La Bête escrita por Lethy


Capítulo 1
Capítulo único - As aparências enganam


Notas iniciais do capítulo

Sempre achei meio engraçada essa tendência que as pessoas têm de julgar pela aparência. Quanta gente já não pensou "Nossa, esse cara parece estranho, vou ficar longe dele"? Quanta gente já não julgou sem conhecer os motivos? Bom, acho que essa história é meio sobre isso. Pouca coisa é o que parece.

Eu sou muito fã das referências (Capitão Senpai, me nota) e, para todos entenderem comigo, vou deixar um link em cada uma. ♥

Bem... É isso. Boa leitura. :3

(Queria dizer que o final é dedicado à linda da Bea, que manda comentários muito fofos. u.u)



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Parecia que, em todos os lugares em que eu estava, ele aparecia. Desde a nossa última conversa, na reunião do grupo de estudos, Humberto parecia estar em absolutamente todos os cantos da faculdade ao mesmo tempo. Eu ia comprar café, ele estava na fila. Eu ia pegar um livro, ele estava em algum dos corredores da biblioteca. Até quando eu fui ao banheiro, ele estava lá, socorrendo uma das alunas que teve a brilhante idéia de ir de ressaca para a faculdade.

Era completamente enlouquecedor.

— Já pensou na minha proposta, Rose? – ele perguntou, arrastando sua cadeira para o meu lado e se sentando virado para mim. Estávamos na aula de literatura, discutindo a ironia e o humor em Álvares de Azevedo. Agora era a hora em que nos sentávamos em duplas para fazer uma análise sobre algum dos poemas que tínhamos lido na aula.

A única coisa que aprendi em duas horas é que Humberto não mede limites para ser imbecil. Ele é a própria ironia ambulante: lindo, potencialmente inteligente, porém um babaca a cada vez que abre a boca. Ele não precisa nem falar. Só abrir a boca mesmo. É muito óbvio.

Claro que Álvares de Azevedo não estava nem um pouco interessado nessa ironia. Ele não teve o desprazer de conhecer esse ser hediondo ao meu lado.

— Desculpe, meu “não” não foi claro o suficiente? Precisa que eu desenhe um pé na sua bunda? – puxei uma folha do meu caderno e escrevi nossos nomes no alto da página. Se o Sr. Amaral me juntasse mais uma vez com ele, eu furaria meus olhos com a caneta.

— Poxa, Rose, assim você me magoa...

— Dá pra parar de me chamar assim? Não estamos em Titanic, idiota.

Humberto deu uma risadinha que me irritou até os ossos, mas se virou para frente. Pela primeira vez na semana, fixou seu olhar em alguma coisa que não eu.

— Bom... Sobre que poema quer falar?

Olhei o livro em cima da minha mesa e as anotações pouco organizadas do professor no quadro. Alguns nomes estavam escritos em pincel azul.

— Ahm... Que tal “É ela! É ela!”? – sugeri, ainda meio incerta de como faríamos aquela análise. Não posso fazer nada se nasci para a Linguística. Qualquer análise literária me deixava completamente apavorada.

— Mesmo? – Humberto pareceu surpreso – Por quê?

Okay, por essa eu não esperava. Não queria discorrer sobre o quanto eu achava maravilhoso a musa de Álvares de Azevedo ser uma lavadeira com um rol de roupas sujas no decote. O quanto eu achava magnífico o riso e a reflexão que isso trazia.

Era pessoal demais para compartilhar. Isso é coisa que a gente confidencia pro cachorro, não pro babaca que quer sair com você.

— Porque foi o primeiro nome que li. – cortei e, antes que ele pudesse perguntar mais alguma coisa, já comecei a escrever o título. – Vamos acabar logo com isso antes que a fila da cantina fique enorme. Não quero ficar sem café.

Humberto abriu a boca como se fosse falar, mas desistiu e apenas concordou com a cabeça.

.   .   .

As reuniões do grupo de estudos eram sempre nas segundas à tarde. Eu, Alice, Humberto, Ian, Júlio e Carlos almoçávamos juntos e já íamos direto para a Biblioteca Central lutar por uma sala. Nada contra as mesas, mas éramos barulhentos demais para viver em sociedade.

Apesar de eu não simpatizar com a presença de Humberto e Júlio, tudo ia bem. Cada um ficava no seu canto e só falava com o outro quando tinha a ver com a matéria que iríamos estudar.

Bom, isso até Júlio romper seu pacto silencioso uma semana atrás e pedir Alice, minha melhor amiga, em namoro. Isso aparentemente alimentou em Humberto a esperança de que fôssemos pelo mesmo caminho. Ele e Júlio também são melhores amigos, e nada mais natural do que nós quatro nos tornarmos dois casais felizes, certo?

Errado. Tão errado quanto misturar quatro tipos de molho no sanduíche (sério, não façam isso). Acontece que a vida não é um conto de fadas onde todos namoram como se namorar fosse um botão que a gente aperta quando está a fim de um final feliz.

Não. Namorar exige tempo e paciência, duas coisas que eu definitivamente não tenho. O problema é que ninguém além de Panqueca, meu cachorro, entende isso. Parece que não importa o quanto eu insista, todos acham que eu nasci para ficar com Humberto. Isso inclui ele mesmo.

Talvez, só talvez, eu tenha alimentado um pouco as esperanças dele ao falar que ele era um dos caras mais lindos da faculdade. Em minha defesa, devo dizer que falei isso para Alice, e a vaca traidora abriu a boca para o namoradinho. Daí até Humberto saber eu não contei uma hora.

Não é a toa que eu odeio Júlio. O cara tem uma ligação direta entre ouvido e boca.

— Você realmente não pensou na minha proposta? – a voz de Humberto surgiu na noite escura da federal. Eu estava saindo do estágio na biblioteca quando ele me encontrou no meio do caminho, em frente a um dos cinco pontos de ônibus.

— Humberto, eu já te disse “não” um milhão de vezes. Por que você não desiste?

— Porque ao contrário do que você possa falar, eu sei que não é sincero.

Suspirei, parando de frente para ele.

— Não importa o que você diga, eu não vou aceitar, Beto.

Assim que a palavra saiu da minha boca, eu congelei. Não era para eu usar aquele apelido nunca mais na minha existência.

Um sorriso presunçoso surgiu em seu rosto.

— O que foi que você disse?

— Não importa o que eu disse, Humberto. Não vai mudar nada. – olhei-o nos olhos, passando o máximo de confiança possível – Nós não vamos acontecer, Humberto. Não existe nenhum motivo no mundo que me faria ficar com você. Desista e se poupe do trabalho, que eu sei que deve te custar muito.

Humberto passou a mão pelo rosto, irritado, e murmurou um “se é o que você quer” antes de sair pisando duro na direção contrária à minha. Dessa vez, ele não parecia o idiota convencido de normalmente.

Joguei a outra alça da mochila no ombro e segui em direção ao último ponto de ônibus da rua. Eu ainda tinha quinze minutos até o próximo ônibus, então tirei meu exemplar de Orgulho e Preconceito da mochila e fiquei lendo sob a luz fraca do poste.

Não pude evitar pensar que eu era um pouco como Lizzy. De certa forma, eu afastava Humberto por orgulho ferido e um preconceito já sólido demais para eu me livrar dele. Talvez, no fim, eu estivesse mesmo errada...

Bobagem. Humberto era mesmo um idiota. Eu o vi falar para os amigos que nunca ficaria com uma esquisita como eu. Eu o vi bater num menino mais fraco sem a menor piedade. Eu o vi gritar com a ex-namorada como se ela fosse um monte de lixo. Eu o vi falar de festas, bebidas e mulheres como tudo isso fosse a única coisa importante na vida.

Vazio, insensível e brutamontes, como todo bom babaca deve ser.

É, eu estava definitivamente certa.

Pouco depois, o ônibus chegou. Guardei o livro na mochila e sentei num dos bancos altos, louca para chegar em casa e dormir. Um sono profundo, tranquilo e sem Humberto.

.  .  .

Quando eu entrei na faculdade, eu era o tipo de garota que qualquer canalha enganaria fácil. Nunca tinha namorado e tinha beijado no máximo três caras, dois deles em jogos de verdade ou conseqüência.

Uma das primeiras pessoas que eu conheci quando cheguei foi Humberto. O cara era simplesmente lindo. Tinhas os cabelos mais negros que já vi na vida, e seus olhos eram de um azul escuro assustador, como se ele escondesse todo tipo de segredo. Eu fiquei encantada.

Não bastasse seu rosto divino – e seu corpo que definitivamente não era de se jogar fora – ele ainda era simpático. Sempre tinha um sorriso para todo mundo que falasse com ele. Não importava se era a pessoa mais odiosa do mundo, ele sorria e ajudava.

Não sei se era efeito do deslumbramento inicial da vida universitária ou se era porque eu queria muito acreditar que finalmente um cara legal tinha aparecido na minha vida, mas eu me deixei encantar sem tomar o mínimo cuidado.

Sabe quando dizem que quanto maior o sonho, mais alta a queda? São sábias palavras, meu caro.

Uma tarde, eu estava estudando num banco do terceiro andar, quando Humberto e Júlio passaram conversando. Não prestei atenção no início, tinha prova de fonética no dia seguinte e estava potencialmente ferrada. Eu estava determinada a manter minha concentração a qualquer preço.

Mas aí eu ouvi meu nome. E toda a merda que veio logo depois dele.

“Hey, Beto, aquela novata está praticamente lambendo o chão que você pisa”.

“Quem? A Isabela? Ela me causa arrepios.”

“Por quê? Ela é bem bonita.”

“É, mas ela parece louca. Sempre com aqueles livros esquisitos debaixo do braço e aqueles comentários estranhos. Ela é bizarra.”  

Desde pequena, eu sofria com aquilo. Por ser sempre a bizarra com livros esquisitos debaixo do braço. Era como um karma que me perseguia, não importava aonde eu fosse. Quando eu entrei na faculdade, achei que estaria livre disso. Achei que finalmente iam gostar de mim pelo que eu era.

Como eu estava enganada.

Depois daquele dia, eu me afastei completamente de “Beto”, e ele voltou a ser só Humberto para mim. Cair das nuvens me acordou da lobotomia que eu tinha sofrido, e todo o encantamento ruiu.

Foi então que eu comecei a perceber os defeitos. Os sorrisos, que eu tinha encarado como simpatia, começaram a me parecer falsidade, e todas as coisas de que ele falava se tornaram um exibicionismo barato e ridículo. Tudo parecia gritar na minha cara, como se ele estivesse com uma placa de neon escrito “idiota” desde o início, e só eu não tivesse visto.

Bom, de certa forma era isso.

Os dois primeiros anos se passaram sem que ele sequer percebesse que eu havia me afastado. Ele parecia... Aliviado e, por mais que eu detestasse admitir, isso conseguiu me decepcionar mais um pouco.

No terceiro ano da faculdade, no entanto, ele voltou estranho. Não, estranho é um eufemismo, porque ele estava verdadeiramente bizarro. Quase não falava com os babaquinhas de seu grupo habitual, não tocava mais no assunto festas, nem álcool e muito menos garotas. Aliás, ele nunca mais apareceu com uma garota. Bater em alguém? Nem sob pena de morte.

Era como se um Hades tivesse saído de férias e Eros tivesse voltado em seu lugar. Seria lindo se não fosse pavoroso.

Eu obviamente soube lidar muito bem com aquilo, me mantendo a quilômetros de distância dele. Não é que eu ainda nutrisse algum tipo de paixão por ele... É só que eu não confio no meu próprio coração. Ele tem uma tendência a ser otário.

No início ele respeitou. Sorria e me cumprimentava, o que era muito, muito assustador, porém não insistia em conversas mais longas.

Mas é lógico que melhores amigos, que tem como função primordial foder sua vida, tinham que estragar tudo. Alice teve a brilhante idéia de montarmos um grupo de estudos de francês e Júlio, cuja única língua que queria conhecer era a dela, topou na hora. Humberto e o que restava de sua ninhada vieram atrás, obviamente.

Eu não tinha nada contra Carlos e Ian. Eles eram o casal mais fofo do universo e eu torcia mais é para que ficassem eternamente juntos. Júlio e Humberto, no entanto, podiam evaporar da Terra que não fariam a menor falta. Logicamente essa é uma opinião que eu mantinha pra mim, porque chamar Alice de Medeia era pouco.

Era meio óbvio desde o início que Júlio e Alice ficariam juntos, mas confesso que eu nutria uma esperança de que eles passassem a se odiar do nada. Não bastasse eu quebrar a cara quanto a isso, Beto ainda veio de brinde.

Beto não, Humberto. Larga de ser trouxa, Isa.

Noventa por cento do tempo, eu tinha certeza de que o odiava, e isso me mantinha sã e salva de seus encantos malignos. Entretanto, sempre havia aqueles momentos raros em que Humberto mergulhava no seu próprio mundo estranho e parecia a criatura mais amável de todas. Nesses momentos, eu poderia enfiá-lo no bolso com um monte de jujubas.

Felizmente, meu coração se mostrou sensato o suficiente para impedir minha boca de falar merda nessas horas. Então, desde que Humberto decidiu que devíamos mesmo ficar juntos, eu divido meu tempo entre ofendê-lo e me convencer de que não o quero mais.

Infelizmente sou uma péssima atriz, então dizer que Humberto engoliu o meu “não quero ficar com você” seria muito otimismo da minha parte. Por isso me contento em insistir até que ele desista por cansaço.

Muita gente diria que ele é um maníaco sexual perseguidor. Mas a maioria das pessoas não sabe enxergar através da minha irritação como ele. Eu não sei exatamente quando ele desenvolveu essa habilidade, já que parecia passar mais tempo me evitando que prestando atenção em mim, mas ele conseguiu. E, se tem um motivo pelo qual eu verdadeiramente o odeio, é esse.

Fato é que, nesta última semana, tudo piorou. O namoro de Alice e Júlio se tornou oficial, e, não bastando isso, Humberto me pediu para namorar ele. O ruim de verdade, contudo, é que, por um momento, eu pensei em aceitar.

.  .  .

Eram dez horas da noite quando entrei em casa, morta de cansaço. Mal terminei de tomar banho, deitei na cama, afundando no colchão como se ele fosse o poço no qual eu estava enfiada. Claro que no poço eu já havia descido muito mais fundo, mas era divertido fingir que não.

.  .  .

Quando comecei a andar em um imenso jardim, entre inúmeras rosas centifolias, percebi que algo estava errado. Eu não me lembrava de já ter visto nenhum lugar parecido antes, nem de ter usado roupas tão pesadas.

Dei de ombros e continuei caminhando, procurando por algum sinal de vida no jardim daquele... Castelo?

— Mas que porra...?

— Oh, Bela, minha querida, então você estava aqui. – um homem um pouco mais velho que eu, portando óculos pince-nez antigos, apareceu na minha frente. Queria perguntar onde ele tinha conseguido aquilo, mas era mais urgente descobrir como ele sabia meu nome.

— Desculpe, eu o conheço? – perguntei, achando estranha a forma como minha voz saía. Estava fina e tão... Formal.

— Está se sentindo mal, Bela? – ele perguntou, pegando minha mão e me carregando em direção à entrada. – Eu sabia que não devia ter permitido que se molhasse na chuva.

— Eu... Estou bem. Só me esqueci de seu nome por uns instantes. Com certeza é o cheiro das flores tirando meu juízo. – dei uma risadinha forçada, na tentativa de convencê-lo.

— Ora essa! Como pôde se esquecer de um nome tão peculiar quanto o meu? Poucos homens no reino se chamam Bête.

Bête...  Besta. Meu Deus, será que eu estava na França?

Aos poucos, as coisas começaram a se encaixar. O jardim cheio de rosas centifolias, ele me chamar de Bela quando todos me chamam de Isa, seu nome ser Besta, ele ter óculos pince-nez, eu estar com um vestido de séculos atrás, e nós dois entrarmos num castelo... Eu estava em A Bela e a Fera.

Espera... O quê?

— Ahm, Bête? – perguntei, e só então reparei que estávamos falando em francês.

— Sim?

— Há quanto tempo estou morando aqui?

— Há dois anos, agora.

— Nós já, ahm... Nos casamos?

Ele deu uma risada.

— Acho mesmo que a chuva lhe fez mal. Estamos casados há um ano, minha querida.

Balancei a cabeça, concordando, e dei outra risadinha forçada. Humberto e suas risadas falsas estariam com inveja de mim agora.

Se Bête e eu estávamos casados, isso quer dizer que eu já havia visitado meu pai doente, já tinha assumido meu amor pela fera e, portanto, ele já havia voltado a ser um príncipe. Isso significava que, se eu olhasse para os portões da entrada... Sim, minhas duas irmãs estavam lá, congeladas em estátuas de pedra para me invejar por toda a eternidade.

Que estranho. Desde quando começamos a ler um conto de fadas pelo final? Ou pior, a protagonizá-lo?

Não sou muito fã da idéia de que o subconsciente trabalha para nos enviar mensagens através dos sonhos, mas aquilo ali estava estranho demais para ser ignorado e jogado na caixa dos sonhos nada a ver, então segui Bête para dentro do salão principal, prestando atenção em tudo à minha volta.

Se eu bem me lembrava de como contos de fadas funcionavam, eu já estava na parte do “felizes para sempre”. Isso queria dizer que eu já tinha descoberto que, por trás da feia aparência da fera, existia um bondoso coração e, convenientemente, um príncipe gostoso. Obviamente a última parte era pura coincidência, porque eu o amava por quem ele era, não por sua beleza ou riqueza.

Mas, se eu já tinha passado pela mensagem principal da história (você sabe, toda aquela história de "ame as pessoas por sua bondade, não por sua aparência”), por que raios eu estava ali, naquele momento?

— Já está quase na hora do jantar. O que vai querer comer essa noite?

— Você poderia escolher para mim, Bête? – indaguei, ainda analisando ao meu redor. Todas as paredes estavam lotadas de pinturas dele mesmo, não como fera, mas como príncipe. Não havia nenhuma minha, nem sozinha, nem com ele.

— Claro.

Ele sorriu amavelmente, sumindo em direção aos fundos do castelo.

.  .  .

Três dias haviam se passado, e em todo esse tempo não recebemos nenhuma visita. Era estranho para mim que um homem aparentemente tão poderoso não recebesse ninguém em seu castelo. Antigamente era compreensível, afinal ele era uma fera gigante e assustadora que facilmente devoraria um ser humano; mas agora? Que motivos poderia haver?

— Querida? – Bête me chamou, batendo duas vezes na porta da sala de leitura antes de entrar. Ergui meus olhos do livro para ele, esperando ele se pronunciar. – Vou receber a visita de um conhecido meu hoje. Vamos apenas tratar de negócios, então não precisa se incomodar. Apenas continue sua leitura que eu volto mais tarde.

Achei estranho, ele não costumava limitar meus passos. Entretanto, apenas assenti para evitar maiores discussões. O livro estava interessante demais para eu perder meu tempo com outras coisas que verdadeiramente não me interessavam nem um pouco.

Duas horas depois, vi pela janela o portão principal do castelo ser aberto, e um homem de aparência austera entrar cavalgando pela trilha que levava ao salão de visitas.

Normalmente não sou uma pessoa intrometida, mas aquele homem me desagradou. Pouco depois que ouvi a porta do salão ser fechada, desci a passos silenciosos para o primeiro andar, parando no cômodo ao lado de onde ambos estavam e me escorando na parede fina para ouvir o que diziam.

— Já cuidei do que me pediu. – o visitante falou – A testemunha estará morta em menos de uma semana.

— Já era hora! – Bête respondeu. Pude ouvir seus passos pesados cruzando o salão. – Não gosto quando as pessoas sabem demais. Pessoas que sabem demais podem estragar tudo.

— Não se preocupe. Asseguro que Bela não descobrirá o que você fez.

— É claro que não! Se ela descobrir que matei seu pai, seria minha ruína. Ela me deixaria, e então eu voltaria a ser aquela criatura horrenda. Não posso lidar com aquela vida de novo, Louis.

— Por que você o matou mesmo? Que eu me lembre, vocês já estavam casados. Bela não estava mais em risco de partir.

— A bruxa procurou o pai dela para lhe contar o verdadeiro motivo do casamento. Ela poderia descobrir que para mim não se tratava de amor e me deixar. Tive que tomar providências.

— Oh... Compreendo.

Eu não podia acreditar no que estava ouvindo. Fera, o príncipe encantado injustiçado, era um narcisista que só se preocupava com... Beleza? Nada de amar por quem é, nada de bondade... Que tipo de conto de fadas sinistro era esse onde o príncipe era o extremo oposto de tudo que os livros ensinavam?

Levei a mão à testa, consternada. Não estava triste ou com raiva. Estava decepcionada. É incrível como as aparências enganam...

Um momento, isso me lembra de algo, eu...

.  .  .

Acordei na manhã seguinte com uma dor de cabeça terrível. Precisei de dois copos de café para conseguir pensar em ir para a faculdade. Durante todo o caminho, o sonho não me saía da cabeça.

As aparências enganam... O que isso queria dizer?

Cheguei para a aula de semântica mais tarde que o normal e, enquanto me sentava, senti o olhar de Humberto seguindo cada movimento desastrado meu. Podia até imaginar o sorrisinho idiota que ele estava dando.

Não, não podia não. Para com isso, Isabela. 

As aulas passaram num piscar de olhos. Durante todo o tempo, Humberto ficou me olhando, mas em nenhum momento fez menção de falar comigo. Ele estava com olheiras fundas, e mais de uma vez dormiu no meio da explicação dos professores.

No final da manhã, ele recolheu seus materiais e saiu da sala com pressa, quase correndo. Nem esperou Júlio, que ficou para trás juntando montanhas e montanhas de livros que tinha pegado na biblioteca mais cedo.

— Hey, Júlio! – o chamei quando ele estava prestes a sair.

— Ah, oi, Isa. – respondeu. Só então reparei que ele estava com um ar completamente cansado, embora não tivesse olheiras como Humberto. – Tudo bem?

— Sim. – eu sei que as leis das boas maneiras mandam a gente perguntar de volta, mas tinha coisas muito mais urgentes me incomodando. – Tem algo de errado com o Humberto?

Júlio deu um suspiro cansado, caindo sentado de volta na cadeira.

— Olha, eu não devia falar nada, mas to realmente preocupado. – ele apoiou a testa nas mãos, fitando o tampo da mesa. – o Beto me procurou ontem. Ele tava bêbado pra caralho e chorando igual a uma criança.

— Beber no meio da semana? Isso não faz o estilo dele.

— Foi o que eu falei. Mas então ele me disse que vocês tinham conversado e que você tinha dispensado ele definitivamente. Daí pra frente eu já entendi tudo.

— O que você quer dizer? – perguntei, me fazendo de desentendida.

— Isabela, você pode ser muitas coisas, mas não é idiota. Qualquer um vê que o Beto é louco por você.

— Como assim “muitas coisas”? 

— Você vai conversar sério ou vai ficar se esquivando como sempre faz?

Uau, por essa eu não esperava. Desde quando Júlio me conhece bem assim? Ah, é, Alice não sabe ficar calada.

— Desculpa... Continua.

— Isa, eu não sei por que você insiste em negar que gosta do Beto, mas, se vai dispensar ele assim, pelo menos fala na cara dele o motivo. Você ta sendo covarde, e isso não é nada legal. – Júlio se levantou, jogando a mochila nos ombros. – Agora eu vou nessa, antes que a Alice me coma vivo.

Assim que Júlio saiu da sala, recolhi meu material e segui em direção à cantina. Com sorte, Humberto estaria almoçando lá.

.  .  .

— Precisamos conversar. – falei, me aproximando do monte confuso de cabelos negros que estava deitado no banco da praça central. Ele não fez menção de abrir os olhos, mas eu sabia que estava acordado. Beto não dormia em lugares duros, eu sabia disso desde o dia em que ele tentou dormir no chão da biblioteca. – Agora, Beto!

Ele imediatamente abriu os olhos e se sentou. Revirei os olhos. Ele e aquele maldito apelido.

— Pois não, Rose?

— Caramba, por que você insiste nisso? Eu nem gosto de Titanic.

— E quem disse que eu te chamo assim por causa de Titanic?

— Ah, não? E por que é?

— Me fala por que você está aqui que eu te conto. – ele propôs.

Balancei a cabeça, concordando, e me sentei ao seu lado. Demorou um pouco até que eu encontrasse as palavras, mas acabei conseguindo explicar a ele por que eu insistia em afastá-lo. Contei do dia no terceiro andar, e minha voz falhou vergonhosamente na parte do “bizarra”. Falei do menino que apanhou, da ex-namorada e do quanto suas conversas sobre outras meninas me irritava. Deixei de fora a parte das festas e do álcool. Eu era obrigada a admitir que essas duas coisas só passaram a me incomodar porque tudo passou a me incomodar nele.

Humberto ficou um longo tempo em silêncio, mesmo depois que terminei de falar. Ele parecia estar em outro universo. Era um daqueles momentos em que queria enfiá-lo no bolso com um monte de jujubas, então não interrompi. Só esperei.

Após uns cinco minutos, ele falou:

— Antes de qualquer coisa, quero pedir desculpas. Nunca foi minha intenção magoar você de forma alguma, Isa... A verdade é que eu falei aquilo para o Júlio parar de me encher o saco. Ele já tinha sacado que eu gostava de você bem antes que eu mesmo aceitasse. Na verdade, eu te achava bem adorável, mesmo com todos aqueles livros e comentários estranhos.

Ele sorriu e fez carinho de leve na minha bochecha, que corou automaticamente pelo elogio.

— Quanto às outras coisas, se você tivesse me perguntado antes, eu teria te explicado tudo. Eu não sou o cara grosso que você está pensando, Isa. Eu não bati no menino a toa, ele estava falando gracinhas sobre o Carlos e o Ian. Eu deixei a raiva e o nojo subirem a cabeça. Eu estava errado? Estava. Mas nem sempre somos perfeitos, não é mesmo?

Balancei a cabeça, concordando. Com certeza não éramos perfeitos, qualquer um que nos olhasse ali, naquele banco, saberia.

— Já a minha ex... Bem, nada justifica o jeito que a tratei. Fui um covarde. Mas se esclarece algo, eu tinha acabado de descobrir uma traição e estava muito nervoso. Você já deve ter percebido que não sou muito conhecido pela minha calma.

Dei uma risada sem querer e ele sorriu de canto, me abraçando pela cintura.

— Sinto muito se você teve a impressão errada de mim, se você achou que eu falava de outras garotas porque realmente gostava delas ou porque as queria. Nessa parte sim eu fui um canalha. Eram todas garotas legais, e eu acabei usando elas para tentar esquecer a única que me interessava. – ele olhou de canto para mim. - Me desculpa?

— Meu Deus, isso ta muito filme molha-calcinha. – resmunguei, me soltando de seu abraço.

— Filme... O quê?

Dei de ombros.

— Molha-calcinha, daqueles em que o cara que parece um idiota se mostra um gostosão apaixonado e gentil, fazendo a mocinha se derreter toda por ele.

— Hm... Gostosão, é? – ele perguntou, cutucando minha cintura com o cotovelo.

— Cala a boca, Beto.

— Hm... Beto, é?

— Puta que pariu, mas você tinha mesmo que estragar, né? Dá pra simplesmente calar a boca e me explicar o que é essa merda de Rose?

Ele riu e se ajeitou no banco, como se fosse fazer um pronunciamento de suprema importância.

— Eu só vou falar isso uma vez na minha vida, então nunca mais me obrigue a repetir, estamos combinados? – ele ficou me encarando até eu assentir. – Bom... É porque você é como uma rosa. É rodeada de espinhos, mas vale cada um deles porque é a coisa mais linda que eu já vi.

Se um pimentão dormisse com um tomate, o resultado seria eu.

— Ahm.. Puxa. – pigarreei, procurando a minha voz – Eu, ahm, não imaginava, Beto.

— O que eu posso dizer? – ele deu de ombros – As aparências enganam.

“As aparências enganam”. Porra, como eu posso ser tão anta? Então era isso que todo aquele sonho bizarro de protagonista pós-final feliz estava tentando esfregar na minha cara. Beto... Bête. Eles eram o reverso um do outro. Beto a cara, Bête a coroa. Beto o bom que parece mau, Bête o mau que parece bom.

Poxa, subconsciente, não sei se fico orgulhosa ou se te odeio.

— Então... Estamos bem?

— É, estamos.

Beto sorriu, pegando minha mão pequena com a sua enorme.

— Posso fazer uma última pergunta? – pedi.

— Claro.

— No meu terceiro ano de faculdade, quando a gente voltou das férias, você estava muito diferente... O que aconteceu?

Ele deu um sorriso nostálgico como o de alguém que recupera uma memória distante.

— Naquelas férias, meus pais se separaram. Minha mãe achava que meu pai não a amava mais, por isso pediu o divórcio. Meu pai, ao invés de tentar mudar isso, aceitou. Ele ainda a amava e aceitou. Foi então que eu percebi que eu não queria isso para mim. Eu não queria perder você por medo de encarar meus sentimentos, então eu os abracei.

Fiquei sem fala, o encarando. De todas as coisas que haviam passado pela minha cabeça, essa não era uma delas.

— Poxa, eu não sei nem o que dizer...

Beto sorriu, balançando a cabeça.  Ele ergueu meu queixou para que ficasse na altura de seu rosto e então me beijou.

Naquele momento não havia pressa, não havia mentira. Só duas pessoas que finalmente estavam onde deveriam ter chegado há muito tempo. Quem olhasse de fora, talvez achasse que éramos um casal como qualquer outro. Não, não éramos. Éramos dois desajustados que tinham medo dos próprios sentimentos. Éramos dois estranhos.

Mas o que podíamos fazer? É como dizem...

As aparências enganam.

“E eles foram felizes para...”

Ei, ei, ei, calminha lá, voz do além. Humberto me deve pelo menos mil provas antes que eu pense em aceitar um pedido de namoro e ser "feliz para sempre". Ou você achou que só essas frases lindas iam me convencer? Por favor, nem por mil cheeseburguers! Bom, por um milhão a gente entra num acordo... Não. Sem acordo. Talvez por café...

Na-na-ni-na-ninha! Beto ainda vai comer fogo, atravessar espinhos, escalar torres, me impedir de comer cookies envenenados (eu não sou saudável para comer maçã, desculpa). Enfim, acho que vocês entenderam. Se eu sou a princesa, eu que mando nessa porra.

Grata. Agora, por favor, voz do além.

“E eles foram felizes para sem...”

Mas você não aprende mesmo, né? Deixa que eu faço isso.

“Eles estavam felizes agora, e isso era o bastante.”

O COMEÇO


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Notas finais do capítulo

Abraço de urso. ♥