Incertezas escrita por Torcai


Capítulo 5
Na calçada




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O concreto da calçada era de um cinza claro demais, então supôs que tivessem lavado ali há pouco tempo com uma daquelas máquinas de água pressurizada. Ao pensar nisso, notou que havia algumas marcas de chicletes grudados no concreto, e uma visível área mais clara ao redor, deixada por quem tentou repetidamente tirar aquilo dali. 

Sorriu, feliz ao saber que tinha deduzido certo. Olhou pra frente e viu algo que fez seu peito apertar, ainda que demorasse um pouco para entender. Assim como a calçada estava mais clara, seu cabelo estava mais brilhante. Parecia refletir a luz do sol, embora não tivesse reparado no sol antes. Olhou pro céu e viu um tempo aberto, um sol que iluminava tudo muito intensamente. Olhou pra frente novamente e todo aquele concreto claro fez com que apertasse os olhos pra entrar menos luz.

—Oi. - Disse, simplesmente, ao lado dele.

—Ei, você por aqui. - Ele respondeu feliz, com aquele tom calmo que tinha, mas havia alguma coisa errada. Percebeu que ele estava meio ansioso, escondendo alguma coisa. O moreno deu uma olhada rápida pra trás, confirmando essa sensação.

—Está tudo bem? - Perguntou, já sentindo que estava atrapalhando. Ele não o queria ali, aparentemente. Era melhor ir embora. Mas não podia apenas virar e ir, deveria fazer isso educadamente, o que exigiria mais algumas trocas de falas.

—Está sim, por quê? - E o encarou intensamente. Não era uma pergunta retórica, ele realmente queria saber. Havia algo meio acusador em seu olhar. Por algum motivo, ele o encarava de cima. Olhou para seus pés e viu que ele estava em cima de uma mureta. Será que ele havia subido ali apenas pra ficar mais alto que ele?

—Nada não, só perguntei mesmo. - Sua voz saiu baixa. A acusação no olhar do moreno foi trocada por uma desconfiança. Seu cabelo caía longamente pelo seu ombro, daquele jeito que ele achava irresistível, e brilhava muito. Sentia vontade de tocar nele, mas sabia que não podia. Precisava ir embora. Mas não podia ser mal-educado. - Eu preciso ir na padaria comprar pão. - Um jeito estranho de continuar a falar, mas pelo menos conseguiu falar direito.

—E o que tem? - O outro perguntou. Outra pessoa acharia que a pergunta foi num tom ofensivo, mas ele sabia que ele apenas estava tentando entender. Não havia maldade ali. Ele não queria tratá-lo mal. O garoto menor, que estava maior, só devia ser tão ruim com as palavras como ele mesmo. - Você quer que eu vá com você? - Não conseguiu determinar se a pergunta era irônica ou se ele ainda estava tentando entender. Devia ser a segunda opção, ele não o trataria mal assim.

—Eu estava indo sozinho. - O que era óbvio. O moreno deu uma curta risadinha ao ouvir isso. Não entendeu o motivo. - Mas você pode vir comigo. Se quiser. Se não for te atrapalhar. Eu posso ir sozinho e tal.

—Eu não posso ir. - Ele respondeu, diretamente, e olhou para o outro lado. De alguma forma, seu cabelo ondulou atrás de si, mesmo não havendo vento suficiente para isso. O efeito, ainda assim, era hipnotizador. - Já estou ocupado, talvez outro dia.

—Ah, ok. - Agora era a hora de ir embora, certo? Mas o outro garoto ainda olhava para o outro lado. Ele ouviria a despedida? E se ele não ouvisse e achasse que ele só foi embora sem falar nada? - Ei - Disse alto para chamar a atenção. Deu certo, mas o resultado não foi bom. Ele agora, de alguma forma misteriosa, o olhava ainda mais de cima, e seu olhar era de... algo ruim, não conseguia determinar o que exatamente. - Eu vou indo, então. - Sua voz saiu ainda mais baixa, mas mesmo assim o outro respondeu.

—Tá bom. - E voltou a olhar para o outro lado. O que quer que estivesse fazendo, certamente era mais importante.

Atravessou a rua então e seguiu andando. Estava triste. Olhando em retrospecto percebeu que o outro havia sido muito rude. Não precisava de tudo aquilo. Ficou chateado. Percebeu que o olhar que ele estava ao ouvir a despedida era de desprezo.

Sentia-se realmente triste. Achava que ele não seria assim, que poderia contar com ele. Olhou pra baixo. Naquele lado, a calçada estava escura, mais escura que o normal. Quanto mais olhava, mais escura ficava. Percebeu, na verdade, que aquilo era asfalto. Por que alguém asfaltaria a calçada? Olhava para baixo com tanta intensidade que trombou com alguém, alguém surpreendentemente duro.

—Desculpa, eu não te vi. - Disse, automaticamente, e olhou para a outra pessoa. Um nó fechou sua garganta quando viu quem era. Não sabia o que incomodava mais nele, o cabelo castanho longo que descia meio ondulado, meio liso, meio cacheado (não sabia bem como descrever, mas era irritantemente bonito), aquele nariz esquisito que lhe emprestava uma beleza exótica, ou o jeito com que olhava perdido para um ponto em algum lugar a sua frente, não parecendo estar olhando nada em particular, como se nada fosse importante o suficiente pra prender sua atenção.

—Nada. - Ele respondeu, como se nem tivesse percebido o que aconteceu, e voltou a andar, na direção oposta.

Uma onda de alguma coisa cruzou o corpo dele. Sentiu que estava tremendo um pouco. Queria que aquele garoto não existisse. Ele representava tudo o que havia de errado com o mundo. Ele era incrível. Nem ao menos se importou quando alguém que não olhava o caminho trombou com ele. Como alguém pode ser tão irritante?

E, com algum atraso, percebeu para onde ele estava indo. Viu ele chegando e o cumprimentando com um beijo. Colocou sua mão no rosto do outro garoto e falou com ele bem de perto. O outro respondeu, colocando suas mãos na cintura. Eram do mesmo tamanho, nenhuma mureta era necessária ali. Com os rostos próximos, trocaram mais algumas palavras. A pele pálida de um quase encostando na pele meio morena do outro, formando um contraste natural que parecia saída de algum quadro.

Viraram-se e foram embora. O cabelo escuro e liso era bem mais longo que o castanho, mas ambos brilhavam naquele sol incessante. 

Olhou pro sol, e viu nuvens pesadas fechando o tempo. Ia chover. E não ia ser pouco. E seria logo.

Olhou para os dois novamente e, ainda tremendo, sentiu uma pontada ao ver que o moreno agora olhava para ele. Confuso, continuou parado. Sabia que não conseguiria se mexer. O moreno então sorriu maliciosamente e deu um beijo no pescoço do outro garoto, que estava de frente para ele. 

Não conseguia desviar o olhar. Não conseguia se mexer. O contato visual só foi quebrado quando o outro fechou prazerosamente os olhos ao receber carícias em seu próprio pescoço.

Algo estava errado. Muito errado. Ouvia um abrulho alto. Queria seguir o barulho, mas ainda estava com as pernas paralisadas, tremendo. O barulho não descansou. Não sabia o que fazer. Tudo era horrível, e seu peito doía com tudo aquilo.

Ao abrir os olhos, desligou o despertador do celular. Sentiu um espasmo na perna. Estivera tremendo enquanto tinha o sonho, será?

O sonho. Um peso tomou conta de seu peito e o fez dobrar as pernas. Aquilo fora... apenas um sonho. Tudo estava bem, não estava?

Encarou o celular. Era sábado. Não precisava acordar, mas havia esquecido de desligar o despertador. Duvidava que fosse voltar a dormir agora. Pensou mais uma vez no sonho, e sentiu outro espasmo, dessa vez no ombro. Não, mesmo que conseguisse, não queria voltar a dormir.

A luz do celular apagou, então voltou a acendê-la. Desbloqueou, e fez uma ligação.

Não sabia mais o que fazer. Precisava saber que tudo estava bem. Precisava ouvir de outras pessoas que tudo estava bem. 

Mas era manhã de sábado. Provavelmente ele estava dormindo. Como reagiria se fosse acordado?

Combinou consigo mesmo que só deixaria o celular chamar três vezes e, se não atendesse, desligaria.

Na quarta vez que chamou decidiu que, agora que havia ligado, o estrago já estava feito, era melhor apenas esperar ele atender.

No quinto toque, desligou.

Encarou o celular. O que estava fazendo? Foi apenas um sonho. Não fazia sentido. Sentia-se mal. Tudo estava errado. Mas não tinha como alguém o ajudar. Era um sonho que só ele teve, e só ele poderia entender quão ruim foi.

Foi só um sonho, nem foi tão ruim assim.

Lembrou do olhar malicioso do moreno... Ok, foi ruim, mas era apenas um sonho. Estava tudo bem.

E então seu celular tocou. No susto, atendeu na hora.

—Oi. - Disse, meio rápido demais.

—Oi. - A voz respondeu, meio sonolenta, meio confusa. - Tá tudo bem?

—Não, tá sim, tudo bem. - Respondeu, tentando mostrar com a voz que dizia a verdade. - Eu só... - precisava dar uma desculpa. Por que alguém ligaria pra outra pessoa no sábado de manhã? - Me confundi com o dia e te liguei sem querer.

—Ah. - O outro certamente pensava o mesmo que ele mesmo: eles nunca haviam ligado um pro outro. Por que ele ligaria, mesmo em outro dia? Ele era péssimo com desculpas. - Está tudo bem mesmo?

Sua voz com sono era bonitinha. Queria poder contar o que aconteceu. Podia contar, não podia? Mas e se o outro não entendesse? Era só um sonho, afinal, e... O que ele realmente precisava?

—Tá, eu só queria saber se você quer ir no shopping. - Odiava quando falava sem pensar. Por que perguntar isso? Em um sábado de manhã? Isso era hora apenas de dormir, e o silêncio na linha confirmava isso. Estava sendo esquisito. Estava sendo estranho. Estava estragando tudo novamente. Ir ao shopping não resolveria. Quer dizer, ele queria um abraço. Céus, ele queria um abraço agora mais do que tudo. Mas você não pode chegar em alguém e pedir um abraço do nada, pode? Isso não daria certo. Só atrapalharia.  - Ou não, se você quiser a gente pode... fazer nada... ou sei lá. - Por que ele tentava consertar as coisas? Nunca dava certo! Sempre piorava quando fazia isso. Ele não era bom com isso. Deveria ficar trancado num quarto sem poder falar com ninguém, assim não passaria vergonha nem obrigaria os outros a passar por isso.

—Pode ser. Agora?

—Acho que lá pelas 11h. - Por quê, céus, por quê? Agora ele parecia desesperado. Como se tivesse planejado tudo e estivesse ansioso. Bom, ele estava desesperado e ansioso, mas não desse jeito. Por que as 11h? Por que não depois? Assim poderiam dormir a vontade. É o que pessoas normais fazem, não é? Dormem sem serem interrompidas por sonhos esquisitos.

—Tudo bem então. Tá tudo bem?

—Tá. - Era a terceira vez que ele perguntava, devia estar soando muito esquisito. Nem ao menos conseguia disfarçar, e só conseguia fazer o outro se preocupar por bobagem. "Tá tudo bem, só tive um sonho ruim com você" é o tipo de resposta que não pode ser dada. Não faz sentido. Não daria certo, e o outro só acharia tudo ainda mais esquisito.

Por que as coisas tinham que ser tão complicada?

Percebeu que estava em silêncio há muito tempo. Nem falar ao telefone direito era simples.

—Então até mais. - Disse, antes que o outro achasse tudo muito esquisito.

—Tá, até. - Respondeu a voz sonolenta, parecendo mais confusa do que no começo da ligação. 

—Até. - Respondeu. Não queria desligar. Que droga, era só apertar o botão! Que diferença faria? Queria conversar mais. Queria passar mais tempo com ele. Isso só seria ainda mais esquisito. Ele certamente só queria dormir mais um pouco.

—Ei. - Veio a voz do outro lado. Seu coração deu uma pequena pulada.

—Oi, to aqui. - Disse, sendo redundante. 

—Vai com uma roupa legal. - Sua voz soou menos confusa. Meio enigmática? 

—Tá bom.

Que raio de pedido foi esse? Será que o outro achava normalmente suas roupas esquisitas? Será que... Será que...?

—Então até mais. - Disse a voz, parecendo menos sonolenta.

—Até.

Não sabia muito bem o que sentia. Não sabia se estava melhor. Bom, estava melhor, mas agora tinha uma sensação de que... Sentia-se mais perdido do que no começo da ligação.

Bom, de qualquer forma, agora o sonho parecia algo ridículo. Já começava a esquecer algumas partes do sonho. Por que o cabelo dele brilhava tanto? Por que o garoto esquisito era tão duro? Isso não fazia sentido. Nada daquilo fazia sentido.

Sentiu outra pontada ao lembrar daquele olhar. Foi apenas um sonho.


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