O Restante escrita por EJWar


Capítulo 1
I


Notas iniciais do capítulo

Capítulo único.



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Fugira-lhe, pois, a lamentação por aquele adorno no chão; aliás, coubera-lhe esta algum dia? Absorto em pensamentos, via o sol perecendo por entre tortuosas colinas. Sua morte era lenta, suntuosa e vermelha. A lua já ascendia o reino astronômico quando olhara para trás, sua palidez significava o fim do caloroso veludo que engrandecia o céu.

Percebeu que se esquecera de limpar o rosto ensanguentado. Era um rito orquestrado, toda vez que passavam os viajantes impertinentes aos pés das incessantes escadarias. Ele escutava seus passos. Eram tão ingênuos, tão vitimados! Como se estivessem alcançando o paraíso, o anseio pela chegada não os permitia compreender a falha que causavam a si. Ele aspirava as fragrâncias sanguinolentas e quentes, cada qual do seu jeito, deleitando-se em seu sabor, aspecto e na imagem dos corpos caídos.

Arrumou de leve uma mecha branca caída sobre o olho, sacudiram-se-lhe os tecidos das vestes com o vento e ingeriu um último gole: “Só isso?” – cerrou ligeiramente seus olhos e desfaleceu o corpo contra o chão de pedra. Conseguia, ainda, escutar ecos dos gritos misericordiosos daquela vítima que insistia em relembrar. Seus pés encostaram irrelevantes no braço daquela menina, um gargalho fluiu dentro de si e ele se fez cauteloso ao imaginar sua história. Um último feixe luminoso do poente banhou o rio que passava no horizonte tornando-lhe sangrento. Estariam os peixes prestes a boiar, sem vida, nas águas poluídas pela morte? Ele riu, sozinho, com a ideia.

À sua alma, dirigiam-se questões sem cabimento, que outros jamais entenderiam. Ao seu espírito, um caminho sombrio. Um dia pagaria pelos seus pecados, mas tudo aquilo era tão prazeroso! Banhava-se em divertimento quando os inocentes se punham ao seu controle, eles gritavam, se horrorizavam, faziam-no deleitar-se pela agonia. Desde garoto aturdia-lhe sua própria mente aos nefastos atos que cometera. O fim de tanta gente estava entre seus dedos, assegurando que não retornassem ao exórdio de suas jornadas nunca mais.

Era parcimonioso, sim. Os cadáveres secos espalhavam-se ao longo da paisagem. Enfeitavam de forma saudosa e nostálgica, fazendo-lhe recordar do gosto de cada um deles, ah! Que orgulho sentiria o seu mestre. Lembrava-se do encanto que sofrera quando presenciara o primeiro assassinato, fora-lhe tão vivo e constante. Tais habilidades transcendiam seu amor próprio: entregou-se, ali mesmo, à vida e à morte, não houve um momento que despretensiosamente desejara retornar à velha rotina.

Voltou a olhar para a figura lúgubre, de olhos arregalados, no chão. Fora brilhante em outras épocas, quase que lhe atordoava. Não se acostumara com tamanha afeição que véus luminosos lhe remanesciam. O bastão agora descansava ao seu lado, alguns degraus abaixo, fosco, praticamente uma velharia qualquer. Não funcionaria, não com ele, não com os etéreos e empobrecidos corações que já conhecera. Eram meros Poemas Satânicos, iludidos, módicos e despedaçados, cuja batida descompassada e frígida o enfurecia.

De relance, viu o templo atrás de si, o velho parecia espia-lo por entre as sombras das colunas. Sua companhia era, em tempos, um tanto desagradável. Levantou-se sucinta e requintadamente, como sempre fizera. A luxúria fazia a cortesia de permanecer ao seu lado, tal como a onipresença do desamor que, para si, fazia-no mais contente. Deu voltas arrastadas pelos corredores inutilizados de sua morada, observando um jarro enriquecido em pedras virado no chão, com seu líquido esparramado. Foi gratificante ter permanecido ali, enraizado no desespero infalível que transmitia, mergulhado nas mentes insanas dos passageiros e imerso na mais imprópria vida que poderia ter.

Vênus surgiu nos céus, o ponto sempre mais aparente no crepúsculo, seria aquilo uma desmoralização de seus ideais? O ciano da estrela queimava-lhe o ego, o sol desaparecera. Agora só restavam: a noite, Vladimir e o corpo, todos mortos, de alguma forma. Colocou sua mão direita perto de seu rosto, o odor metálico continuava ali, insistindo em lembrar-lhe quem era. Se aproximou da demaciana, fria e azulada, manchada do sangue que não conseguira capturar. Com sua expressão aterrorizada, parecia que mesmo após seu fim não obteve seu total silêncio. Ela ainda parecia querer suplicar pela piedade, ele zombou disso, “Tola”, pudera ele também ter oportunidade de clamar por algo.

Ele colocou seus braços ao lado do corpo, como fazia com todas as vítimas. Sacudiu as mãos sobre o rosto para afastar as moscas famintas. O cheiro putrefato já era deveras estonteante. Puxou seu pescoço para perto de si e beijou o lábio sujo da moça. Era uma bela despedida, uma ópera sob um luar infeliz, com moscas ao redor e um fedor exorbitante incomodando-lhe. Aqueles olhos ainda o fitavam, deixaria assim, para que pudesse enxergar os céus e os intemperismos que ousassem vir. Pegou o bastão riscado e colocou embaixo de uma das mãos acinzentadas que descansavam, enrijecidas.

Passo a passo, iniciou a descida do templo, era sua Dança Macabra que prosseguia, indubitável e imprevisível. Seus medos ficaram para trás há muitos anos, suas desgraças foram enterradas junto de sua juventude. Na negritude, ouvia, ao longe, o andar modesto de gentes loucas que viajavam pela escuridão. Turvo e discreto, seu corpo banhara-se em sangue novamente, estavam quatro em seu volteio, empalidecidos, gritantes e acabados. Aprazendo-se nas vertentes sanguíneas, suspirou, sereno, e continuou sua marcha que culminaria na espessa mata a sua frente. Finalmente dariam valor ao seu caos. Deu uma última olhada para trás, parecia haver um ponto mais claro no topo de onde viera, seria a luminescência da noite? Sem mais hesitar, seguiu seu caminho, pensativo, com cadáveres espalhados em frente.

Agora eram somente: a noite, Vladimir, os corpos e aquele ponto luminoso, todos mortos... De alguma forma.


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Notas finais do capítulo

Bem, espero que tenham gostado do enredo!!
Usei umas palavras e termos meio "fora do comum", então vou colocar aqui alguns de seus significados:
Exórdio - início
Parcimonioso - simples
Transcendiam - ultrapassavam os limites do sujeito
Despretensiosamente - sem pretensão/intuito de fazer algo.
Lúgubre - triste
Poema Satânico - composição para piano de Scrabin
Dança Macabra - músicas inspiradas no rito medieval em "homenagem" ao submundo.
Módico - de pouco valor



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