Os Howard - Fanfic Interativa escrita por Soo Na Rae


Capítulo 4
Chapter III


Notas iniciais do capítulo

Olá, pessoas! Eu demorei pra escrever esse capítulo, mas ele foi um dos meus preferidos para isso. Ah, ontem foi meu aniversário! Dezesseis anos, céus, como estou velha! Boa leitura a todos.



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Chapter 3

“Fiz coisas boas que me trouxeram prejuízo; fiz coisas ruins que me deram lucro” – Graciliano Ramos

 

Quando Emmeline pensava em felicidade, lembrava-se dos anos que passou no mar. Não literalmente no mar, mas sobre um navio. Quando menina, gostava de se imaginar sendo uma pirata, e mais que isso, a líder dos piratas, uma capitã destemida e ambiciosa. Hoje, sorria ao se ver diante do tão sonhado mastro, observando as manobras do capitão, enquanto ele gritava ordens aos seus homens. Quando chegavam a qualquer porto, na África, na Itália, nas Américas... Emmeline se encantava com o céu, o formato das nuvens, o cheiro do vento, se estava calor ou frio. Mas tudo seguia uma mesma linha, como num filme onde o cenário se alterava, menos os figurantes. Os homens a bordo corriam para atracadouro, onde moçoilas os aguardavam, com decotes orgulhosos e saias humildes. Crianças saltavam de barco em barco, roubando mercadorias aleatórias, o que conseguissem enfiar nos bolsos, deixando os donos dos navios cheios de raiva. Em algum lugar, alguém estaria gritando “Café! Café!”, pois era a bebida da moda, e sempre teria cheiro de peixe. O mar, o caís, os navios, as mercadorias. As pessoas. Estavam cheias de suor, sal e areia. E por algum motivo, Emmeline adorava essa sensação de...

— Senhorita.

Virou-se abruptamente, com a boca aberta num inconfundível O de surpresa. O vigia da gávea sorriu para ela, como quem pedia desculpa, e apontou para a cidade que crescia logo a frente deles, conforme se aproximavam mais e mais da terra. Sem perceber, Emmeline prendeu a respiração.

— Chegamos, senhorita. Inglaterra, Plymouth.

Sim, ela sabia que era a Inglaterra. Podia sentir no ar, no jeito das pessoas andarem pelo mercado do porto, como os cachorros latiam e corriam atrás das carroças e como as prostitutas se envergavam diante dos marinheiros recém-chegados. Era a sua Inglaterra, sua casa. Há quantos anos estivera fora? Quantas milhas distante? E nunca sentira saudade.

— Obrigada – murmurou, sem olhar para ele, mas teve a decência de entregar-lhe um penny. Era o mínimo, o rapaz a havia guiado por toda a viagem, conversaram sobre diversos assuntos, e ele nunca lhe perguntou o nome. Afinal nunca mais se veriam, nunca mais teriam de sustentar conversas a fio para não morrer de tédio, ou dividir uma lata de comida da cozinha escondidos. Pensando melhor... entregou-lhe mais 10 penny.

Quando o navio atracou, ela aguardou todo o ritual entre o capitão e os seus subordinados, enquanto eles abaixavam as últimas velas, amarravam o navio ao atracadouro, moviam a tábua de saída, empilhavam caixas, arrumavam a mercadoria, envolviam-se naquele trabalho, como se envolviam nas piadas obscenas do final da noite. No começo ficaram receosos por terem Emmeline no grupo, mas quando ela contou a primeira história sobre sua “primeira vez” (que não existia), eles caíram na gargalhada e a acolheram confortavelmente. Pois, afinal, não se tratava de uma donzela.

Foi assim que ela sobreviveu tanto tempo no mundo. Lá, ela era a pessoa que deveria ser. Para os americanos, se tornou uma judia praticante e respeitável, filha de ourives e banqueiros. Para os africanos, tratava-se de uma italiana de família rica, fugindo do pai que a amaldiçoou quando descobriu que estava grávida. Aos asiáticos fora mais fácil, na Rússia Emmeline encarnou uma cigana fugitiva do catolicismo. Em qualquer caso, sempre fora fácil mudar os personagens. Ninguém a conhecia, ninguém poderia machucá-la.

Embora sempre tivesse isso em mente, o dia em que recebeu a carta do falecimento de seu pai, levou-a a um torpor sem igual: sabiam onde estava, sabiam quem ela era. Desapareceu da Oceania sem deixar qualquer pista, apenas uma bolsa de moedas para pagar o aluguel e o silêncio do proprietário. Esquecera-se de com quem lidava. Era óbvio que seu pai saberia onde estava, querendo ou não tê-la como filha, ele ainda a tinha como herdeira, e precisava dela. Sim, precisava. Deixou isso muito claro em seu testamento.

Emmeline suspirou.

Desceu do navio, caminhou pelo mercado do porto. Era asqueroso como as mulheres se atiravam daquele modo. Claro que elas não tinham os mesmos recursos para se sustentar, mas prostitutas poderiam ser mais discretas, em respeito às demais mulheres da sociedade. Não que Emmeline não reprovasse os homens que se relacionavam com elas, mas o fato de serem mulheres só a envergonhava por ser uma também. Ela adorava ter seios, adorava ser linda e motivo de suspiros. Mas como Oscar Wilde dizia “Um homem pode ser feliz com qualquer mulher desde que não a ame”. A verdade era infeliz, e isso só a fazia odiar um pouquinho mais os homens e a sociedade. Percorrera diversos lugares, e em todos ela vira a mesma coisa: mulheres em postos inferiores aos dos homens. Quando pegava todas essas informações, e as comparava, chegava a ponderar se era verdade. Se mulheres realmente não tinham capacidade. E então odiava com mais fervor ainda a sociedade e a si mesma.

— Um cavalo. – disse ao garoto do estábulo.

— São cavalos para carruagem, senhora. Não estão a venda para montaria.

Aquilo fora a coisa mais idiota que ela não ouvira em anos. Cavalos que só serviam para levar carruagens? Como se ela precisasse comprar cavalos exclusivos para isso ou para aquilo, ela escolhia o que fazia com o animal a partir do mesmo em que o tinha como posse. Mas apenas ignorou-o e continuou andando, tinha de arranjar um meio de chegar a Birmingham antes que o advogado transferisse os bens da família para seu primo distante, Frederick Bonier.

— Por favor, para Birmingham. – disse a um cocheiro parado em frente ao mercado. O homem a olhou de cima a baixo e assentiu.

— Mas vamos passar por Bristol, só ando na estrada principal.

— É claro – Emmeline deu de ombros, subindo ao seu lado. O homem virou a cabeça, questionador, e inclinou-a hesitantemente. Sua barba era grossa, porém só crescia no queixo, as sobrancelhas quase se uniam e seus olhos ostentavam as horas sob o Sol em que estivera numa carruagem. – Gostaria de sentir o vento, se não se importa.

— Com certeza não – ele assentiu – Companhia é sempre rara e bem-vinda.

Dito isso, deu um comando ao cavalo e ele começou a andar. Passariam por Bristol no final da noite e só conseguiriam chegar a Birmingham no final do dia seguinte. Teriam de dormir, o que aumentava a viagem em mais quatro ou cinco horas. Mas o que era isso em comparação a dias num navio, no meio do oceano? Encostou-se na cadeira do coche e colocou os pés sobre o parapeito. Cruzou os braços sobre os seios e começou a ressonar. Cochilou até que abandonassem Plymouth, abraçando a estrada e a floresta de ambos os lados. Às vezes viam um ou outro cidadão indo em direção a cidade portuária, e então um pouco mais a frente avistavam a sua provável casa, humildemente construída.

— O que vai fazer em Birmingham? – o velho perguntou, quebrando o silêncio e a sensação de paz que Emmeline havia conseguido atingir. Perguntas. Elas sempre começavam inocentes e no final se tornavam mordazes. Odiava-as.

— Não é da sua conta.

O homem concordou, sem se ofender. Havia levado muitas pessoas em toda a sua vida para diversos lugares, para saber que quando alguém não queria lhe contar algo era melhor não insistir. Por isso, permaneceu em silêncio. Emmeline mordeu os lábios, incomodada. Por algum motivo achava ruim ofender um simples cocheiro e isso a estava esmagando por dentro.

— Você sabe contar piadas? – perguntou ela. Piadas eram sempre bem-vindas e faziam o tempo passar bem rápido.

— Não. Sou péssimo nisso – ele riu, como se isso já fosse em si uma piada. – Mas sei histórias.

Se havia algo que Emmeline gostava mais que piadas, eram histórias. Empertigou-se ao lado do velho, os cotovelos sobre os joelhos e as sobrancelhas levantadas, aguardando que começasse. Ele pigarreou e então se passaram seis horas, antes que Emmeline voltasse a bocejar.

Despertou quando os primeiros raios de Sol tocaram sua face. As copas das árvores eram altas, mas ao olhar ao redor, percebeu que não se tratava de uma floresta ou de uma estrada, mas sim de um parque. Carros estavam estacionados diante de casas enormes, com jardins extensos e janelas altas. Coçou os olhos, retirando a remela que se acumulara. James – o cocheiro – não percebeu que ela estava acordada, e continuou guiando o cavalo silenciosamente, com os ombros curvados e a boca caída. Visivelmente cansado.

— Chegamos?

Ela ergueu uma sobrancelha e olhou para ela, abriu um sorriso e concordou com um meneio. Bocejou e agitou as rédeas.

— Há uns dez minutos. Estou tentando achar o endereço. Não conheço Birmingham e não há a quem pedir informação.

Por obra do destino, Emmeline virou o rosto e leu sobre a porta da casa “Casa Cavendish”. Estremeceu ao ler o próprio sobrenome.

— Pode me deixar aqui, já sei me orientar. – pediu.

— Não, deixe-me levá-la até a sua casa. Onde fica?

— Não é preciso. Quero que descanse logo, irá demorar muito até chegar lá.

James olhou-a intensamente e então suspirou, concordando. Parou a carruagem e ela desceu. Pagou-o e se despediu. Começou a andar para o final da calçada, virou a esquina e continuou andando. Assim que a carruagem desapareceu pelo parque, voltou para a rua e atravessou o jardim da residência. Tentou observar lá dentro, mas estava muito escuro. A porta parecia muito bem trancada. Contornou a casa e, nos fundos, encontrou uma despensa que ficava ao lado da casa. Novamente a sorte sorriu para ela, pois o telhado da construção ficava logo abaixo de uma janela da casa. Escalou a despensa, caminhou delicadamente sobre o telhado velho e empurrou a janela para trás. Colocou uma perna, depois outra, enfiou-se por inteira. Fechou a janela e soltou o ar que estava prendendo.

Havia poeira por todo lado, o papel de parede rasgava e a casa não tinha travesseiros ou cobertores. O chão estava manchado, a penteadeira tinha teias de aranha cobrindo todo o espelho e o armário com ambas as portas abertas estava vazio. Emmeline olhou bem ao redor, até encontrar uma vela, com fósforos ao lado. Eram descobertas recentes, e ela nunca vira qualquer um tão a mercê de mãos alheias. Todos pareciam preservar a fonte de fogo fácil com suas vidas. Pegou a lixa e o palito pequeno, riscou-o e fez-se o fogo. Acendeu a vela, começando a caminhar para fora do quarto, para o corredor que se estendia por mais três portas fechadas, até o limite, onde havia a escada. Desceu-a, sentindo a madeira estalar sob seus pés.

Emmeline se deitou sobre o tapete da sala, sem se importar com o frio do chão ou o fato de a lareira não estar limpa. Acendeu-a, arrastando a mesa de centro para longe, e colocou as almofadas ao seu redor. Quando estava tudo preparado, começou a observar o fogo. Havia muitos anos desde a última vez em que estivera dentro de uma casa tão grande, tão rica e tão inglesa. Não imaginou que sentiria tanta falta dos quartos espaçosos ou dos corredores longos. Do lado de fora, o Sol começou a brilhar, atravessando as janelas e lançando sua luz sobre a poltrona principal e o sofá. O equipamento de chá estava devidamente arrumado no copeiro de madeira escura. Na recepção, as plantas estavam mortas e o guarda-volumes vazio. A Casa Cavendish não vira uma alma viva por longos anos, Emmeline notou.

Bem, não importava. Ela não precisava que arrumassem seu café da manhã, que abrissem as cortinas da casa ou a vestissem e lavassem. Poderia fazer isso ela mesma. Mas com certeza seria um escândalo a recém chegada filha do finado Lorde Cavendish não contratar uma governanta ou um mordomo, ao menos duas criadas, um volante, uma cozinheira, uma auxiliar de cozinheira... Empregos inúteis, em sua opinião. Eram desnecessários para as pessoas que contratavam, os nobres só queriam mais tempo para si mesmos, e ocupavam o tempo de outros com isso. Emmeline tinha isso em mente. Ela queria que todos corressem atrás de seus sonhos, sem se redimir a servir outra pessoa que pode muito bem buscar o jornal em frente a porta.

Adormeceu em poucos minutos, e acordou quando o estômago começou a doer de fome.

Saltou do tapete e se encaminhou para a cozinha. Mas como ela era tola. Obviamente não havia comida nos armários, e se houvesse, estaria consumida pelos ratos e outros bichos asquerosos. Respirou fundo, teria de comprar algo em algum bar. Antes de sair, entretanto, subiu novamente as escadas, encontrou um quarto ainda arrumado, abriu o armário e encontrou um vestido velho, embolorado, porém claramente de alta qualidade. Borrifou água da pia do banheiro e vestiu-o sem se incomodar, arrumou os cabelos com presilhas que sempre levava em uma pequena mochila, com a qual viajara o mundo, e ajeitou o chapéu, peça obrigatória para todas as mulheres durante o dia. Vestiu um casaco grosso e cobriu o pescoço com um lenço, protegendo-se do frio da manhã inglesa.

Calçou botas que também encontrou e arranjou uma sombrinha, sinal de que “era uma dama sem a intenção de parar e conversar”, estava indo a um lugar com um objetivo e tinha isso claro em sua mente. Conhecidos não a parariam, nem vendedores ambulantes.

Quando saiu, no entanto, o Sol estava brilhando forte. Havia inúmeras pessoas caminhando pelas ruas, e não apenas nobres. O centro de Birmingham abrangia toda a área comercial. Empregados iam de um lado ao outro ao mando de seus patrões, a fumaça dos carros preenchia as ruas em seus espaços que as pessoas não conseguiam preencher. Poucas eram as senhoras que caminhavam. Haviam muitas carruagens e veículos, bicicletas e cavalos, mas apenas os pobres andavam.

Entretanto ninguém olhou para ela, nem mesmo quando saiu de uma casa abandonada trajando roupas de três décadas atrás. Aquilo a confortava e a incomodava também. Sentia que a Inglaterra mudara drasticamente desde a última vez em que estivera ali, o que era bom porque Emmeline detestava a Inglaterra antiga, ruim porque agora não saberia onde estava pisando. E não se tratava apenas de um novo lugar com novas culturas, assim como fora em suas viagens pelo mundo. Era o seu país, o seu lugar e a sua cultura. Era inglesa em casa espaço de seu sangue, mesmo com a pele bronzeada e os modos mais calorosos e liberais. Temia que ser recebida no meio aristocrático se tornasse ainda mais difícil agora, quando voltava de suas caminhadas mundanas apenas por causa da morte de seu pai, buscando um noivo para garantir a própria herança.

Teria de se adaptar, ser convincente, conseguir alguém que compreendesse seus objetivos e então... estar presa o resto da vida a ele.

E tudo por quê? Porque um velho idiota prefere vê-la na sarjeta, implorando por comida, a oferecer-lhe a simples herança que deveria ter. Não de acordo com a lei. Mas que deveria.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado! Os leitores que já mandaram fichas e quiserem mandar mais, eu aceito ^^ Acho que não muitos outros leitores vão se juntar a nós nessa altura do campeonato, então espero que vocês gostem e se sintam livres para fazer personagens diferentes e interessantes. Beijos da Meell Gomes.