Juventude Transviada escrita por Isadora Nardes


Capítulo 15
Capítulo 15 - Mariane


Notas iniciais do capítulo

Trilha: Gasoline (Halsey) https://www.youtube.com/watch?v=zRHNi3QfFlE



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Mariane esperava não estar cheirando a cigarro quando entrou em casa. Sua mãe levantou do computador e olhou pra ela.

  -- Onde você estava? – perguntou.

  -- Fora – Mariane disse.

  -- Não me responda assim! — a mãe de Mariane gritou. – Com quem você estava?

  -- Com o Gabriel – Mariane respondeu. Não fazia sentido mentir.

  -- Você não pode sair desse jeito! Você é menor de 18!

  Mariane revirou os olhos.

  -- Eu não transo, eu não uso drogas, eu não bebo – Mariane disse.

  1/3 de verdade, Mariane pensou.

  --... Acho que posso ficar uma noite fora.

  -- Tem que me pedir! Eu tenho que falar com os pais dos seus amigos!

  Mariane bufou.

  -- Eu tenho 16 anos! – Mariane disse. – Eu não preciso que você ligue pra mãe de ninguém!

  -- Eu achei que você poderia ter sido estuprada! – a mãe de Mariane disse.

  -- Se fosse pra ter sido estuprada, eu já teria sido, porque eu estava em um lugar onde ninguém tava se importando muito com quem era quem – Mariane disse. Perdeu o ar quando sentiu sua face arder, as unhas de sua mãe arranharem sua bochecha.

  -- Não fale comigo desse jeito! – sua mãe gritou. – Vai pro seu quarto. Não quero ver sua cara.

  Mariane respirou fundo. Já havia levado muitos tapas e ido para seu quarto muitas vezes. Não aguentava mais prender a respiração, prender a frustração e a raiva e se trancar no quarto. Se fizesse isso de novo, não seria como das outras vezes. Ela não desenharia seus desenhos estranhos, ligaria o pisca-pisca de Natal e dançaria, não se concentraria em seu Bonsai.

  Ela se jogaria da janela.

  Sabia disso porque já havia pensado muitas vezes naquilo. Na reação da sua mãe, de seus vizinhos, de sua família. Na reação de seus amigos. Será que algum deles – qualquer um – ia sentir sua falta mesmo? Será que Danielle ia ficar tão apática? Será que Bruno ia levar todos para seu funeral? Será que Thauane ia passar a noite chorando?

  Ela não se importava muito com eles.

  Pra ela, se Gabriel sentisse sua falta, já era o bastante. Se ele derramasse uma lágrima, se ele passasse uma noite pensando nela, se ele fizesse um desenho, se ele deixasse de sorrir por alguns dias porque ela não estava ali... Não precisava ficar deprimido para o resto da vida, nunca mais beber cappuccinos porque o faria lembrar dela nem nada do gênero (se bem que isso seria uma baita consideração). Bastava que ele sentisse falta dela, um pouco.

  Mas como ela saberia? Depois de sua morte, será que ela saberia de qualquer coisa? Saberia como os outros iam se sentir? Ela veria? Flutuaria por cima das cabeças das pessoas com as quais ela se importava – como nos filmes? Presumia que não. Não acreditava em alma, não acreditava em vida após a morte, em céu, inferno e purgatório, em deus. Acreditava que, quando seu cérebro finalmente se desligava, era o fim. Não havia nenhum branco e nenhuma escuridão após isso. Era o nada. Desprovido de cor, de espaço, de som. O infinito atemporal.

  Então, como ela saberia?

  Bem, não saberia.

  Mas sabia que não iria descobrir naquele momento.

  Ela se virou e abriu a porta da sala.

  -- Onde você pensa que vai? – sua mãe perguntou. Mariane não respondeu. Correu pelo portão, desceu a rua correndo, seu casaco caía pelos ombros. Ela chegou na esquina. Olhou em volta. Continuou correndo.

* * *

Ela não queria tocar a campainha da casa de Gabriel. Ela deu a volta e olhou na janela do quarto dele. Ele estava lá, sentando na sua escrivaninha, desenhando, com um copo de refrigerante do lado.

  Mariane levantou os dedos. Estava prestes a bater, quando percebeu que tinha lágrimas nos olhos. E que porra estava fazendo ali? Não podia ir pra casa, mas não podia entrar ali também. Ela se afastou da janela e enxugou as lágrimas. Se sentou no chão e encostou as costas na parede da casa.

  Soluçou. Precisava de alguém ali – mas não tinha ninguém. Ninguém pra acender um cigarro pra ela, pra abraçar ela, pra dizer que ia sentir a falta dela quando ela morresse.

  Pare de ser tão sentimental, ela se repreendeu. Não adiantou. Ela ainda tremia, ainda tinha medo de ficar sozinha por toda a eternidade – sabendo que não tinha ninguém e que nunca ia ter ninguém junto dela.

  Ouviu Gabriel se mover dentro do quarto. Ficou de quatro e engatinhou até longe da janela. Depois se levantou e foi até a calçada. Olhou para os dois lados. O vento gelado bateu. Seu celular tocou. Era sua mãe. Ela não atendeu. O que ia dizer? Não ia conseguir falar com sua mãe gritando o tempo inteiro.

  Foi até a avenida e entrou no ônibus. Mariane se sentou em um banco na frente de uma velhinha – que a encarou. Mariane olhou pra ela.

  -- O quê? – perguntou. A velhinha não respondeu. Mariane foi até o fundo do ônibus. Encostou a cabeça no vidro. Conhecia aquele bairro muito bem – e todas as pessoas ali. Mesmo que não soubesse os nomes delas, sabia as histórias, de certa forma. Todas iguais, partes de uma máquina, não eram realmente indivíduos.

  Mariane esfregou as mãos. O frio a corroía. Ela queria estar com seus fones de ouvido, mas eles haviam estragado quando ela fazia exercício no parque.

  Desceu do ônibus e andou algumas quadras. Tocou a campainha da casa de Katrina e respirou fundo. Havia um tempo que não falava com Katrina – realmente falar. Katrina era muito infantil. Havia reprovado várias vezes, não estudava, achava que seu futuro ia ser como Youtuber em São Paulo.

  Quando Katrina abriu a porta, Mariane estava se controlando pra não sair correndo novamente. Não é que Katrina fosse uma pessoa má – mas ela gostava muito de fofoca. Extraía um prazer inacreditável em falar da vida dos outros. Mas todos pareciam cofiar muito nela – o que dava um nó na cabeça de Mariane.

  Mariane já havia contado muitos segredos para Katrina. Das vezes que tentara vomitar o que comera, de como se sentia quando olhava no espelho. Já havia convivido com a família e Katrina, no entanto. A mãe era cozinheira e o pai era caminhoneiro. Já havia ajudado a mãe de Katrina na cozinha. O pai de Katrina já lhe tratara como filha – mas não deu nada certo, depois que sua mãe brigara com ele.

  -- Mari, oi – Katrina disse, abrindo o portão. – Podia ter ligado.

  -- Você tá ocupada? – Mariane perguntou.

  -- Não, mas... Podia ter ligado... Você é não de... Bom, normalmente sua mãe que...

  -- Bom, eu não sou minha mãe, né? – Mariane disse, entrando no terreno de Katrina, desde que os pais dela foram embora, ela tinha aquela casa só pra ela, e não pretendia ir a outro lugar – exceto, talvez, São Paulo.

  -- Certo, desculpa – Katrina disse. – O que você precisa?

  -- Só preciso saber se... Se você... – Mariane fungou. Olhou nos olhos de Katrina. – Você vai sentir minha falta? Quando eu morrer?

  Katrina levantou as sobrancelhas.

  -- Isso é por causa do Gus e do Caio? – Katrina perguntou.

  -- Não – Mariane fez que não com a cabeça. – É porque... Eu me sinto tão... Eu não sei o que fazer, certo? – Mariane disse. – Que merda.

  Katrina abraçou Mariane. Fazia um tempo que Mariane não abraçava Katrina e era, de certa forma, reconfortante. Não havia hostilidade. Por mais criança que Katrina fosse, Mariane ainda sentia que conseguia falar de si com ela. Não tudo, mas grande parte. E grande parte é muita coisa. Uns 2/3 de verdade, talvez.

* * *

—- Você não acha melhor ligar pra sua mãe? – Katrina perguntou.

  Mariane e Katrina estavam sentadas no sofá da sala. Katrina estava bebendo Nescau e Mariane aceitou apenas chá. Estava frio, todas as janelas estavam fechadas e as duas estavam enroladas em seus casacos.

  Mariane sabia que estava sendo tão infantil quanto Katrina. Mas havia sido tão madura por tanto tempo... Não aguentava mais. Passara meses fitando seu corpo no espelho, tendo medo da cozinha, usando fitas métricas e balanças mais de duas vezes por semana, não sorria, não dançava, não conseguia mais ouvir música.

  Não tinha o direito de fugir um pouco das coisas? Não tinha o direito de fugir de memórias dolorosas? Não tinha o direito de agir um pouco como criança, de deixar de ser responsável, se deixar seu futuro se guiar sozinho por um momento?

  Não. Não tinha.

  -- Você tá certa -- Mariane fungou. Pegou o celular e ligou pra mãe. Três toques e ela atendeu.

  -- Onde você está? – perguntou.

  -- Na casa da Katrina – Mariane disse. Fungou. – Me desculpa.

  -- Não, não desculpo. Fica aí que eu vou buscar você.

  -- Eu vou pra casa – Mariane disse. – Eu tô indo pra casa.

  Desligou o telefone. Katrina deu um meio-sorriso.

  Talvez fosse daquilo que Mariane precisasse. Meios-sorrisos.

* * *

No ponto de ônibus, tanto Katrina quanto Mariane ansiavam por cigarros. Mariane arrancou uma folha de um arbusto e picotou tanto que tinha certeza de ter conseguido separar o átomo a mão.

  -- Você é apaixonada pelo Gabriel, né? – Katrina perguntou, de repente. Mariane olhou pra ela.

  -- O quão óbvio é? – perguntou.

  -- Bastante.

  -- Ele não percebe.

  -- Porque ele é idiota! – Katrina bateu as mãos nas coxas. – Meu deus, você deveria beijar ele e acabar com essa porra desse dilema.

  Mariane suspirou. Sabia que deveria fazer isso.

  -- Eu não consigo – ela disse. – Hoje de manhã eu tava na janela do quarto dele. Eu ia bater, ia conversar, ia... Eu sei lá. Não sei o que eu ia fazer. Mas eu não fiz. Quer dizer, a gente passou a noite inteira junto. Conversando.

  -- Conversando?  -- Katrina perguntou. – Meu deus, esse piá é muito gay! Quer dizer, onde vocês estavam?

  -- No parque. Tipo, na beira da pista de rolimã, sabe? A gente só ficou lá, bem de boa. Eu tive vontade de beijar ele. Tipo várias vezes. Mas eu não consegui. Quer dizer, e se ele se afastasse? E se ele risse de mim? – Mariane abaixou a cabeça. – E se ele apenas espalhasse pra todo mundo, como uma piada? – a voz de Mariane falhou.

  -- Você tá apavorada, né? – Katrina perguntou. Mariane fez que sim com a cabeça. – Você não precisa ficar assim.

  -- É que eu não consigo... Não vou conseguir ser humilhada de novo – Mariane levantou a cabeça. Duas lágrimas correram pelo seu rosto, uma de cada lado.

  -- Ninguém vai te humilhar de novo – Katrina disse. – Não tem motivo pra isso.

  -- Será que não tem? – Mariane perguntou. O ônibus surgiu na esquina. Mariane levantou o braço. Limpou a garganta. Olhou pra Katrina. – Obrigada – ela disse.

  -- Por nada – Katrina murmurou. Mariane subiu no ônibus. – Ei – Mariane se virou. – Apenas... Coma, tá?

  Mariane fez que sim com a cabeça.


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Notas finais do capítulo

Oi!
Preciso muito da ajuda de vocês.
Já usei o ponto de vista de todos os personagens, e agora estou repetindo. A fic vai até o capítulo 20, e preciso saber quais outros personagens vocês querem que eu explore mais.
Os mais treteiros, tipo Lucas/Marcos/Thau? Os que eu não falei muito, tipo Sarah/Bruno/Jeana? Ou talvez os que são meio inúteis, tipo a Dani? HELP



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