Cinco dias. Cento e vinte horas. Sete mil e duzentos... Ah, chega de contas!

— Adriano! Levanta logo dessa cama e vai para a sua escola!

Quem era? Minha mãe. O filho pródigo à casa volta. Prazer. Eu sou esse guri em pessoa.

Levantei do emaranhado de lençóis e me olhei no espelho. Eu estava um trapo. Talvez seja por isso que a Brisa não queira andar comigo. Brisa. Cinco dias sem ver Brisa. Brisa, Brisa, Brisa. Tenho que esquecer essa garota.

Abri a porta do quarto e dei de cara com meu pai.

— Bom dia – Resolvi mostrar um pouco de bom humor matutino.

Ele me olhou feio e passou direto. Eu não era bem o filho pródigo da Bíblia, já que meu pai não viera me receber de braços abertos e chorando. Nem muito menos fizera uma festa. Pessoas sem profissionalismo.

Entrei no banheiro e fiquei debaixo do chuveiro. Deixei a água gelada tirar o resto de sono que ficara. Brisa estava indo para a escola sozinha agora. Devia estar nesse instante dobrando a esquina daquela loja de calçados. Evitando olhar para a doceria à sua frente. Ela sempre dizia que odiava ser tentada pela manhã. Depois ela passaria em frente ao mercadinho e daria bom dia ao vendedor de legumes. Ela sorriria para as criancinhas fardadas que estariam indo também à escola e evitaria pisar nas rachaduras da calçada. Por fim, ela diria que quem atravessasse a rua e chegasse primeiro na escola seria o mais bonito dos dois. E eu a deixaria ganhar, como sempre. Porque ela é linda e eu sou humilde ao ponto de não querer humilhá-la.

— Sai desse banheiro, seu imprestável – Meu pai gritou do lado de fora.

Desliguei o registro e enrolei a cintura numa toalha.

— Foi mal, coroa – me dirigi ao pai emburrado, que franziu mais o cenho. - Desculpa, pai.

— Não ouse me chamar desse jeito – ele estava com aquele tom grave aterrorizante.

— Mas eu já me corrigi.

— Eu me referi à palavra pai – disse, me interrompendo. - Há muito tempo eu deixei de ser isso.

Olhei para os meus pés e sussurrei.

— Um dia você vai me perdoar, Pai...

— Eu o que?

— Se até Deus, que é perfeito me perdoou, por que você não vai? - deixei escapar uma risadinha no final da frase.

— Escute aqui, moleque – meu pai me encarou, destilando ódio. - Eu nunca vou perdoar o que você fez com sua mãe e comigo. Nunca vou esquecer de como você nos tratou como lixo, como destruiu a nossa paz. E eu nunca vou me esquecer do quanto você é indigno de perdão. Você não merece nada de bom que venha de mim. Muito menos de qualquer outra pessoa por aí.

Ele entrou no banheiro, bateu a porta, girou a chave, e me trancou do lado de fora da sua vida.

“Deus perdoa os que têm cometido muitos pecados, embora não mereçam esse perdão.”

Romanos 5.16b

* * *

Senti o calor do sol queimar as minhas costas. O mundo girava sob as quatro rodinhas onde eu me apoiava. Impulsionei o skate rampa abaixo. O mundo ficou de ponta cabeça. Mas se eu reparasse bem, ele estava assim há muito tempo.

— Mandou bem no aéreo, Adriano – Felipe falou, vindo me cumprimentar. - Tá perdido?

— Mais ou menos – respondi. - Eu estava precisando de algo para esfriar a cabeça.

— E você está conseguindo, debaixo desse sol? - ele riu.

— Parece que não – eu disse, vestindo a camiseta que estava jogada no chão de concreto.

— Você tem uma prancha maneira. Posso dar uma...

— Pode usar – o interrompi.

— Valeu, sangue bom – entreguei-lhe o skate e virei-me. - Pode ir atrás das tuasperiguetes e na volta você passa aqui, falou?

Fiz que sim com a cabeça e sai da pista. Fazia bastante tempo que eu não falava com essa antiga galera. Era bom sair com eles pela diversão. Só pela diversão. Porque ninguém sabe quem é ninguém lá. E você não tem com quem contar quando precisa. Ou quando você está em uma enrascada e precisa de alguém para limpar a sua barra ou te ajudar a se defender. Talvez Brisa esteja precisando... Isso de pensar numa garota o dia todo é loucura. Não é de hoje que eu quero ir num psicólogo...

Por que gostar tanto de uma garota? Onde eu estava com a cabeça? Eu nunca fui assim. Nunca deixei que minhas ficadas fossem mais do que encontros sem sentimento algum. Não consigo parar de pensar, no que ela está fazendo, se está bem, se está feliz...

Quando foi que eu entrei nessa furada? Lembrei. No dia em que as jogadoras de vôlei brincaram de jogar a Bíblia de sua mãe para cima. E eu banquei o herói. O grande herói do coração partido, devo ser.

Eu percebi naquele dia que ela era uma menina birrenta, que não se intimidava diante do perigo e não desistia facilmente. Talvez tenha sido por isso que eu gostei tanto dela. Ela é livre, pra ser quem quiser, sem medo do que os outros vão achar. Ela é persistente, tanto que chega a ser teimosa. E é a pessoa mais chata desse mundo. Mas é também a melhor pessoa que eu já conheci.

Eu só posso fazer algo para agradecê-la por tudo o que ela fez por mim. Por ter aberto os meus olhos para o que eu não conseguia ver. Por me ensinar a me importar com as pessoas e fazer a diferença no mundo. Vou conceder seu desejo e deixá-la em paz.

Dobrei a esquina, naquele fim de tarde, esperando não haver ninguém no colégio, além da secretária que prepararia minha transferência para outra escola. Avistei o grande carro esportivo em frente ao colégio. O diretor tá se dando bem, pelo visto. Observei duas pessoas carregando uma terceira que arrastava os pés no chão, desacordada. Alguém deve ter desmaiado e o diretor vai levá-la ao hospital.

A não ser pelo fato do diretor não ser o dono do carro. Ele não entregaria aquele carro luxuoso para as jogadoras de vôlei. Nem levaria uma pessoa desmaiada no porta-malas. Muito menos uma pessoa de cabelos curtos e olhos castanhos chamada Brisa.

Corri até meus pulmões implorarem pelo ar que eu não tinha.