O Andarilho escrita por netobtu


Capítulo 19
Capítulo 19




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            - Uissou tá muitol... glup... bom! - exclamou o Homem, enquanto se deliciava de purê de batata, ainda de boca cheia, afinal era um homem simples, não tivera muita educação além a da obediência e percepção de quem era superior a ele. Mas destas coisas da boa etiqueta ele não sabia. Talvez já tenha ouvido em algum lugar sobre ser feio e de mau gosto falar enquanto tem a boca cheia.

            O malabarista estava alheio ao Homem, e olhava em volta, percebendo o lugar, enquanto o cão também comia purê de batatas (sim, fora servido pelo cozinheiro). O refeitório era muito estranho (se é que há algo neste mundo onde o Homem vive que não o seja), não pela sua arquitetura, pois nisto era um refeitório comum: uma sala enorme, com várias mesas comunitárias compridas, onde se sentavam os esfomeados. O que me refiro a ser estranho eram os esfomeados mesmo, talvez seja devido a estarem em um hospício, mas sinceramente não deve ser isto, afinal creio que em nenhum hospício havia criaturas tão estranhas como ali. Não vou descrevê-los todos, leitor, mas darei um breve exemplo de um ser ali que possuía uma cabeça de cavalo, ou talvez fosse uma máscara, quem sabe? Todo o resto do seu corpo, porém, era humano, não possuía cascos, mas mãos. E comia pelo pescoço, através de um buraco de onde saía uma enorme língua, e sua boca eqüina era costurada.

            Nada disto parecia espantar o malabarista, talvez ele já tivesse estado ali, mas ele olhava tudo com um pouco de apreensão. Incrivelmente era que ninguém naquele lugar ligava para ninguém. Não se via nenhum paciente conversando, estavam todos muito atentos ao seu purê de batatas. O esqueleto recepcionista, vendo que o Homem havia acabado de comer, sentou-se ao seu lado.

            - Está do seu agrado o purê? - perguntou ao Homem, que estava lambendo a bandeja.

            - Nossa, sim, muito bom! Agora sim estou satisfeito, estava faminto. Muito obrigado! - sorriu-lhe o Homem.

            - Muito bem. Acredito que você precise de descanso, não? Temos um quarto vago, talvez seja bom vocês descansarem.

            - Nossa, um quarto mesmo? Com uma cama?

            - Sim, com uma cama.

            - Macia?

            - Senhor, até as paredes são macias.

            - Vamos querer sim. Quanto vai custar?

            - Não vou lhe cobrar, não é necessário, o quarto está vago. Descansa hoje e amanhã vai-se embora.

            O Homem não conseguia esconder toda a sua felicidade, estava na verdade tremendo de tanta alegria, sorria que nem um abobado. Até ria, o que fazia com que ele cuspisse um pouco do suco de tamarindo que tomava. Ao ver isto, o malabarista virou-se para ele e quis saber o motivo de tanta euforia:

            - O que está acontecendo? O suco está muito ruim? Você está rindo, acho que nunca te vi rindo.

            - Finalmente achamos um pouco de hospitalidade. Vamos pernoitar aqui e amanhã continuaremos.

            - Você não prefere irmos embora? Dormimos aí pela estrada...

            - Está maluco? Meu corpo pede por um descanso.

            - Mas você não percebe? Olhe à sua volta, está cheio de imaginários aqui. - disse arregalando os olhos inexistentes e abrindo os braços.

            - O quê? Foram tão hospitaleiros, e daí que é um hospício? Nós vamos ficar. - disse o Homem, encerrando o assunto, levantando-se e pedindo para que o recepcionista os levasse até o quarto.

            Na verdade, não era bem um quarto, e o Homem percebeu isto quando chegou no seu aposento. Era uma cela, mais uma na vida dele, o que lhe fez gelar a espinha (mesmo eu, o narrador, acreditando que não se possa gelar a espinha de alguém, é mais modo de falar), porém, ao ver duas camas ali, esqueceu de tudo isso e correu para se estirar nela. O malabarista também entrou e sentou-se na cama ao lado da do Homem. Não disse nada, simplesmente deitou e... e, na verdade, não se sabe se o malabarista pode ou não dormir, afinal, ele não tem olhos para fechar, então, encerremos o assunto como se ele tivesse apenas se deitado.

            O Homem dormiu instantaneamente, e então começou a sonhar.

 

- ! -

 

            Um barulho de apito ouvia-se ao longe. Era em um ritmo compassado, rítmico, quase que com uma freqüência idêntica. Um apito agudo, certamente. Aquilo muito incomodava o Homem, afinal ele havia acabado de dormir. Decidiu abrir os olhos, mas eles estavam muito pesados. Sentia sua pele perfurada, seu corpo estava pesado. Concentrando toda a sua força nos olhos, conseguiu abri-los, mas fechou-os rapidamente, estava em um lugar muito branco. Ouvia uma voz ao fundo, bem etérea, quase como um eco:

            - Ele está acordando, ele está acordando! - dizia a voz.

            E o Homem sentiu-se sendo analisado e sacudido, e isto o incomodou bastante, pensava que devia ser o malabarista, mais uma vez lhe enchendo a paciência. Mas não era. Abriu os olhos mais uma vez, com vontade de ralhar com ele e lá estava uma figura que se parecia com um médico: todo de branco e com uma máscara, destas que se usam em hospitais mesmo. O Homem se assustou e começou a gritar e a se debater.

            - Quem é você? Quem é você? Onde está o recepcionista? Cadê o malabarista? O cão? Socorro! Socorro! Você me perfurou todo, saia daqui, veja, estou cheio de fios e máquinas ligados a mim! - bradava o Homem.

            - Acalme-se, por favor, o senhor está muito agitado. - disse-lhe o médico pacientemente.

            E subitamente toda aquela sala foi sumindo, como se alguém jogasse água em tinta fresca, foi escorrendo do teto para o chão e o Homem acordou.

 

- ! -

 

            - Pare de se debater, você está bem. - dizia o malabarista, segurando-o pelos ombros.

            E o Homem então viu o rosto conhecido do malabarista, os olhos inexistentes, a boca larga, o sorriso que tentava fugir daquela face. E ficou feliz ao vê-lo, abraçou-o e lhe contou de seu sonho, com grandes doses de drama, dizendo que havia um homem enorme que lhe perfurava a pele com instrumentos de corte horríveis. O malabarista ficou com uma expressão que sugeria medo, porém o Homem não percebeu. Aliás, as expressões do malabarista eram difíceis de se perceber, ele era sempre tão alheio a tudo.

            O malabarista o aconselhou a levantarem e irem embora, pois aquele lugar certamente estava fazendo mal para ele, provocando-lhe pesadelos horríveis. O Homem concordou, estava inquieto, não agüentava mais ficar deitado, nem sabia quanto tempo havia dormido. O Homem correu para a porta e tentou abri-la, porém ela estava trancada e não havia fechadura por dentro. Ficou apreensivo com aquilo e julgou-se burro por ter acreditado na hospitalidade de um esqueleto. Olhou perplexo para o malabarista, e então fez uma cara que, se fossemos transformá-la em uma fala, seria:

            "Tire uma bazuca daí de dentro do seu cinto e vamos logo explodir essa droga de porta e ir embora."

            Como o malabarista não tinha bazuca, ele só ficou ali olhando para a porta.

            - Você não vai fazer nada? - perguntou-lhe o Homem.

            - O que eu posso fazer?

            - Sei lá! Você é o estranho aqui, você faz mágica, você faz uma mulher chorar só por olhar para ela. Faça esta porta sumir. - suplicou o Homem.

            - Faça você. Você pode mais do que eu.

            - Eu não posso nada, esta porta é tão sólida quando tudo, veja.

            E, quando foi tocar na porta para mostrar-lhe a rigidez dela, sua mão atravessou, o que fez com que o Homem atravessasse para o outro lado, assim como havia acontecido com a parede de entrada para o refeitório. Desta vez o Homem caiu no chão do outro lado. Logo depois vieram o malabarista e o cão, passando pela porta como o primeiro.

            Com o barulho provocado pela queda do Homem, foram acordando os pacientes, todos gritando, o que causava um barulho ensurdecedor, segundo relatos. O cão ficara inquieto e estava rosnando, os pacientes saíam de suas celas e vinham para cima do Homem, todos irritados, inclusive o da cabeça de cavalo, cuja língua saía do pescoço, em sinal de desaprovação. Perante toda esta hostilidade, o malabarista posicionou-se à frente do Homem e pegou duas facas, uma em cada mão e começou a jogá-las para cima.

            Instantaneamente os pacientes se jogaram ao chão, tapando os ouvidos e pararam de gritar, aquele som angustiante que lembrava a morte ao Homem invadia todos os cantos do hospício. O Homem ficou angustiado, sentia que a morte estava chegando, sentia muito frio e começava a tremer. O malabarista então parou, vendo que já não havia mais ameaça, então as vozes pararam, juntamente com o frio. Uma mão ossuda foi estendida ao Homem e ele a agarrou, agradecendo pela ajuda para levantar. Era o esqueleto da recepção, vestindo as suas vestes pretas de sempre. Estava encapuzado.

            O Homem começou a sentir seu pescoço apertar e começou a perder o ar. As mãos do esqueleto da recepção apertavam com muita força e o fogo de seus olhos era vermelho intenso (o que pode soar clichê, perdoe o narrador, leitor). O Homem não conseguiu proferir nenhuma palavra, mas conseguiu tossir um "por quê?". E então o esqueleto olhou em seus olhos e disse:

            - Vim cobrar seu jantar e sua estadia.


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