Os Começos de Nós escrita por Mylanessa


Capítulo 1
Os Começos de Nós


Notas iniciais do capítulo

A história foi inspirada por essa música. Recomendo ouvi-la para sofrermos juntos. Also, ela é importante no desfecho. https://www.youtube.com/watch?v=HFWKJ2FUiAQ

Gente, não que seja explicitamente dito isso nessa história e na anterior, mas é para ela ser ambientada no comecinho da década de 90.

Eu optei por deixar os trechos na língua original, como normalmente se faz, e colocar a tradução no rodapé (notas finais).

A primeira parte dessa história foi escrita num surto de inspiração. Mas eu quis fazer uma segunda parte, bem, porque sim. Meu plano inicial era matar os dois nessa continuação. Mas eu deixei o fluffy tomar conta de mim ahahaha.


Boa leitura ♥

ps: eu nunca mais quero escrever em primeira+segunda pessoa.



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Como quase todas as histórias do mundo, a nossa começou porque outra havia chegado ao fim. Um tanto quanto desajeitado, regado a vinho roubado da adega dos seus pais, sessão coruja e vinis do This Mortal Coil, o ponto final da sua história levou um mês, uma semana e quatro dias para acertar a última linha da página. Ao longo das noites em que você chorou por ela, eu estava mais preocupado com o fato de te ter deitado no tapete do meu quarto, enquanto a chuva de verão caia lá fora, abafando a sua voz.

A formatura colegial deixou marcas em nós dois. Em você, um coração partido; em mim, a ingênua esperança alimentada pela eventual camiseta ou cartucho de videogame que você esquecia na minha casa. E olha, para ser sincero, não sei mais como foi que tudo isso começou. Mas suspeito que deve ter tido algo a ver com o fato de você ter esquecido seu terno no banco do meu carro, na noite da formatura em que te dei carona. Cogitei guardá-lo como souvenir e jamais te devolver. Mas não tive a coragem de arruinar a chance de poder, enfim, passar na rua da sua casa com um motivo real para tocar a campainha.

Você tinha anéis vermelhos de ressaca em volta dos olhos, e o topete escovado, completamente remodelado pelo travesseiro. Vi a cara feia do seu pai a nos espiar da janela, como se eu estivesse ali, em plena manhã de domingo, para te vender drogas ou colocá-lo no mau caminho. Sua mãe e irmã saíram naquele instante pela porta dos fundos, em seus sapatos de salto e trajes comportados de igreja. Cumprimentei-as e te entreguei o casaco do terno.

— Me desculpe pelo vexame de ontem — Você disse, resmungando numa voz rouca de sono, a mão coçando o peito descamisado. — Aquilo lá, a bebida e tal, não costuma acontecer. Perdi a cabeça com aquela merda toda.

Minha boca adiantou um “eu sei”, por um triz, quase me entregando. Mas simplesmente sorri e desconversei. Não esperava que fosse ser convidado para entrar, portanto, tratei logo de me despedir. Por mais que quisesse ficar, não podia correr o risco de permitir que a mente sóbria me traísse, e convertesse um cenário inocente num roteiro de desagradáveis casualidades. Mas, quando dei as costas, te ouvi me chamar.

— Ei, você vai no jogo de encerramento semana que vem, né?

— Sim, meu irmão mais novo quer assistir — menti, com todo o arsenal de imagens suas a explodirem na minha mente, me sentindo imbecil pelo constrangimento que aquilo me causava.

Nunca perdi um jogo seu desde o primeiro ano do ensino médio. Tenho todos os panfletos de divulgação guardados nas páginas do livro de inglês, que é para eu poder olhar sua foto quando quiser. E agora, temia que tudo isso estivesse vazando para fora de mim, denunciando cada pequena obsessão a seu respeito que, com tanto cuidado, mantive em segredo durante esses três anos.

Mas você apenas sorriu e sacudiu a cabeça, alheio e ignorante a tudo que eu saiba a seu respeito. Desconhecedor de todos os poemas anônimos, e dos olhos que o espreitavam a distância. O sol então brilhou no seu rosto, me fazendo odiar todo o maldito o sistema solar pela necessidade de esfregar o óbvio e ululante na minha cara.

— Me procura na escola amanhã, depois do treino. Eu tenho convites de cadeiras especiais sobrando que ia dar para, bem... — Te ouvi suspirar, em meio a uma careta feia, provável reflexo do enjoo no seu estômago. — Eu posso arranjar eles para você e para o seu irmãozinho.

E assim foi. O jogo, apesar de apertado, acabou entrando para o seu repertório com o título de melhor vitória. Na comemoração, o time todo encheu a cara, e eu, mais uma vez, tive que te levar para casa. Dessa vez, ao invés de me fuzilar com os olhos, seu pai me agradeceu e pediu desculpas. Até me ofereceu dinheiro pela despesa com a gasolina. Mais tarde, acabei usando a grana para comprar outra cópia daquele meu disco que você tanto gosta (It’ll End In Tears) e guardei para te dar de presente no Natal. Depois desse dia, não voltei na sua casa. Até que, quando eu menos esperava, numa manhã quente de dezembro, você estava no pé da minha janela, com sua camiseta favorita do Bowie, gritando para que eu abrisse a porta.

No começo, tudo que eu te ouvia falar tinha o nome dela. Minha vontade era de gritar, de colocá-la na sua frente e despi-la de todas as fantasias que a sua cabeça idiota compôs ao redor dela. Mas mesmo eu tenho meus limites. Respeitei a sua dor, mesmo que ela também me machucasse. Eu era todo ouvidos, seu ombro amigo e confidente. Você chegava, ligava o toca-discos, bagunçava minha coleção de Playmobil e arrancava do lugar qualquer coisa que te chamasse a atenção na minha estante. Jogava-se no chão ou na minha cama (embora você preferisse o primeiro) e então começava:

— Hoje eu a vi descendo a avenida com as amigas, voltando da matinê daquele filme novo da Julia Roberts, que o marido é maluco e tudo mais. Ela tava toda vestidinha de branco e amarelo, com o cabelo solto. Sempre preferi o cabelo dela assim a quando ela prende no rabo de cavalo. Eu acenei de longe, mas ela fingiu que não me viu, mesmo depois de eu ter gritado o seu nome. Tentei ligar, tantas vezes eu tentei ligar pra casa dela, você nem ia acreditar. Mas a droga da linha nem chama mais, parece número fantasma. Não faz sentido, eu queria ter entendido. Talvez eu devesse conversar diretamente com o pai ou com o irmão dela. Eu tenho planos, vou pra faculdade no ano que vem. Não sou nenhum vagabundo que só quer saber de jogar bola. Talvez se eu fizer a família dela entender isso... Vou embora daqui, sabe? Vou fazer a vida fora dessa cidadezinha de merda. Você deveria também, já que é bem mais inteligente que eu. Aposto como meu avô te arranjaria alguma coisa na capital, fácil, fácil...

Depois de mais meia garrafa de vinho, vinham as lágrimas e as menções honrosas à tirania do seu pai. Enquanto isso, ao fundo, o toca-discos purgava a sua dor e abastecia as minhas tristezas. Não importava quantas vezes você me flagrasse cantarolando “você me chora dores de outro amor, se abre e acaba comigo”, a flecha nunca acertava o alvo. Saia ricocheteando pelo quarto até saltar de desgosto pela janela. Mas, como todo idiota apaixonado, eu aprendi apanhando que o perdão era o meu melhor amigo. Na verdade, já fazia um tempo desde que o meu coração assinara seu tratado de anistia. Eu te absolvia por tudo, pelo crime dos seus sorrisos, pelo ultraje da sua voz, e até mesmo pela sua incorrigível ignorância.

De madrugada, quando nós dois já estávamos derrubados de vinhos e canções sobre amores desventurados, eu ia para a sacada e acendia um cigarro. Mas você vinha atrás e o roubava da minha boca ou da minha mão para dar um trago. Não importava quantas vezes eu te pedisse para não fazer aquilo, parecia que no fim das contas, o seu prazer maior era receber a bronca.

Até que um dia, num fim de tarde em que Billy Corgan pranteava Disarm na rádio, eu tomei o cigarro da sua boca e te beijei. Não sei o que tinha me possuído: se um profundo sentimento de raiva e depreciação por tudo o que você tinha a dizer sobre a ex-namoradinha; ou se era o caso de eu simplesmente não ter mais a capacidade de censurar aquilo que bradava e que rasgava o meu peito a cada segundo que passava ao seu lado. E, bem, eu não poderia estar mais errado no pensamento de que te beijar fosse aplacar esse terremoto dentro de mim.

Quando nos afastamos, você me encarou assustado, como se eu tivesse sugado a felicidade da sua alma. Eu ainda sentia o gosto das suas balas de cereja na boca quando te vi levantar e desaparecer pela porta. Não tive a coragem e nem o descaramento de te seguir. Fiquei imóvel como uma efígie em ode ao vexame e ao arrependimento. E os versos de Billy Corgan ao fundo, que nunca mais quis ouvir, cantando a minha tragédia.

Mas esse não foi um fim. Apesar de eu sentir e amargar cada um dos dias que não recebi notícias suas como se fosse o meu último na terra. Tanto drama e tormento para um coração burro e amador de dezoito anos. Mas, com o tempo, entendi que tudo isso foi apenas uma longa pausa entre um capítulo e outro. Aquele momento de transição, enfastiante, indigesto, porém, necessário a qualquer narrativa. A ponte que nos permite atravessar de um lado para o outro. E eu queria, mais do que tudo, que você se decidisse logo de que lado iria ficar: no do ódio ou no do perdão.

Na verdade, você podia muito bem sumir, sem me dar satisfação alguma. Afinal, nada te impedia. Podia fingir que meus discos não estão na sua casa, e que suas fitas daquele horroroso Sexta Feira 13 não estão na minha. Podia também ignorar o fato de que até a minha mãe já sabe como você gosta do seu café da manhã. Quem sabe conseguisse também renunciar ao título de “tio” que meu irmãozinho te deu. Mas não poderia fazer isso. Não depois do tempo investido em algo que, sem que controlássemos, se tornara tão importante. Já era tarde demais para abandonar pela metade uma coisa que já caminhava com as próprias pernas.

E eu não sei se foi essa mesma coisa que te empurrou e te trouxe de volta. Mas fiquei feliz quando espiei através da cortina na véspera de Natal e te vi parado na minha calçada, hesitando em tocar a campainha. No fim das contas, você acabou se deixando acovardar e foi embora. Entretanto, aquilo era tudo que eu precisava saber: que você ainda se importava o bastante para vir me procurar.

Foi somente no dia trinta e um de dezembro que te vi outra vez.

Minha esperança é que nem aquela do Mário Quintana; ela entra em crise, pula do décimo segundo andar e sai andando ilesa, mesmo depois de ter se espatifado no chão. Eu nunca deixei de acreditar, mesmo com todas as nuvens de agouro que pairaram sobre mim no meio do caminho. E de repente, ali estávamos, frente a frente, sob a sombra de um ipê florido de branco. Eu sentado e você de pé. Um temporal de verão nos ameaçou aos trovões, e as nuvens corriam depressa, estirando no céu um cobertor de cinza. Você tinha um papel nas mãos, e, sem antes dizer qualquer outra coisa, começou a ler o excerto de “Song to the Siren”:

Here I am waiting to hold you.¹

Did I dream you dreamed about me?

Were you here when I was full sail? (…)

Swim to me, swim to me, let me enfold you.

Here I am. Here I am, waiting to hold you

E eu soube, assim que você terminou, que havia descoberto o meu segredo. Seus olhos estavam úmidos e tristes, como os de um animal frágil, perdido no mundo, de asas feridas, incapaz de alçar voo. A sua vaidade, antes tão formidável, que esculpia sua face, descia para os ombros e estufava o seu peito, agora se amoitava, deixando-o vulnerável.

— Foi você. Durante esse tempo todo, todas elas. Foram todas suas.

Assoprei a fumaça no vento frio e fechei Proust sobre o colo. Resignadamente, esperei que você me lançasse palavras de perplexidade, ou mesmo algum impropério vulgar. Ora, àquela altura você provavelmente já teria associado todas as referências dos poemas que te fiz, um por um, à minha pessoa. Também, minhas epígrafes não poderiam ter sido mais óbvias para uma cidadezinha de setenta mil habitantes: This Mortal Coil, The Smiths, Cocteau Twins, Slowdive... Digo, o dono da lojinha de discos nem sabe quem são esses.

— Não são nada comparadas àquelas que eu guardei em casa ou joguei fora.

Não havia confissão alguma a ser feita — a menos que eu quisesse me render a uma revelação decorativa, puramente sentimental. Mas a ferida estava exposta, e a verdade sangrava por entre nós. Não sei o que você procurava nos meus olhos naquele momento. Se foi remorso, a tentativa findou-se em vão. Uma vez descoberto, um crime só pode ser negado ou assumido. Lamentá-lo é apenas a maneira mais covarde de admiti-lo. No fundo, sei que sabe disso tanto quanto eu.

Então você veio, mudo, e se sentou ao meu lado. O céu, agora, inteiramente tomado de escuridão. As pessoas corriam para as suas casas, como se os relâmpagos e trovões estivessem em seus encalços. Pegando carona com o vento, o cheiro de folhas em decomposição se espalhava e contaminava nossos pulmões. Suas mãos continuavam a segurar o papel, e seus olhos o encaravam fixamente.

— Eu não espero que me perdoe — disse, por fim, fingindo não prestar atenção em você. — Mas também não consigo te pedir desculpas em completa paz de espírito.

— Não acho que eu mesmo saiba se te devo algum perdão. Talvez uma resposta. Porque não é como se a culpa só pesasse do seu lado.

Então me virei, para buscar contato com o seu rosto. Vi nele a presença de uma porção de ausências, porém, uma nota vibrava mais alto que as restantes: a sua integridade. Você sempre foi um rapaz de escrúpulos, mesmo nas suas mais eventuais e tolas libertinagens. E por isso, tudo aquilo estava te matando. No fundo, eu admitia que uma parte de mim encontrava satisfação com o seu tormento, na mesma medida que me preocupava em confortá-lo. Ora, até mesmo eu, cego e devoto, depois de tudo, precisava colocar à prova sua honestidade.

Tinha começado a chover quando você me entregou o papel. Gotas grossas borraram a tinta da caneta enquanto eu lia um trecho da mesma música que havia sido adicionado por você:

I'm as puzzled as a newborn child.²

I'm as riddled as the tide

Should I stand amid the breakers?

Com a chuva a engrossar sobre as nossas cabeças, e meu Proust a se encher de respingos de lama, levei alguns miseráveis segundos para assimilar. Então, apanhei a caneta no bolso do meu moletom e rabisquei um “yes” enorme ao final da pergunta do último verso. A tempestade estava piorando gradativamente. Te entreguei de volta o papel borrado e amassado. Sobre nós, a copa do ipê se dobrava à ventania e vertia suas florezinhas brancas, cobrindo o chão a nossa volta.

Virei para te encarar, seu topete arruinado, grudado na testa, e os lábios vermelhos de frio. Você sorriu e quase imediatamente olhou para o outro lado, balançando a cabeça. Tinha flores brancas grudadas no seu cabelo e na sua roupa. Mais do que nunca, eu quis te beijar naquele segundo, quis sentir o seu calor dentro do meu.

— Não posso te prometer nada — falei, gritando as palavras e cuspindo água, tentando vencer a torrente ensurdecedora da tempestade. — Além do mais, promessas são assustadoras.

— Nada é mais assustador do que você. Eu tenho outras cento e onze provas como essa em casa que não me deixam mentir. — Você ergueu na mão o papel todo embolado e ensopado.

— E eu não me arrependo de nenhuma delas — disse, surpreso com o cataclismo de liberdade que minha própria confissão me causava. — Bom, talvez algumas, que mereciam ter ido para a lixeira.

Você ri porque sabe que é verdade.

A chuva agora se acomoda e escorre no mundo, lavando aquela aquosidade quente que transbordava de mim. Senti sua mão sobre a minha, os seus dedos se encaixando nos meus. E a gente ficou ali, como dois indigentes sem teto, encharcados e tremendo de frio. Você me confrontava com a candura dos olhos de criança cismada, avoada, desconfiada. E eu, não menos perdido, te acolhia em toda aquela desordem sentimental. Nossos peitos se inflavam de horizontes; nossas mentes, de infinitos.

E Proust ensopado na grama lamentava, já sem qualquer chance de salvação. Ao contrário de nós, cujas páginas se abriam para revelar ao mundo as primeiras linhas da nossa redenção.


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Notas finais do capítulo

Traduções dos trechos:

¹ - Aqui estou, esperando para abraçá-lo
Será que sonhei que você sonhou comigo?
Você estava aqui quando eu navegava sob a vela cheia?
Nade até mim, nade até mim, deixe-me envolvê-lo.
Aqui estou, aqui estou, esperando para abraçá-lo.


² - Estou tão desorientado quanto um recém-nascido
Estou tão confuso quanto a maré
Será que eu deveria permanecer entre as ondas?


A canção "Song to the Siren" pertence à banda britânica This Mortal Coil. Assim como também é dela o álbum mencionado "t’ll End In Tears".


O trecho “você me chora dores de outro amor, se abre e acaba comigo”, é de autoria de Bebel e Cazuza.


"Disarm", pertence à banda The Smashing Pumpkins. Billy Corgan, mencionado no texto, é o vocalista do grupo.


O poema "Esperança" do Mário Quintana é esse: http://www.releituras.com/mquintana_esperanca.asp


As cento e onze "provas", se referem aos poemas que um escrevia semanalmente e deixava na carteira do outro ao longo do ensino médio. Só coloquei aqui por desencargo ou caso um leitor tenha se esquecido.


Só por curiosidade, o filme mencionado da Julia Roberts seria o "Dormindo com o Inimigo".


UFA! Já deu de notas.Obrigada pela leitura, deixe sua impressão ♥