Quem Nós Somos? escrita por AndreZa P S


Capítulo 23
E - Quero que você venha junto comigo.




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"(...) É preciso amar direito
Um amor de qualquer jeito
Ser amor a qualquer hora
Ser amor de corpo inteiro
Amor de dentro pra fora
Amor que eu desconheço

Quero um amor maior
Um amor maior que eu"

Amor maior - Jota Quest

 

 

Por Eadlyn Schreave

 

Enquanto esperava Kile se aproximar e abrir a porta de sua casa, fiquei parada com os braços cruzados, olhando para aquele carro prata e reluzente que, apesar de não o conhecer de fato, o modelo me era familiar. Observo o Woodowork subir os 4 graus para a varanda vagarosamente, seu rosto está um pouco desconfiado e pensativo, mas assim que ele volta seus olhos escuros pra mim, sua expressão torna-se divertida, e a lembrança da noite anterior me fez corar um pouco.

A gente quase...?

Balanço a cabeça de um lado para o outro, como se assim a memória fosse se desfragmentar em um milhão de pedaços aleatórios e nunca mais se materializaria na minha mente. O que foi em vão, porque assim que Kile sorriu para mim, senti o gosto do seu beijo tão vividamente que tive que piscar os olhos algumas vezes antes de poder revirá-lo e forçar uma expressão entediada. Seu sorriso se acentuou antes dele voltar o rosto para a porta e erguer uma mão fechada em punho pra dar soquinhos na madeira branca. Mas antes que Kile pudesse fazê-lo de fato, a porta abriu-se e revelou uma Marlee com os olhos brilhantes e um sorriso enorme no rosto. Seus cabelos estão presos em um coque no alto da cabeça, mas alguns fiozinhos castanhos alourados haviam se desprendido, lhe conferindo um ar bem jovial até. Ela olha de mim para o Woodwork com um ar maternal, antes de puxar o sobrinho em um abraço que me pareceu um tanto sufocante. Marlee aperta as bochechas de Kile, enquanto que o garoto permanece com uma expressão não identificável.

—Senti saudades - murmura ela, piscando os olhos algumas vezes, tentando espanar as lágrimas que por um instante os embargaram.

—Tia, que exagero, foram poucos dias - Kile retruca, abrindo um sorriso afetuoso para Marlee, mesmo que sua voz sugerisse um certo constrangimento.

—Não interessa, senti falta igual - rebate, franzindo o cenho por um momento, antes de voltar sua atenção para mim, seu sorriso abrindo-se ainda mais antes dela me abraçar forte, sua mão deslizando pelas minhas costas antes dela me soltar e dizer: - Está cada dia mais linda, Eadlyn.

Sorrio pra ela, concordando mentalmente com a sua afirmação.

—Obrigada. E a senhora está cada dia mais jovem, como consegue? - Questiono, puxando um pouco o saco dela sim, mas eu realmente gostaria de saber.

Marlee soltou uma risada adocicada.

—Trabalhar com o que se gosta e ter uma família tão maravilhosa quanto a minha, acredito que ajude - responde. - Mas entrem, preparei um super café pra nós - e então ela escancara a porta e gesticula para dentro da casa, antes de virar-se e seguir com passos largos, mas elegantes.

Quando estou entrando, Kile passa por mim, e aí olha pro meu rosto por sobre o ombro, um sorrisinho danado despontando em sua cara de pau.

—Viu? O trabalho dignifica o homem - provoca, lançando-me uma piscadinha marota.

Estreito os olhos.

—Como se você trabalhasse.

Agora ele está de costas, seus ombros largos a poucos metros de distância. Dessa vez, Kile não se dá ao trabalho de virar-se para me responder.

—Quem disse que não trabalho, cherie?

Enrugo a testa.

—Eu.

—Está enganada.

—Estou, é? Me conte mais sobre você trabalhar... você é dono de casa enquanto seus tios trabalham de verdade? - Digo e dou uma risadinha zombeteira.

Kile finge uma risada, que soou bem sem graça por sinal. Quando estou prestes a cutucá-lo de novo, ele dobra para a espaçosa cozinha dos Woodwork, e assim que me deparo com duas pessoas rindo enquanto tio Carter diz alguma bobagem, eu paraliso. Kile também paralisou por um momento, mas logo ele continuou se aproximando deles, mas eu não conseguia me mexer direito. Isso poderia ser considerado exagero, porém não é. Infelizmente. Olho para baixo, reparando na minha calça jeans um pouco justa demais e minha blusa de barriga de fora, mostrando o meu pircing. O que minha mãe acharia do look? Vulgar? Ela sempre foi tão preocupada com o que eu vestia, que senti vontade de sair correndo e me tapar com um cobertor, como se estivesse nua. Só reparo que Kile parou novamente, quando escuto sua voz dizendo:

—Está tudo bem?

Quando ergo o olhar para fitá-lo, vejo que ele está olhando para as minhas roupas também. Sua expressão está indecifrável e uma de suas sobrancelhas arquearam-se. Faço um gesto qualquer com a mão, dando a entender que não era nada.

—Estou bem.

—Sério? - Força ele, seus olhos agora se semicerrando.

—Claro, óbvio... - me abraço, com se assim eu estivesse segura de qualquer um que quisesse me enxergar demais. - Por que não estaria? - Finjo um sorriso amarelo.

Kile encara-me com o cenho franzido.

—Bem, você está parada aí, sei lá.

Faço uma careta.

—E você está parado aí também, então... - arqueio as sobrancelhas de forma desafiadora.

—Mas eu estou esperando por você.

—Por quê?

Ele parece refletir por um momento, seu rosto tornando-se vago de repente, enquanto dava de ombros e balançava seus cachos minimamente de um lado para o outro.

—Não sei - responde por fim, e quando Kile está prestes a virar as costas pra mim e seguir adiante, ele me olha de relance. - E então? Você vem?

Suspiro áspero.

—Vou - resmungo. E mesmo se eu decidisse dar uma fugidinha pro banheiro pra pelo o menos tirar um pouco da maquiagem, tia Marlee apareceu meio preocupada, seus lábios um pouco franzidos, questionando o motivo de ainda estarmos ali, escondidos por uma planta enorme dentro de um vaso também enorme.

Kile eu nos entreolhamos, e aí eu baixei a cabeça e finalmentre entramos no campo de visão deles. Dos meus pais. Mamãe está com seus cabelos tão ruivos quanto eu me lembrava, a maquiagem leve - como era de seu costume - e um vestido liso e reto, não sabia dizer se era casual chique ou formal. Assim que seus olhos voltaram-se para mim, seu sorriso consumiu seu rosto inteiro. Papai está ao seu lado, vestido com uma camisa social branca e os cabelos louros e que ultimamente deixavam duas suaves entradas pela a testa, adentrando levemente o couro cabeludo. Ele também sorri quando me vê.

—Filha! Estava com saudades, meu amor - minha mãe diz, levantando-se graciosamente da cadeira, e se aproximando com os braços abertos. Rapidamente lembrei-me da reação semelhante de Marlee quando chegamos. Tentei me concentrar em dar à minha expressão um pouco de vida, e a abracei forte, sentindo o seu perfume floral que desde que me conheço por gente era o mesmo.

Meu pai veio em seguida, me abraçando um pouco menos escandalosamente que mamãe, mas ainda sim tão amoroso quanto. Ele me beijou na testa antes de sorrir pra mim. Percebi que ele olhou vagamente para minhas roupas, sua testa franzindo-se superficialmente e rapidamente, mas não comentou nada; com um certo alívio, vi que seu sorriso de contentamento por me ver ainda estava ali.

—Nós dois sentimos sua falta, querida - murmura, lançando um olhar divertido para minha mãe, que lhe deu um empurrãozinho de leve com o ombro. Os dois deram uma risada.

—Senti saudade de vocês também - falo, minha voz saindo mais baixa do que eu esperava. Meus pais cumprimentaram Kile com tanto carinho quanto foi comigo, e o Woodwork pareceu realmente contente por vê-los novamente. Assim que nos sentamos à mesa, fui ficando cada vez menos à vontade. A conversa fluia sem maiores problemas, Marlee e Carter estavam empolgados com a visita de America e Maxon, e eles tagarelavam sem parar, rindo, comentando coisas sobre o passado, entre outras coisas, mas eu não prestava atenção realmente. Apenas bebericava a taça com suco natural de laranja, e fitava a parede branca, mas sem vê-la de verdade.

Definitivamente estava me sentindo como uma criança que havia aprontado e que sentia, bem no fundo, que logo seus pais descobririam e ela seria deixada de castigo. O que é rídiculo, mas não consigo deixar de me sentir assim. O que meu pai achou da minha roupa? Eu sempre me importei em como as pessoas me enxergavam, mas não que eu deixasse que isso interferisse na forma como eu queria me vestir ou portar, mas no caso de meu pai... eu levava em consideração, e qualquer crítica vinda de sua parte me deixaria arrasada. E minha mãe? Tão elegante, é sempre elogiada por revistas, cordial com todos, doce com todos, amada por Londres, sem duvidas... o que ela pensaria sobre minhas roupas e minha maquiagem pesada? Sem perceber, fui me encolhendo na cadeira estofada e bege dos Woodwork, escorregando um pouco para baixo e encolhendo os ombros. Deixo meus cabelos que hoje estão lisos, para a frente, tentando disfarçar meu decote acentuado demais. Pro padrão deles, no caso.

Sinto o olhar de Kile me fuzilar, mas me mantenho atenta à fibra da madeira da mesa.

Algumas horas mais tarde, estou sentada no banco traseiro do carro prata que vira hoje mais cedo, reluzindo com a luz do ínicio da tarde. Agora o sol começava a se for, lançando seus feixes alaranjados pela a estrada e as casas do bairro dos meus dindos. Permaneço quieta, enquanto meus pais comentam o quanto estavam sentindo falta de seus amigos, e sobre como a Espanha era bonita. Estava torcendo para que a conversa entre eles continuasse interessante o suficiente, para eu me manter calada, mas logo em seguida, minha mãe comenta:

—Você fica muito bem com batom forte e escuro - e fez uma expressão que não consegui indentificar direito. Era dúvida? Confusão? Estranhamento?

Eu corei um pouco. Limpo a garganta.

—Obrigada, mãe - respondi, de cabeça baixa. Olho pelo o espelho do retrovisor, e vejo que papai me fitava com a testa franzida, e não comentou nada. Mordo meu lábio inferior e cruzo os braços, de repente irritada. O que eles queriam aqui, afinal? Será que não estão cansados de saber que eu não gosto - que odeio - visitas surpresa? Por que não ligaram? Por que não me pediram para ir visitá-los como da última vez?

Só esperava que não tenham trazido consigo a sombra de repórteres sem noção.

Quando chegamos ao campus, meu pai permanecia calado, parecendo pensativo, mas mesmo assim carregou minha mochila e minha mala para o terceiro andar do bloco 2B do dormitório feminino. Assim que destranco a porta, acendo a luz do quarto. Minha mãe deu um nada discreta analisada no ambiente, suas feições franzindo-se um pouco de vez em quando.

—Qual é a sua cama? - Papai me pergunta, e eu aponto com o queixo para a esquerda, ao lado da janela.

—Aquela.

Ele largou as coisas ali e voltou para ficar ao lado de minha mãe, que pergunta:

—Qual o nome da sua colega mesmo?

Ponho os meus polegares dentro do bolso traseiro do meu jeans.

—Manoela - e dou de ombros, desviando o olhar automaticamente para a cama arrumada da garota. Ela balança vagamente a cabeça, concordando com o cenho franzido. De repente, quando volta a me olhar, parece que havia finalmente reparado nas roupas que eu vestia.

—Belo nome - comenta, me analisando. - Está mal agasalhada, Eadlyn - observa, lançando um olhar franzido pra mim. Solto um pigarro.

—E essa Manoela... tem esse estilo também? - Indaga meu pai, a voz soando uma mescla de desconfiança e curiosidade.

Me contenho para não revirar os olhos. Olho para mamãe, na esperança de que ela me ajudasse a mudar de assunto, mas a mulher parecia também querer saber. Suspiro alto, de repente achando que estava me vestindo como uma vagabunda. Por que meus pais tinham que me fazer sentir assim? Já não basta ter passado minha infância e adolescência inteira sobre as ánalises cuidadosas deles, dos meus avós e outros profissionais, me dizendo como eu devia me vestir, como eu deveria me comportar. "Sorria, Eadlyn", "não seja mal educada, querida", "se vista com discrição", "prenda esse cabelo, dá um ar mais respeitável à você", entre milhares de outros conselhos que eu não quero me lembrar, porque me tiraram a aportunidade de eu poder agir como realmente queria, de me expressar do jeito que fosse convir mais pra mim.

—Não, pai - resmungo, sem fitá-lo. Penso em indagar quando eles irão embora, mas achei que soaria mal e eles poderiam se magoar, então decido perguntar isso: - Ahn... vocês estão aqui por quê? Digo, vocês sempre me ligam antes... se eu soubesse poderia ter voltado antes da fazenda de Micaela e Richard.

—Decidimos vir de última hora - meu pai responde, dando mais uma olhada no quarto. - Querida, porque você não mora no apartamento que compramos pra você aqui? - Ele quer saber.

—Gosto do campus - respondo imediatamente, ainda meio mal humorada.

—Até que é bonitinho - mamãe fala, abrindo um sorriso pequeno.

—É sim, mãe - tento abrir um sorriso também. - Mas... vocês vão dormir onde? Aqui? - Sinto um arrepio varrer minha espinha só com essa possibilidade. Minha privacidade iria cair por água abaixo. - Quer dizer, aqui não tem muito espaço.

—Não, nós vamos embora hoje - ela fala, parecendo desapontada.

Não quero ser má, mas... graças a Deus. Não que eu não amasse meus pais, porém preferia visitá-los do que o contrário.

—Na verdade, só viemos aqui pra pedir que você vá para Londres conosco, Eadlyn - faço uma careta, mas meu pai não pareceu perceber e continuou: - Vou lançar a minha candidatura para presidente da Inglaterra, e acredito que seja de extrema importância que a família esteja reunida neste momento, diria até que é essencial.

—Iria ajudar na imagem da campanha do seu pai, meu amor - minha mãe complementa, me olhando amorosamente. Meu cenho está super franzido. Mais uma vez entrevistas? Palanques? Festas com gente que não gosta de você e só finge porque seu pai é o governador - não que aqui as pessoas também não fingissem, mas pelo o menos eu podia responder à isso da forma que bem quisesse - ? Mais pessoas me dizendo como e quando eu devo fazer ou usar algo?

Estou prestes a negar, inventar alguma coisa, uma doença, sei lá, quando meu pai fala, me encarando com seus olhos castanhos inflamados:

—Antes de qualquer coisa, sua presença é muito importante pra mim, querida.

Abro a boca mas minha voz não sai. Engulo em seco, desviando o olhar para as minhas botas de cowboy que dona Elizabeth me dera.

—Tudo bem... - digo por fim, após alguns segundos de pesado silêncio. - Mas Kile tem que ir junto.

Não sei muito bem o motivo de ter pedido pra Kile ir junto - sério, eu não sei mesmo—, mas meus pais pareceram gostar da ideia. Minutos depois, meu pai foi para o corredor, estava conversando com o meu suposto namorado. Quando voltou, ele sorria, seus pés de galinha tão bonitinhos marcando seu rosto. Era tão estranho ver seus olhos ainda juvenis, com evidências de que a idade realmente estava chegando. Lembro-me rapidamente, enquanto o fitava entrar no quarto e fechar a porta atrás de si, que às vezes eu chegava da escola em casa e o via resolvendo algo, e ele parecia tão estressado, cansado, que pensava que ele iria desistir, ou não iria mais se candidatar para nada. Mas então ele me surpreendia, dizendo que se ele pode fazer algo de bom pelo o povo, ele continuaria fazendo, e que quando eu entrasse para a política, sentiria o mesmo que ele. Óbvio que agora eu tenho certeza que não quero essa vida pra mim - Deus me livre criar rugas de preocupação -, mas tentaria empurrar a situação com a barriga até quando desse.

—Ele vai ir, está preparando as malas.

—Prepare as suas, Eadlyn... apesar que temos ainda suas roupas antigas no seu guardaroupa, e você continua com o mesmo corpo de sempre, talvez possa usar as que estão lá, ao invés dessas - murmura mamãe, em um tom sugestivo demais pro meu gosto.

—Tá - respondo, entediada e irritada.

Logo em seguida estávamos seguindo com o carro alugado de papai para a casa da tia Marlee e tio Carter. Ainda faltava algum tempo para o nosso vôo, e minha mãe já havia comprado a passagem de Kile. Falando em Kile, seu rosto estava indecifrável, e depois dos meus pais passarem um bom tempo batendo papo e rindo com os seus tios, e nós dois estranhamente calados, fomos finalmente para o aeroporto. Mamãe fez perguntas esporádicas, evidentemente querendo puxar assunto, mas ninguém parecia disposto realmente a conversar, nem mesmo meu pai que está assustadoramente calado. Senti um certo aperto no peito, será que está assim por algo relacionado a mim? Com este pensamento, fiquei ainda mais amuada no meu canto, encolhendo os ombros e evitando olhar muito para qualquer um ali. Dessa vez o embarque não atrasou, e não tivemos atrasos de nenhuma ordem, sendo assim, desembarcamos em Londres por volta das 22:03 da noite, com Eduardo nos esperando com um sorriso no rosto. 

A ida para a nossa casa fora silenciosa, meus pais pareciam cansados, mas pudera... já não eram mais tão jovens assim, mesmo que tivessem boa aparência e também não estivessem na terceira idade. Kile e eu fomos para o meu quarto, que está exatamente igual, como sempre foi. Não sei explicar muito bem, mas toda vez que entrava naquele lugar, eu tinha a expectativa de que talvez algo estivesse diferente. Ou quem sabe, eu que gostaria de ter alguma mudança e projetava isso no quarto... não sei. 

—Você vai dormir no sofá...? - Pergunto pro Kile depois de nós dois estarmos de pijama. Eu com uma camisola de seda preta, de alças finas e com rendas delicadas desenhando padrões aleatórios por cima do tecido, quase como uma segunda camada. O Woodwork, como já era de se esperar, está com uma regata azul escuro e calças de moletom cinzas chumbo. Observo enquanto ele guarda seus óculos dentro da sua habitual caixinha e esfrega um dos olhos com a mão. Dá de ombros e ergue seus braços longos, espreguiçando-se. 

—Não sei... você quer que eu durma no sofá? - Questiona, sua expressão sendo uma incognita. 

Finjo desinteresse enquanto puxo minhas cobertas e me sento na cama. Também dou de ombros.

—Ué, se você quiser - digo, um tanto evasiva.

Kile abriu um sorriso de lado.

—Mas você quer que eu durma onde?

Reviro os meus olhos antes de me deitar.

—Você sabe o que faz. Se quiser dormir na minha cama, ok, afinal, dormimos juntos enquanto estávamos lá na fazenda dos Campestro, e além do mais... tipo, essa cama é bem maior e não precisaremos ficar tão próximos quanto lá - eu falo, minhas palavras saindo constrangedoramente rápidas demais. Corei um pouco as bochechas. - Mas se quiser dormir no sofá, tudo bem.

Kile me olha com o mesmo sorriso de antes. Com o dedo indicador e polegar, começou a puxar os fios da barba castanha, um tanto pensativo, enquanto seu sorriso se alargava ainda mais. Eu poderia chutar no que ele estava pensando... e seria a noite passada. Eu estava louca? Obviamente, não teria deixado as coisas chegarem àquele ponto se estivesse sã. O Woodwork permanece quieto, enquanto simplesmente deita-se ao meu lado na cama, mantendo uma distância segura entre os nossos corpos. Olho para o lado, e ele já estava me encarando, mas agora sem sorriso. 

—Não estou com sono - ele me diz de repente, abrindo um sorriso miudo.

—Também não estou. 

—Quer conversar? Minha tia sempre me disse que conversar ajuda a vir o sono - dito isso, Kile vira o seu corpo pro meu, deitando em posição fetal. Imito seu movimento, nossos rostos um de frente para o outro, mas com uma ditancia segura. 

—Tá bom - respondo, enquanto afundo a lateral do meu rosto no travesseiro macio.

—Sobre o que quer conversar? - Me pergunta ao puxar o cobertor até a altura do pescoço. 

—Não sei - murmuro com minha testa franzida. - O que você comeu hoje? - Indago, soando idiota até pra mim mesma aquilo. Antes tivesse ficado calada.

Kile soltou uma risada.

—Nós estávamos juntos, cherie. Foi churrasco, lembra? - Retruca, ainda com tom de riso. 

Deixo minha expressão impassível.

—Aé.

—Logo se vê que você não é tão sociavél, não sabe nem puxar assunto.

Reviro os meus olhos.

—Que engraçado, Woodwork. Mas já que você parece ser expert nisso, porque não puxa você? - Resmungo, de mal humor.

Ele faz uma pausa, olhando para cima, e quando seus olhos voltam pro meu, Kile sorri e questiona:

—Qual a sua comida preferida?

Agora foi a minha vez de dar risada.

—Nossa, que original - debocho. - Acho que é batata frita, mas eu não como muito pra não engordar. 

—Uma pena, você seria uma gordinha bem bonitinha - diz, sorrindo com os dentes à mostra. 

—Realmente, mas gostaria que retificasse o "bonitinha", eu seria ainda mais linda, apenas - falo em tom que sugeria obviedade.

Kile cola uma palma da mão na testa, fingido uma expressão de como-é-que-eu-fui-errar-logo-isso?

—Seria uma gordinha bem lindinha. Digo, lindona. 

—Assim está ótimo. E qual é a sua?

—A minha o quê?

—Comida predileta.

—Ah... gosto de feijão, amo muito feijão.

—Hm... e eu tenho uma pergunta pra você agora - falo.

—Pois pergunte, cherie.

—Você falou sério quando disse que trabalhava? E se sim, onde é e o que você faz lá? 

Kile dá uma risadinha marota.

—Foram três perguntas - observa. - Bem, sim, eu falei sério. Trabalho como estagiário em uma escola infantil dando aula de música... eles estão de férias também.

—É todos os dias? - Quero saber, soando surpresa.

—Não, duas ou três vezes por semana.

—Você gosta? Quero dizer, trabalhar com crianças... eca— Pergunto, fazendo uma careta.

—Gosto, elas são boazinhas. 

—Entendi. Tenho outra pergunta - pontuo.

—Ora, parece que estamos evoluindo aqui. Pode mandar - diz, com um sorriso sacana no rosto e as sobrancelhas arqueadas.

—Você disse que tem duas ex's namoradas, né? Me conte como elas eram e quanto tempo ficaram juntos - solto eu, encolhendo um ombro só e desviando o olhar de seu rosto que tornou-se pretensiosamente divertido.

—Fiorella foi minha primeira namorada, e nós namorados 2 anos. Dos meus 14 aos 16. Katherine foi a segunda e última... namoramos dos meus 17 aos meus 21 anos - me conta, e eu percebi que ele me analisava.

Faço cara de paisagem.

—Legal. Mas como elas eram? Tipo, de aparência.

—Por que quer saber? - Rebate, seu sorriso abrindo-se mais.

—Porque sim, ué.

Sou curiosa, não posso mais ser curiosa? Claro que posso, era só o que me faltava.

—Fiorella era loura, bem magrinha, inteligente e me apresentou a Slipknot. Katherine tinha a pele morena, mas pintava os cabelos de vermelho vivo. Eu gostava, sempre gostei das ruivas - e então me lança um olhar brincalhão e eu faço cara de tédio. - Era fácil de lidar, somos muito parecidos, acho que é por isso que durou tanto tempo.

—Mas por que terminaram?

Ele dá de ombros.

—Erámos tão parecidos, que já não tinha emoção nenhuma. Acho que foi por isso que decidimos terminar.

—Ah... elas eram... quer dizer... - fungo - bonitas?

—Depende do ponto de vista - responde, com um olhar malicioso. - Mas digamos que você é a namorada mais bonita que eu já tive.

Sem querer, eu abri um sorriso, mas logo tratei de fechá-lo.

—Óbvio, isso eu já sabia, mesmo que não sejamos namorados de verdade.

—Claramente - responde, de forma tranquila, ainda me olhando insistentemente. - Mas e quanto a você?

—Que que tem?

—Quantos mil namorados? - Pergunta, meio que rindo, meio que sério.

Lhe mostro o dedo do meio.

—Engraçadinho. Um só.

—Um?! - Solta ele, sua voz subindo algumas oitavas, como se tivesse acabado de escutar que na verdade, o sol era uma ilusão de ótica. Enrugo o nariz. - É sério?

—É.

—Mas e quanto aos boatos? 

—Que boatos? - Pergunto de forma seca.

—De que você já saiu com quase metade da liga masculina de basquete da Universidade, entre outros.

—Recalque, eu acredito. Queriam ter o meu belo corpo em mãos, mas como não conseguiram, acabaram mentindo - respondo, dando de ombros.

—E você não se importa? 

—Antes ter a fama de pegadora, do que a fama de que não pega ninguém, você não concorda?

—Não - Kile responde na lata, seu rosto sério. De repente ele balança a cabeça, e suspira. 

—Esqueci que você é bom moço.

—Ei! - Exclama ele, dando a impressão de que finalmente a ficha havia caído. - Então você só namorou com o Erik??! - Agora ele espalma as duas mãos no rosto, deslizando-as com força e repuxando sua pele um pouco para baixo. - Nossa, você não tinha como encontrar alguém melhor pra ser o seu primeiro namorado?!

Kile parecia estranhamente indignado. Fico o olhando sem expressão alguma no rosto, pisco algumas vezes e murmuro:

—Não. O cara era popular, corria atrás de mim, bonito, rico e organiza as melhores festas do campus, era o meu melhor candidato.

Kile bufa alto, frustrado.

—Como se isso fosse o mais importante em uma relação - fala com secura.

Bem, no fundo eu sabia que era extremamente superficial e que com certeza havia coisas que eram centenas de vezes mais importantes que isso, mas mesmo assim eu disse:

—É importante.

Um silêncio pesado recaiu sobre nós e eu pensei que a conversa tinha chego ao fim, e quando estou prestes a me virar e tentar dormir, o Woodwork pergunta:

—E o professor? O do vídeo.

Isso é uma das poucas coisa das quais eu me arrependo de ter feito na vida.

—Ele estava dando em cima de mim, e disse que me passaria na disciplina se eu ficasse com ele... - falo, minha voz saindo baixinha. Kile me observa calado por alguns instantes.

—E você aceitou? Não precisava se sujeitar à isso, Eadlyn - murmura, com o rosto e a voz críticas.

—Quando dei por mim já estava lá... e, também não queria decepcionar meu pai e meu avô reprovando em uma matéria simples, era constrangedor demais. E não precisa me olhar com essa cara, eu sei que fui errada e que a minha atitude foi digna de uma vadia, mas na hora simplesmente não estava pensando direito... - suspiro, sentindo meu rosto corar.

Kile franze as sobrancelhas.

—Estou muito mais indignado com a atitude daquele desgraçado do Gonzáles, minha vontade é de bater na cara daquele infeliz - solta, seu rosto todo franzido, sua mandíbula trincada. - Como pode um professor de uma das federais mais importantes da Espanha agir como um cafetão? Um homem com mais da metade da sua idade, isso é inaceitável.

—Mas porque você se importa? E além do mais, foi graças a ele que você conseguiu me manter neste contrato - falo. Kile me olha com um certo pesar, e agora foi a sua vez de se constranger.

—Me arrependo.

—Tudo bem.

—Não, não está tudo bem. Sou um idiota.

—Concordo - respondo, abrindo um sorriso, tentando amenizar a situação, mas Kile ainda está sério. Ele parecia ponderar sobre algo, e então eu continuo: - E aí... por que  você não tranca a faculdade e tenta algo como cantor? - Pergunto, de repente ansiosa por mudar o rumo da conversa.

Kile fica quieto por um momento, olhando para algo além de mim, antes de seus olhos focarem nos meus e ele responder:

—A arquitetura é um caminho certo, posso fazer coisas pelas as pessoas com isso, e é uma profissão estável. Como músico é mais difícil, complicado, cada dia é um dia diferente, instável demais pra mim.

Penso sobre aquilo.

—Sabe o que eu acho?

—Hm?

—Que você é fechado e careta demais, se isso é o seu sonho, porque não ir atrás dele? Tipo, eu entendo que você até curte esse lance de ser arquiteto, mas sua vocação é outra. Você tem medo, sei lá... pelo menos é o que parece.

Ele ergue uma sobrancelha.

—Minha vocação? - Kile riu um pouco. - Posso pensar sobre isso. Mas e quanto a você? Fica óbvio pra quem quiser ver que a SUA vocação é ser estilista e essas coisas... desenhar roupas e tal, por que insiste em Relações Internacionais se é claro que você não gosta?

—Não é que eu não goste...

—Imagina se não gostasse - retruca.

—É complicado.

—Quer me explicar?

—Não - respondo, e ele abriu um sorriso afetado. Kile então fecha os olhos, dando a entender que iria dormir, mas eu não estava com vontade de parar... pelo menos ainda. - Qual sua cor preferida? - Questiono a primeira coisa que me veio a cabeça.

Kile abre os olhos imediatamente, focando eles nos meus, me fitando com intensidade.

—Azul - diz, um sorriso pequeno surgindo em seu rosto. - E o seu?

— Rosa.

A partir daí, a conversa se resumiu a perguntas sem muita importância, e quando dei por mim, o sono chegou sem avisar, meus olhos pesaram e eu não me lembro exatamente quando foi que eu peguei no sono. 

 

Durante a manhã do outro dia, nós estávamos nos preparando para uma seletiva que teríamos que participar, em uma cidade ao norte da Inglaterra. Minha mãe decidiu que queria escolher comigo o vestido que eu usaria, e aquilo já me deixou frustrada e com um humor sensível. Ele era sem graça, liso, de velho, com o corte reto e de cor rosa bebê. Seu decote era redondo, e tinha mangas até a altura do cotovelo. O sapato era até bonitinho, uma sandália com um salto fino e não muito longo, com tiras simples e rosadas. A maquiagem era simples.

Quando Kile apareceu ao pé da escada, com sua calça jeans clara e uma camisa social escura e sapatênis, ao lado de papai, um pensamento esquisito me passou pela a cabeça "a pessoal ideal". No caso, a pessoa ideal para a apresentar à Inglaterra como namorado da filha do ex governador e candidato à presidência. Assim que ele se aproximou e pegou minha mão, eu me inclinei para ele e murmurei, meio indignada:

—Sua roupa tá mais legal que a minha - e suspiro.

—Também acho - responde com um sorriso sacana. Eu faço uma careta. - Mas tive que bater o pé... seu pai e um senhor que se disse ser alfaiateiro da família queriam me enfiar em uma roupa muito estranha. 

Fico surpresa.

—Meu pai não se importou de você estar tão casual assim?

—Argumentei que pessoas com personalidade tem mais chances de conquistar o público. Ele concordou, e então pude usar calças jeans e sapatênis... queria também uma camiseta de banda, mas aí Maxon achou que era demais.

Eu ri um pouco.

—Está preparado pra enfrentar os jornalistas e um país inteiro? - Questiono, desviando o olhar para a frente, sentindo meu coração batendo forte e rápido demais dentro do peito. Me apoio um pouco mais em Kile, sentindo uma ansiedade começar a me causar vertigem. Respiro fundo e visto minha já conhecida máscara de superioridade, erguendo a cabeça. 

— Pra ser sincero, eu não sei - agora sinto seus olhos no meu rosto, mas não me viro para fitá-lo de volta. - E você?

Estou quase morrendo.

—Estou sempre preparada. 

Neste momento, meu avô aparece com um enorme sorriso no rosto, e diz com a voz toda animada:

—Vamos, família?

E que meu inferno particular comece.

 

 

 

 

 

 

 


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