A maldição do anjo escrita por Everlak


Capítulo 2
Valéria II.


Notas iniciais do capítulo

OI OI OI
Eu aqui dando o tal gostinho para tomarem gosto pela história! Espero que comecem a gostar dela tanto quanto eu!
Boa leitura!



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Valeria  II.

Pompeia, 800 a.C.

Tínhamos ainda um mês para a partida e este mês parecia estar a demorar todo um ano. A antecipação era colossal e a ausência de Kiro, ainda que temporária, era insuportável.

Sybilla e Cletardes tinham já acertado contas com meu pai e Kiro vivia agora livremente, instalado na casa dos irmãos. Eu tentava encontrar-me com ele no mercado várias vezes mas o seu nome título de cidadão romano atraía olhares curiosos sobre ele, me impedindo de me aproximar. Apenas conseguira estar com ele três vezes e duas delas foram sobre o teto dos Cletardes. Nunca ficamos completamente sozinhos. Cletardes parecia uma aguia voando sobre nós, assegurando que a sua casa permanecia honrada e pura.

A distância era dolorosa e eu penteei meus cabelos escuros em ondas perfeitas antes de sair para a villa dos Cletardes, onde encontraria Kiro novamente.

— Menina Valeria, seu pai deseja que você faça uma inspeção dos novos escravos. – Um escravo já idoso comunica.

— Mas agora? – Expiro entediada. – Não posso. Tenho coisas para fazer no mercado.

Começo a encaminhar-me para fora mas o escravo, Tírio volta a falar.

— Seu pai não vai gostar, menina. – Ele explica, com semblante realmente preocupado. – Os Decatios estão à espera de um novo lote de gladiadores. Seu pai quer ver isso tratado com a maior celeridade possível.

— Agora? – Gemo, vendo a guerra perdida.

— Temo que sim, menina Valeria.

Revejo as possibilidades mas realmente não são muitas. Se deixar meu pai na mão, ele nunca me permitiria ir, supostamente, para a casa dos meus tios em Pompeia. Não conseguiria partir com Kiro para sua terra, Germânia. Ele poderá aguentar uns minutinhos sem mim.

— Tudo bem, vamos lá. – Faço sinal para ele ir na frente. – Prepare os escravos para a colheita.

Avistei a rua semideserta mas não havia sinal do moreno ainda. Talvez eu conseguisse despachar a tarefa rapidamente e chegar a tempo de o encontrar. Segurei a bainha da túnica nas mãos e desci um nível, o nível dos escravos. O homem tinha começado a alinhar os escravos disponíveis para que os pudesse avaliar.

— Muito bem, veremos… - Coloco a vista sobre eles. – Se os Decatios querem gladiadores, podemos descartar as mulheres e as crianças.

Mal profiro as palavras, Tírio comanda os rejeitados para os aposentos comuns, para longe da minha vista.

— Estes dois parecem promissores… - Comento e ambos dão um meio sorriso orgulhoso. – Mas muito jovens ainda. Precisam amadurecer um pouco mais.

Seus sorrisos desaparecem, ficando desiludidos.

— Domina. – Eles cumprimentam antes de se irem.

— Não desanimem queridos. – Eu encorajei. – Vocês irão lá chegar. E quando for a hora, vos prometo que não irão para uma casa tão medíocre como os Decatios. Farei questão de ajustar-vos numa casa digna de gladiadores de renome.

O doce sorriso voltou para suas belas faces. Dois irmãos comprados ainda em criança, quando eu própria era uma. Me lembro que desde o primeiro dia implorei a meu pai para que eles fossem meus e os ter treinado com um outro escravo, herói da arena aposentado. Desde cedo mostraram propensão para gladiadores e me ocupei totalmente de seus treinos, não poupando moedas, lhes garantindo certas regalias para se manterem leais e animados. Eram os dois, para além de Kiro e Crinia, que eu estimava, quase como meus dois benjamins, mesmo que fossem mais ou menos da minha idade.

— Não há honra maior do que servir nossa Domina. – O mais velho se curva diante mim, seguido pelo irmão.

Eu pouso minha mão em seus ombros, mostrando reconhecimento pelas suas palavras tocadas no coração. Os dois se levantam e saem para seu aposento privado, apenas deles dois.

“Mimas demasiado esses escravos pirralhos!”, Ouço a voz de meu pai na cabeça mas depressa afasto o pensamento. Ela tinha o direito de fazer o que quisesse, já que eu mesma restaurei a glória da família Valerius. Não meu Pai, Valerius Terceiro, ou meu irmão mais velho Valerius Quarto. Pelo contrário. Meu pai não dedicava o que devia aos escravos para os tornar nos melhores, comprando apenas escória. Meu irmão nem entrou no negócio da família, vivendo comodamente da riqueza da sua ingénua esposa. Fora eu que dedicara todo o meu tempo a educar os escravos para suas tarefas, a torna-los nos melhores da região, aclamados pelos grandes senhores, repudiados pelos cidadãos de pouco prestigio. Não importava. A riqueza que conseguira, juntando aos poucos, retirado dos pagamentos no mercado. Regateava sempre os pagamentos, ficando com o que restava para mim. Daria agora jeito para conseguir sair do império e viver, não bem, mas razoavelmente. Mas era um começo.

Continuo a observar os escravos restantes. Eu sei bem quais são os melhores lutadores. Mas o povo não quer apenas uma boa luta. Quer um bom espetáculo. Então, os gladiadores tinham que ter também o aspeto. Bonitos, ferozes e implacáveis. Mas engana-se quem pensa que é uma beleza tradicional. Não querem belezas angelicais na arena. Muito melhor se for uma beleza diabólica, traços fortes e ásperos. Essa era uma boa receita para uma boa venda e ótimos lucros. Mas algo a ter em conta é definitivamente o cliente. Não irei vender o meu melhor gladiador para os Decatios quando tenho a certeza que terei um cliente de maior renome e uma bolsa mais recheada. Esse foi também o que me motivou a resguardar os irmãos. De maneira nenhuma os venderei senão à melhor casa de gladiadores.

— Tu aí – Chamo um dos gladiadores na fila de trás. – Vem até mim por favor. Tírio, lote de quantos para os Decatios?

— Somente três Domina. – Ele responde prontamente.

— Sempre o mesmo sovina. – Protesto para o ar. Passo por entre os escravos e escolho mais dois. – Tírio, me faça a gentileza de os acompanhar até a villa dos Decatios, por favor e colete as moedas por sua venda. Meus caros, boa sorte e espero ver vocês na arena brevemente. E mantenham-se vivos!

Dito isto, me lanço escadas acima, preocupada pelo atraso que o meu pai me obrigou a cometer. Na rua um pouco mais movimentada, não se vê Kiro em algum lugar. Sem saber se ele voltou para a villa ou se já se adiantou para o mercado, decido procura-lo em primeiro lugar na moradia dos Cletardes.

Paro na entrada da moradia dos irmãos, esperando que algum servo me anuncie e acompanhe. Mas tal não é feito. Impaciente, acabo por entrar assim mesmo. Afinal, já sou praticamente da família. Os aposentos pelos quais atravesso estão desertos. Como se não vivesse ninguém naquela villa. Até que enfim ouço a voz indiscutível da Sybilla. Começo a atravessar ao espaço em sua direção té que suas palavras me firmam no chão.

— … não vai descobrir nunca. Não se mantiveres a boca calada.

— Sybilla, mais tarde ou mais cedo, ela vai descobrir a verdade. Se não aqui, será quando perceber que não vamos em direção a Sicília, muito menos para Germânia. – Loren tenta chamá-la à razão.

 Me aproximo mais para ouvir com mais nitidez. As sandálias de Sybilla ecoam vagarosamente no chão, como se ela estive a medir seus próprios passos.

— Meu querido irmão, achas mesmo que iria colaborar tão pacificamente e de bom grado se soubesse que Kiro será o meu sacrifício para os deuses? – Ela dá uma risadinha infantil. – Acho que até ela percebe que sacrifício significa morte.

 O sangue foge do meu rosto e preciso me apoiar num dos pilares mas meu corpo se descai para o chão. Kiro. Morto. Sybilla me traiu. Ela se fez passar por minha amiga, apenas para entrar na minha casa.  

— Acho que aproximaste-te demasiado da romana. – Seu irmão       clama. – Não achas que isso irá perturbar nossos planos não é?

Os passos de Sybilla cessam e fico com medo que ela tenha percebido minha presença.

— Não. – Ela responde por fim, meio que em murmúrio. – Eu sei que ela não irá perdoar nunca. Mas tem que ser feito, com muito pesar meu por ela. Mas irá ultrapassar. É só inventar qualquer história. Um acidente ou um assalto que sucumbiu na sua morte.

Ela tinha razão. Eu não iria perdoar nunca. No entanto, ela estava enganada quando proclamava que eu iria ultrapassar. Não iria. Não quando eu ainda podia fazer algo a respeito e Marte1 que me ajudasse mas eu iria retaliar.

Sem querer ouvir mais, deslizo para trás fazendo o menor barulho possível e me esquivo para fora do aposento. Eles tiraram Kiro de mim, lhe deram a liberdade e para quê? Liberdade em troco da vida não era negociável! Eles não podiam fazer isso! Quem eles achavam que eram para decidir quem vive ou quem morre? Eu não ia tolerar tal coisa. Não ficaria de braços cruzados esperando eles levarem Kiro de mim.

Saio da villa já a correr, tropeçando nos meus próprios pés que parecem ter deixado de receber meus comandos para avançar. Minhas pernas parecem bambas. Minha cabeça lateja e meus pulmões ardem golfando por ar. Meus cabelos colavam à testa suada e eu sentia que estava a ponto de desfalecer. Mas não podia. Eu estava muito vulnerável aqui fora, ainda para mais sem um servo de companhia. Eu tinha que chegar em casa. Forcei um pé a seguir ao outro, meus braços balançando ao lado do corpo, tentando equilibrar-me.

O regresso a casa foi lento, ainda que estivesse a escassos metros da moradia dos Cletardes. Mal tive oportunidade, recostei-me no divã do cómodo principal.

— Domina! – Uma voz feminina e melodiosa encheu o ar. – Pelos Deuses, a senhorita está muito pálida.

Forcei-me a abrir as pálpebras e detetei Crinia vindo a meu encontro, com a criança nos braços.  A menina de aproximadamente dois anos está visivelmente mais saudável, sua pele negra reluzente e um belo sorriso angelical nos lábios. Tão doce e gentil. Crinia se ajoelha a meu lado e coloca sua mão livre na minha testa.

— Aconteceu alguma coisa Domina? Sente-se bem? – Sua preocupação era patente na voz.

A bebé em seus braços tenta segurar alguns fios do meu cabelo mas Crinia a impede, resultando num beicinho adorável na criança.

— Ela já tem nome?- Questiono e Crinia enruga a testa, confusa pela mudança de conversa que eu infligi.

— Não, Domina. Tal honra não me compete a mim. – Ela responde, balançando a menina em seus braços.

— Eu a encarrego então de tal honra. Me avise quando chegar a um consenso.

— Sim, senhorita Valéria. – Ela faz uma vénia desajeitada pelo peso que carrega nos braços. – Posso ajudar em mais alguma coisa?

— Pode chamar Tírio até mim por favor? – Crinia assente. – Está dispensada por agora.

Fecho meus olhos e repouso enquanto aguardo a vinda de Tírio. Eu não sei ainda o que farei. Cada vez que tento arranjar um plano, minha cabeça volta a doer. Porém, quando Tírio aparece, eu descubro qual meu movimento seguinte.

— Tírio, onde está meu pai?

— Em negócios na cidade, menina Valéria. Só regressará depois de anoitecer. – Ele responde acenando respeitosamente na minha direção.

Me sento ereta no divã e encaro o servo com um olhar obstinado, mas suplicante.

— Por favor, solicita a presença de Kiro, na Villa.

Tírio arregala os olhos porém eu não me abalo.

— Mas menina Valéria, seu pai…

— Eu tenho perfeita consciência das ordens do meu pai.- O interrompo. - Mas eu estou pedindo que desafie as ordens do meu pai por mim. Por favor.

Tírio parece indeciso mas quando ele suspira profundamente, percebo que o tenho.

— Vai ter cuidado menina Valéria e manter a descrição?

— Claro. Eu só preciso de uma conversa breve com ele, longe de olhares injuriosos, nada mais. – Garanto.

Dito isto, Tírio assente e se desloca, a caminho da Villa dos Cletardes. Ele voltaria com Kiro e eu contaria para ele tudo o que ouvi. Ele me ajudará a montar um plano e livrarmo-nos daqueles dois demónios. Nós fugiríamos. Ele já tinha sua liberdade. Nós conseguiríamos escapar. Iriamos estabelecer-nos em qualquer lugar, não importava onde. Eu trabalharia se necessário. Criaríamos nossa família, nossos futuros filhos. E nada além disso importaria mais. Bastava que estivéssemos juntos.

Impaciente, me levanto e rodopio em volta do comodo, de um lado para o outro, aguardando a chegada dos dois homens. Eles estavam a demorar demais.

— Valéria! – Olho para trás no momento que Kiro me segura em seus braços. – Senti a tua falta no mercado.

— Assuntos urgentes me impediram de ir. – Explico. Faço sinal para Tírio se ausentar. – Mas estamos aqui os dois agora.

Kiro abre seu sorriso perfeito e me segura mais para perto dele, cheirando meus cabelos.

— Eu mal posso esperar para te dar a conhecer a minha terra. – Ele diz animado. – Sybilla diz que nos levará para a minha tribo. Ela garante que ainda estão posicionados no mesmo território. Irás ver, viveremos bem. Mulher de guerreiro é um bom estatuto.

— Tu eras guerreiro? – Eu o encaro. Quando meu pai o comprou, Kiro era dificilmente um homem adulto.

 - Ainda não. Mas estava no meu sangue, na minha linhagem. Estava a ser treinado para tal quando os romanos me capturaram durante uma caçada.

Eu assinto, aceitando sua explicação, mas preocupada. Não ficaria bem até lhe contar a verdade.

— Kiro, precisámos conversar.- O puxo até ao divã e forço-o a sentar-se comigo.- Sybilla não vai levar-nos para Germânia.

Kiro me olha sem ousar soltar uma palavra. Sua respiração está estável e sua expressão indecifrável. Então, olha em volta, como se não quisesse olhar para mim. Então, se levanta e fica de costas para mim.

— Valeria, o que estás a dizer? – Ele pergunta como se não tivesse percebido o que eu tinha dito.

— Eles estão a enganar-te. Eles…

— Pára. – Ele interrompeu. – Pára. Eles não querem nada para além de ajudar.

Eu me levanto e puxo seu braço, o obrigando a olhar para mim.

— Acredita em mim! É um truque. Sybilla quer usar-te como sacrifício para um ritual. Entendes o que isso quer dizer? Ela vai matar-te!

— Já chega Valéria! Como podes dizer uma coisa dessas? Porque estás a fazer isto? – Kiro retirou o meu braço e me olhou com uma mágoa enorme. – Não precisas arranjar desculpas. Se não queres mais vir comigo, só precisavas expressar a tua vontade. Eu não te vou forçar a nada.

— Não! Entendes-me errado! – Eu me desespero. Ele acha que nosso amor era uma mentira. Ignoro sua intenção de me afastar e seguro seu rosto bem perto do meu. – Eu amo-te. Por Vénus, eu amo-te!

Sua expressão se suaviza e ele acaricia uma das minhas mãos no seu rosto.

— Então porque fazes isto? – Ele questiona, fechando os olhos, sentindo o meu toque. – Porque dizes essas mentiras?

Eu suspiro, certa de que não conseguirei fazê-lo acreditar em mim.

— Tens razão. – Acabo por mentir. – A verdade é que não gosto de saber que estás na casa dela quando ela tão claramente mostra o interesse por ti.

Kiro deixa cair sua expressão magoada para esboçar um sorriso divertido.

— Valéria… - Ele continua a sorrir, deixando-me desconfortável e segura minha cintura. – Tu estás com ciúmes?

— Não é ciúmes! – Replico. – É perseverança! Gosto de manter o que é meu.

Seu sorriso descai ligeiramente e seu aperto afrouxa.

— Eu não sou de ninguém agora. – Se defende. – Eu conquistei minha liberdade.

— Sim, a liberdade é tua. – Concordo e pouso minha cabeça no seu peito ouvindo sua palpitação. – Mas o coração é meu.

— Não posso negar a verdade nas tuas palavras. – Ele me embala no seu corpo. – Meu coração será teu mesmo na além-vida.

Kiro não acreditava em mim. Estava cego pela felicidade e pela ambição de reencontrar os seus. Mas eu não desistiria tão facilmente. Se ele não podia ver através do véu, eu seria seus olhos. Trataria do assunto com minhas próprias mãos. E Sybilla e seu irmãozinho iriam arrepender-se de ter atravessado o meu caminho.

Manteria meu coração a salvo, pois sem ele, eu morreria. Kiro não iria ser sacrificado. Não sem que eu tentasse tudo para o salvar de tão cruel fado. Iria arruinar aquela loirinha funesta. Ela iria implorar por meu perdão. Ah se iria. A morte era um caminho fácil demais. Ela iria sofrer primeiro. Então Kiro e eu seríamos verdadeiramente livres. Para toda a eternidade.

— Valéria, eu tenho que ir. Não posso arriscar a que me vejam aqui ou todos os nossos planos se desvaneceriam. – Kiro acorda-me de meus desvaneios.

— Sim, tens razão. Melhor ires. Meu pai em breve estará em casa. – Refiro.

Kiro assente e me beija levemente, um beijo tão cálido que quase me irrito por ele ser tão gentil. Tão depressa ele está nos meus braços como já está a atravessar a rua. Suspiro tristemente e me escondo nos meus aposentos privados. Me escondo do mundo.

Mas o mundo não se interessa por meus tormentos e acaba por sugar-me novamente para si horas depois, já num novo dia pela manhã. Ouço um choro de criança através das paredes. Crinia deveria estar a tomar conta da criança! Nunca a menina chorara tanto. Saio do meu leito ainda sonolenta, com os fios revoltos na minha cabeça. Coloco um pequeno lençol ao redor dos ombros e tento encontrar a origem do choro. Levo alguns minutos para encontrar o caminho certo, escolhendo direções que só me afastavam da criança. Quando chego perto vejo a menina no chão, suas bochechas cheias cobertas de lágrimas. Seus tufinhos de cabelo negro estavam arrepiados, como se ela tivesse visto um fantasma.

Vinho estava derramado a seu lado. Olho em volta mas não vejo Crinia em lugar nenhum. Seguro a menina nos meus braços e começo a busca pela serva. Enquanto caminho, tento acalmar a bebé enquanto cantarolo num sussurro para ela. Tiro o lençol dos meus ombros e cubro o corpinho pequenino.

— Crinia – Vou chamando com a voz controlada para não acordar ninguém. Quando digo alguém, refiro-me a meu pai que não ia gostar nada de saber que uma das suas escravas está desaparecida.

Depois de percorrer toda a villa, excetuando os aposentos do meu pai, acabo por decidir encaminhar-me para as instalações dos escravos. Por norma, ficavam apenas ali os escravos para venda. Os servis da casa tinham pequenos espaços na própria villa. Atravesso a pequena distância entre a villa e os aposentos dos escravos e meu corpo se arrepia com o vento gelado da aurora.

Então uma figura aparece numa correria desenfreada. Crinia trava ao se aperceber da minha presença.

— Domina! – Ela faz uma vénia rápida, suas bochechas coradas pelo esforço. – Pelos Deuses, Domina, venha comigo!

Me apresso atrás dela e mal entro, ouço sons que eu logo descubro serem de uma briga. Crinia me conduz pelas catacumbas até que vejo corpos se contorcendo numa luta selvagem. Um dos irmãos está no chão, exaurido e todo ensanguentado enquanto o seu oponente, um homem grande e forte, dá um grito de vitória, orgulhoso de si mesmo. O outro irmão, o mais velho, rugia enquanto quatro dos escravos o seguravam, impedindo-o de se meter na briga. O vitorioso dá uma gargalhada e se prepara para o golpe final, ou seja, o golpe mortal.

— Nem te atrevas! – Grito por cima das vozes e o graúdo me olha chocado.

A bebé em meus braços acorda com o barulho infernal ali dentro e retoma o choro. Crinia a tira dos meus braços e a embala inutilmente.

— Domina. – O homem se ajoelha à minha frente.

— Levanta! – Ordeno ferozmente e ele o faz rapidamente. – O que vem a ser isto?

Todos se permanecem calados enquanto me ajoelho ao lado do gémeo ferido e avalio suas feridas. Não está bom, mas recuperará bem. Rasgo a bainha da minha roupa de dormir e mergulho num cântaro de água que encontro ali. Torço bem o farrapo e começo a limpar as feridas enquanto todos me observam estáticos. Bufo descontrolada.

— Seus inúteis! – Grito. – Olhem bem o que fizeram! Ninguém quer falar? Que maravilha. Acho que chegou a hora de vos relembrar qual o vosso lugar! Aguardem por novas ordens e se comportem!

Respiro fundo e com a voz mais controlada chamo o irmão do agredido para carrega-lo até à vila. Crinia sai à nossa frente, ainda a tentar acalmar a bebé. Peço para o levarem para a sala de banho e mergulhar o jovem nas águas. O mais velho assim o conclui e depois faz uma vénia, fazendo menção de voltar para os aposentos dos escravos.

— Não vás. – Falo num fio de voz, exausta. – Temo que não será seguro para nenhum de vocês lá.

— Receio que a Domina tenha razão. – Ele Confessa.

— Quais são os vossos nomes? – Pergunto enquanto mergulho meus pés na água morna, do lado oposto ao de Crinia, que está a lavar as feridas do jovem que geme de dor.

— Fixus e Donn – Ele responde, apontando primeiramente para si e depois para o seu gémeo.

— Bonitos nomes. Agora explica-me o que aconteceu lá em baixo.

Em vez de responder ele olha para seu irmão. Eu sigo o seu olhar e percebo imediatamente o que vejo. O olhar de Crinia sobre ele, o cuidado com que ela limpa sua pele maltratada.

— O grandão lá fez alguma coisa que incomodou Crinia? – Tento adivinhar. Crinia me ouve e suas bochechas ficam escarlates, tanto de vergonha como de medo. Fixus hesita. – Senta aqui a meu lado e responde.

Vagarosamente, ele se senta, mergulhando também seus pés na água e solta um murmúrio de satisfação. Porém, mantém uma distância respeitosa de mim, o que eu admiro.

— O cartaginense queria colocar as mãos imundas em Crinia contra a sua vontade. Donn não deixou que isso acontecesse. – Ele explicou, seu maxilar tenso, pronto para encarar uma luta se necessário. – Compreendo que Donn será castigado, mas se fosse eu teria feito exatamente o mesmo.

— Teria? – Pergunto curiosa. - Porquê?

— Porque não somos nada sem o nosso coração. Então temos que preservá-lo e protege-lo. Foi isso que Donn fez. – Ele conta.

— Como eu entendo… - Confesso. – Receio que esteja na mesma situação que Donn. Fazer algo muito errado para vingar e  proteger quem amo.

— Domina? – Fixus parece vacilante, achando ter ouvido mal.

Olho para a água pois se deslocar o olhar, temo que as lágrimas brotem. Ainda assim, uma lágrima desliza pelo meu rosto e a limpo rapidamente mas não a tempo de que ninguém a percebesse.

— Não é nada. – Suspiro lentamente. – Providenciarei que fiquem aqui na villa por tempo indeterminado, longe daqueles animais.

Eu começo a me levantar, mas Fixus é mais rápido e me ajuda, segurando delicadamente meu braço.

— Domina, eu não tenho meios nem nunca terei de recompensar tudo o que já fez por mim e por meu irmão. Não é apenas nossa Domina. Aos nossos olhos, a senhorita se iguala aos deuses em que acredita. – Fixus se ajoelha à minha frente, me deixando perplexa. – Então lhe peço, nos deixe acompanhá-la na sua jornada, sendo as suas mãos e os seus olhos.

— Eu não posso pedir isso a vocês – Afirmo – Poderia condenar-vos.

— A senhorita Valéria não está a pedir. Estamos a oferecer-nos. Por favor, aceite nossa oferenda e veja os seus inimigos cair por terra.

 

 


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Notas finais do capítulo

E aí?
Mais Dispostos?
O que acham onde isto levará? Me contem o que vossas cabecinhas estão a magicar! hehehehe
Beijos fofos!!



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