se for um problema numa loja de 1,99. – ele disse impondo o seu tom duvidoso.

— Como? – a menina indagou sem entender nada.

— Brenda, isso aqui é mais falso do que aquele hotelzinho do Eanes.

— Como?! – ela insistiu, incrédula.

— Dá uma olhada. – ele chamou – Isso não é cobre. Lembra-se daquela vez que tivemos que pegar as panelas da vovó? Pois é, era pra ser bem mais pesado, isso aqui é puro alumínio.

— Não vejo nada demais nisso. Vamos sair daqui.

Breno revirou os olhos em desdém e levou o cabo da panela até os olhos de Brenda para que ela desse uma boa olhada. Havia um resto de uma etiqueta de código de barra que tinha tentado ser, miseravelmente, arrancada.

— Código de barras no século XIX, não é mesmo? Também não vejo nada demais nisso. – o irmão evidenciou o tom de superioridade.

— Não creio. – Brenda soltou o maxilar e em seguida encarou Breno.

— Não é tudo, olha o carimbo. – ele apontou. Havia uma marcação nos fundos do metal, e dizia: "Propriedade do teatro municipal de Taubaté" – Isso aqui é pura figuração. Tem algo de muito estranho nisso.

— Talvez seja só isso. – Brenda argumentou, tentando contornar a gafe.

Breno apenas fez que não com a cabeça e apontou sorrindo para a placa que estava próxima a porta. A mesma placa que dizia que eram os mesmos objetos usados pelos primeiros moradores da casa.

— Absurdo! – Brenda levou a mão aos lábios. Perplexa. Uma fraude descaradamente feita.

— Fala isso na sua notícia. O "Sítio do Pica Pau Amarelo" é uma mentira. – sugeriu Breno.

— Não tem lógica. Eu olhei na internet mais cedo e nos livros. – ela já estava começando a expor as suas meticulosidades nas pesquisas e artigos quando os dois foram interrompidos por alguém que limpou a garganta do lado de fora do aposento. As espinhas dos dois gelaram, evidenciando o flagra em algo errado em que estavam fazendo. Virando os olhares simultaneamente apenas para se encontraram com a mulher que estava vestida de Narizinho.

— Achei que tinha mandado vocês irem caçar o tesouro com a Emília. – ela mantinha a expressão fechada e sua voz normal, completamente fora da personagem, Brenda não pode deixar de perceber o sotaque francês que nela continha e também o tom hostil nada agradável.

Os irmãos abriam e fechavam a boca, perdidos e tentando encontrar alguma explicação rapidamente.

— Só estávamos olhando – Brenda precipitou-se.

— Já olharam demais.

— Eu preciso te fazer mais algumas perguntas.

— Aqui tem regras a serem seguidas, sabiam? E nesse momento a regra é: vocês fora daqui agora.

Os dois gêmeos ficaram parados na mesma posição. Incrédulos com o mandamento da funcionária. Entretanto, saíram sem dizer uma palavra, não estavam afim de causarem mais problemas. A mulher os seguiu até a saída o tempo todo, retrucando e vendo os dois de afastarem até o campo de futebol, gritando mais algumas barbaridades. Era certo de que eles haviam agido errado, porém, o que haviam encontrado na cozinha era mais errado ainda. E aquela cisma toda daquela funcionária estava se apresentando curiosamente bizarra.

— Algum problema? – a voz aguda perguntou ao ver as carinhas chocadas dos meninos. Brenda ergueu o olhar e encontrou a menina que estava interpretando Emília. Radiantemente enfeitada em meio aos seus te-rê-rês de retalhos fluorescentes. Sua voz realmente havia preocupação. – Nós já descobrimos o tesouro.

— Aquela Narizinho tem o nariz mais arrebitado do que eu esperava. – Brenda resmungou o seu trocadilho. A menina riu.

— Me desculpe.

— Não tem porque se desculpar.

— Na verdade, tenho sim. A "Narizinho" é a minha mãe.

Brenda soltou um som. Um som que não evidenciava tanto surpresa, mas sim uma confirmação.

— Então é por causa disso que eu achei vocês duas tão parecidas. – refletiu em voz alta.

— Jura? – a menina sorriu. Os irmãos a observavam, ela não estava tão forçadamente dentro do personagem igual era com as crianças mais novas, na verdade, ela parecia ter exatamente a mesma idade do que eles. – Meu nome é Amanda. – disse baixinho com medo de quebrar o encanto que residia nos pequeninos – E vocês?

— Breno e Brenda. – disse o garoto.

— Legal conhecer vocês. Não vem muitas pessoas da minha idade por aqui. – Brenda quase se perdia nas palavras de Amanda. A garota tinha algo de diferente. Incomum. Eram as suas pupilas ou seus dentes ao sorrir. Ou uma incrível mescla assustadora dos dois. Amanda tinha olhos absurdamente escuros e suas pupilas eram enormes, quase ocupavam todo o glóbulo ocular. Pareciam ficar mais graúdos na medida em que ela os mexia, nadando num líquido negro e viscoso, que iam estourar a qualquer momento, numa explosão de uma escuridão receosamente desconhecida. E os dentes dela. Os caninos eram mais pontudos e pareciam mais afiados que o normal, não que isso fosse ameaçador. Era macabramente fofo aos olhos de Brenda. E para completar as estranhezas, Amanda ainda carregava em torno do pescoço, amarrado como um colar, um pedaço quebrado de um espelho. Algo que ela não se lembrava ter haver com a personagem Emília nos livros e nem em lugar nenhum.

— Adorei o seu apetrecho. – Brenda comentou em relação ao caco.

— E eu adorei o seu... Brinco. – Amanda elogiou com certa incerteza.

— Que brinco?

A menina apontou para a orelha da irmã de Breno, o lápis que residia por trás da orelha dela, e deu uma breve risada.

— Ah! Isso... Bem na verdade eu estou trabalhando numa reportagem. – disse puxando o objeto pelo lóbulo e já abrindo as páginas de seu caderno.

— Que emocionante. – comemorou Amanda discretamente com pequenas palmas. – Posso ser uma das entrevistadas?

— Sem sombra de dúvida. – Brenda afirmou – Tem algo muito curioso que eu e meu irmão percebemos aqui. E eu, como futura jornalista, me sinto obrigada a expor a verdade.

Amanda parou por um instante.

— Seria o que eu estou pensando?

— Você vai poder me ajudar, não é? – Brenda pediu com jeito.

Amanda olhou para os lados. Parecia à procura de alguém ou algo. Ela começou a agitar os braços, mostrando seu nervosismo. Em falar em braços, Brenda não pode deixar também de se assustar com a absurda magreza de Amanda, era quase cadavérica. Seus dedos eram tão esguios que Brenda acreditava que se tirasse a manga de pano, que ela usava como a personagem, acabaria por dar de cara com o puro osso exposto de Amanda. Até que por fim, a "Emília" suspirou.

— Você quer expor a verdade, não é? – ela perguntou se certificando, com a voz mais baixa impossível.

— Sim.

— Vou contar um segredo. Mas por favor, não mencionem de jeito nenhum que fui eu quem contou. Eu posso fazer a minha mãe perder o emprego dela, no entanto, eu e ela já estamos cansadas de ter que apoiar a mentira que é esse "sítio".

— Como é? – Breno se aproximou intrigado.

— Exatamente o que ouviram. Esse não é o Sítio do Pica-Pau Amarelo de verdade. Não é o sítio em que Monteiro Lobato viveu.

Brenda e Breno se encaravam simultaneamente.

— Nós já tínhamos as nossas desconfianças.

— Já? – Amanda indagou.

— Os artefatos "raros" da cozinha não pareciam ser tão raros assim. – Breno continuou.

— E não para por aí. – impôs Amanda – Olhem só, uma "casa com mais de 130 anos" na qual o piso não range e o telhado não tem goteira. Fala sério, né? Olhem em volta, a posição uniforme em que as árvores foram ordenadas, os bancos... Isso foi claramente construído para ser um parque, nunca que alguma construção do século passado teria um aspecto desses. - Na medida em que a garota revelava, Brenda anotava tudo freneticamente no seu caderno. – É o governo. Ele praticamente obrigou a construírem esse lugar para esconder o máximo possível a fazenda na qual Lobato viveu de verdade.

— Qual é? – Brenda se empolgou, incredulamente intrigada – Como? Tem alguma ideia do porque de alguém quer estar escondendo o sítio verdadeiro?

— Amanda!

O grito fez a menina tomar um susto. Ela olhou para trás e viu a sua mãe Narizinho, chamando-a. Ela voltou-se aos irmãos com o rosto tomado pelo medo.

— Olhem bem, eu não sei ao certo. São coisas que minha mãe já me contou. Acho que seria ótimo se você descobrisse – Amanda explicou dirigindo o 'você' a Brenda com o caderno – Mas eu sei qual é o local de verdade. Chama-se Fazenda Buquira, não fica muito longe daqui. Mas vocês devem correr, ela sempre fecha antes do anoitecer, entrar lá depois do pôr-do-sol foi proibido até mesmo pelo ministério da cultura. Boa sorte.

E com isso, virou-se e foi-se embora.

*

— Isso tudo é inacreditável Breno! – a sua irmã exaltava-se cada vez mais dentro do ônibus de turismo enquanto lia no seu tablete sobre os casos entre as duas fazendas – Tem uma enorme polêmica que ronda a relação entre a Fazenda Buquira e o Sítio do Visconde, como é chamado o outro. Por mais de um século é motivo de debate qual é o verdadeiro sítio. E tem mais, o jornal O Globo apontou que os documentos que eram para comprovar a veracidade dos dois desapareceram misteriosamente. Isso tudo é estranho. É como se alguém estivesse por trás das cortinas, trabalhando para que ninguém venha ao sítio verdadeiro.

— Você diz como uma constipação? – perguntou Breno.

— A palavra correta seria "conspiração" Breno. E sim. – corrigiu.

— Legal. – ele suspirou se acomodando aos solavancos do ônibus.

— Qual é Breno? Vai me dizer que não está interessado nisso tudo? Não falo apenas sobre a minha história, mas sobre a sua também. Imagine o quão incrível isso seria para o início de um romance de aventura ou de mistério.

Breno olhou de relance para a capa do livro que lia.

— Então, estamos indo para a suposta fazenda real?

— Sim. – Brenda sorriu apertando o caderno com força, onde residiam as palavras de Amanda anotada: "Fazenda Buquira." A garota ergueu o olhar apenas para ver ao longe, a placa emergir de dentro dos arbustos.

BEM-VINDOS AO VERDADEIRO SÍTIO DO PICA PAU AMARELO.


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Notas finais do capítulo

Bem, aqui está. Revelado o meu projeto novo ^^. Acho que os que leram "Em Busca do País das Maravilhas" vão adorar esse. Espero que tenham gostado desse início, o próximo capítulo já chega essa semana e aguarda vocês repleto de surpresas. Seguinte, eu nunca fui em Taubaté, então estou aceitando ajuda/correções/sugestões de quem mora lá ou já visitou. Manifestem-se, me digam o que estão esperando desse livro (que vai ser volume único e postado inteiramente aqui no wattpad, nyah, entre outros..). Até - Coelho.
To com medo de ninguém ler justamente por eu não ter encontrado a categoria "Sítio do Pica Pau amarelo" no Nyah. Mas ok ^^



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