Contando as horas escrita por Liv Marie


Capítulo 1
Capítulo 1




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Prólogo

Há momentos na vida em que nos esquecemos que cada decisão tomada, deliberadamente ou nascida de um impulso; conscientemente ou não, pode conter o peso de eventos decisivos; peso que por vezes não estamos preparados para assumir ou carregar sozinhos. Eventos que são registrados em nossas memórias com o gosto amargo do arrependimento e a aspereza presente no ato de remoer o que poderia ter sido, mas não foi. O “e se”.

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Capítulo 1.

Quando o celular de Lalo tocou no meio de uma apresentação a um grupo de patrocinadores, o nome de Grace piscando insistentemente no visor enquanto o aparelho vibrava sobre a mesa de vidro, ele imediatamente apertou a tecla rejeitar, encaminhando a chamada ao seu correio de voz. Naquele momento, jamais poderia Lalo imaginar que esta talvez fosse a última vez em que ouviria a voz de sua melhor amiga. E que aquele instante e aquela escolha, custaria noites e noites em claro, noites em que suas lembranças o visitariam transvestidas de assombração, lamento e culpa.

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Com o melhor de seus sorrisos, Lola acompanha o grupo de patrocinadores até à saída, seguida por Aguirre, seu chefe, que exibe uma expressão mais do que satisfeita mediante o êxito da apresentação que acaba de ocorrer. Embriagada pelo sucesso, Lola mal nota a aproximação hesitante de Júlia, a assistente de Aguirre, e tampouco o nervosismo e tensão que transbordam de seus menores gestos.

— Lola, você pode me dar um minuto? – A jovem pergunta com olhos imensos e um tom de voz embreado que não lhe pertence, mas preocupada em dedicar sua total atenção ao grupo de executivos, Lola mal pode conter sua frustração.

— Julita, não está vendo que eu estou ocupada? – Ela responde entre dentes, sem perder o sorriso que traz em seu rosto.

— Lola... é importante. – Julia insiste e, com um breve olhar, Lola nota as linhas de preocupação presentes em seu rosto, o que por sua vez a desarma completamente.

— Senhores, peço que me deem licença, mas os deixo em excelentes mãos – Lola assegura ao grupo, referindo-se a Aguirre, e se dirigindo em seguida à recepção onde Julia a aguarda aflita, o aparelho de telefone em mãos. – Julia, o que você tem? Pra que esse desespero todo?

— Aconteceu um acidente, Lola. Sua amiga Grace... – As palavras de Julia se perdem em um eco ao passo que o sentido lhes é conferido com o peso de uma âncora. Incapaz de formular qualquer resposta, a boca aberta e subitamente seca, o coração congelado em seu peito, Lola perde a noção do tempo, a angústia transformando meros segundos em uma queda livre em um buraco negro.

— Lola? Lola! – O som de seu nome sendo repetido em um tom imperativo faz com que Lola desperte de seu transe e se depare com os olhos cinzentos e preocupados de Facundo.

— Aqui. – Lola escuta a voz de Julia e um copo de água preenche seu campo de visão, mas ela o ignora completamente, o senso de urgência manifestando-se de uma só vez.

— Onde está? Onde está Grace? – Lola se põe de pé sem se lembrar de ter se sentado e obrigando Facundo e as demais pessoas que a rodeiam a dar um passo para trás.

— Ela foi levada para o Hospital Britânico. Lola... – Antes que Julia possa terminar de falar Lola corre para seu escritório procurando sua bolsa e as chaves do carro. Seu atordoamento é tamanho que ela só nota a presença de Facundo em seu encalço ao entrar no elevador, quando a sua mão e a dele se encontram sobre o botão que sinaliza o térreo. O curto espaço de tempo que leva para que os dois cheguem ao estacionamento é o suficiente para que Facundo manifeste suas intenções.

— Lola, você não está em condições de dirigir. Me dá as chaves do teu carro. – Ele pede com suavidade que lhe é peculiar embora seu tom seja definitivo e desprovido de qualquer interrogação. O fato de Lola lhe entregar o molho de chaves sem qualquer hesitação ou alarde deveria ser tranquilizador, mas apenas o deixa mais preocupado.

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A cirurgia demora horas que poderiam muito bem ser dias, anos. Sentada na desconfortável cadeira de plástico da sala de espera, Lola encara um ponto invisível na parede do hospital, ignorando por completo a presença de Facundo ainda que não o faça propositalmente. Ele não parece se importar. Basta-lhe estar ao seu lado para o que ela precisar.

Perante toda a situação não demora a que a total falta de reação por parte de Lola torne-se objeto de estudo à Facundo. Aos olhos dele, Grace é a melhor amiga de Lola, a pessoa com quem ela mora e, desde sua transformação, o mais próximo que ela tem de uma família. Suas impressões não estão completamente distantes da verdade, embora alguns pontos possuam um grau de complexidade que lhe seja impossível sequer imaginar.

Para Lalo, Grace é sua amiga de infância, sua amiga mais antiga, a irmã que seus pais nunca lhe deram. Ela é também seu relacionamento mais duradouro, sua eterna confidente e cúmplice, a única mulher com quem ele sempre foi sincero e a quem foi leal. Ao lado de Grace, Lalo sempre pôde ser ele mesmo, desprovido de qualquer artifício ou galanteria. Mas mais do que isso, desde a transformação de Lalo em Lola, Grace permaneceu ao seu lado sem se deixar abalar, sem nunca hesitar, sempre disposta a ajudá-lo e a aceitá-lo por completo, demonstrando que sua amizade era de fato incondicional e que ela seguiria a amá-lo e apoiá-lo sempre, independente das mudanças que se passassem em sua vida, ou em seu corpo.

Assim, a falta de reação por parte de Lola reflete um deslocamento na ordem natural das coisas, algo ao que ela ainda está processando, sem saber ao certo como proceder diante desta ocorrência inédita em sua vida. Nunca antes Lalo (e por sua vez tampouco Lola) se viu diante da possibilidade de viver em um mundo sem ter Grace ao seu lado. E a verdade é que nenhum dos dois tem a menor ideia de como fazê-lo.

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Os médicos aparecem com expressões sérias, termos técnicos e descrições de procedimentos aos quais Lola pouco entende e menos ainda se importa.

Tudo o que Lola deseja ouvir é que sua amiga irá ficar bem.

Facundo escuta a tudo atentamente e é até capaz de formular uma ou duas perguntas pertinentes. Lalo nunca gostou de médicos, sempre teve pavor de hospitais, da espera, desse ambiente onde todos se encontram irremediavelmente vulneráveis e expostos, à mercê da vida e de uma sorte que não lhes cabe.

Enquanto Lola, Lalo percebe que virtualmente nada mudou nesse sentido. Ainda assim, ele não deixa de pensar em como as coisas seriam diferentes se ainda fosse - ao menos para o mundo – um homem e em como as pessoas esperariam uma fortitude emocional e uma postura que, em vista do real acontecimento, lhe parecem completamente improváveis. Alguns poderiam até pensar que essa súbita inabilidade para agir nesse momento de crise se deve à transformação e seria de fato mais fácil crer e justificar que sim. Mas no fundo, Lalo sabe que este não é o caso.

Essa dor paralisante que Lalo está sentindo desde que descobriu sobre o acidente nada tem a ver com o surgimento de uma sensibilidade feminina, reações hormonais ou qualquer coisa do gênero. Essa dor e esse medo só existem por se tratar de Grace deitada naquela cama de hospital. Por se tratar de sua pessoa mais querida.

Os médicos anunciam que nada mais pode ser feito, que só lhes resta esperar. Como em um conto de fadas espera-se que Grace acorde em um passe de mágica e de fato, ao se aproximar de seu leito na Unidade de Terapia Intensiva, por um momento Lola pode se deixar confortar pela ilusão de que sua amiga está apenas repousando.

Trata-se de um sono reparador – e o único detalhe é que seu despertar não foi e nem pode ser programado.

Se ainda fosse Lalo, lhe teria depositado um suave beijo nos lábios e anunciaria baixinho ao pé de seu ouvido, com um sorriso mascarando seus verdadeiros sentimentos, que acordasse, pois havia chegado seu príncipe. Sendo Lola, contentou-se em sentar-se ao seu lado e tomar-lhe a mão entre as suas, deixando que as lágrimas escapem sem censura quando seus dedos sentem o pulso fraco da vida que ainda corre em suas veias e seus olhos catalogam apreensivos cada fio e cada tubo que violam e ao mesmo tempo são responsáveis para que Grace permaneça nesse mundo.

Em um apelo silencioso e desesperado, que poderia muito bem ser confundido como uma oração, Lola fecha os olhos e começa a contar as horas.

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Continua...


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