Piromania escrita por Makimoto


Capítulo 1
capítulo único.


Notas iniciais do capítulo

Como eu falei nas notas, eu espero que gostem da Mina. Eu costumo dizer que todas as minhas personagens tem um pedaço de mim, e é verdade, mas eu creio que de todas é a ruiva que tem o maior pedaço de todos. Tentem não odiá-la de cara (ela pode ser bem escrota, eu sei), IJAOJPAJDODK.



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A voz rouca do cantor solitário, posicionado sobre o pequeno palco nos fundos, resvala no ar com cheiro de bebida e cigarro. Apenas uma das lâmpadas permanece acesa: a do centro do salão, próxima à sinuca abandonada, que já não ilumina o ambiente com a mesma força do início da noite. Silhuetas letárgicas e embriagadas se movem aqui e ali ao som da música folk que alterna entre violão e gaita em perfeita sincronia. Diversas bebidas, de Jack Daniel’s à Guinness, estão dispostas lado a lado nas prateleiras atrás do balcão, enquanto as palavras “Red Card” piscam em néon vermelho no modesto letreiro no centro da parede.

Há uma estranha mistura de silêncio e ruído reinando no ambiente. De vez em quando, o som de um copo caindo ou o rolar de uma garrafa de vidro sobre o piso de madeira se fazem presentes, mas é na verdade a quietude que toma conta do bar. A maior parte dos clientes já partiu, e o restante está deitado no chão, inconsciente, sobre bitucas usadas e vômito. Faltam ainda algumas horas para o amanhecer, mas existe ali dentro um mundo próprio, isolado, cujos ponteiros do velho relógio se movem mais devagar, e a noção de infinito parece tão palpável quanto as cédulas manchadas dentro da caixa registradora.

Acomodada em um dos bancos individuais junto ao balcão está uma mulher ruiva e de cabelos compridos. Enfiada em trajes escuros — exceto pela calça jeans, rasgada, que é cinza —,  sua jaqueta de couro, regata e coturnos surrados completam o visual. Ostenta uma garrafa de Budweiser em uma das mãos, sacudindo o conteúdo vez ou outra no ritmo da música, enquanto dedilha o balcão com a outra. Seus anéis de prata batem contra a superfície de mogno e tilintam. Quando ergue a face, e permite que sua visão alcance os folhetos de propaganda presos ao quadro de avisos logo à frente, o tapa-olho negro sobre o lado direito do rosto se torna visível.

Está tão absorta em seus próprios pensamentos que nada ao seu redor se mostra interessante o suficiente para engaiolar sua atenção. Ela sacude a cabeça suavemente no ritmo da música, alternando entre cantarolar o refrão e molhar os lábios de cerveja, ao mesmo tempo em que batuca o móvel de madeira com a ponta as botas. Tateia os bolsos da calça até localizar o maço de cigarros, cuja embalagem está previsivelmente amarrotada, e retira um antes de atirar a caixinha sobre o balcão de modo desleixado. A pequena chama que brota do isqueiro de prata, com um pássaro encrustado que brilha na escuridão, toca fogo na extremidade do cigarro e deixa e a Tirana o traga, rendendo-se à nicotina que rasga seus pulmões e lhe traz mais uma vez aquela sensação de alívio que frequentemente torna seus dias mais toleráveis.

Chegara ali do mesmo modo mecânico que nos recorrentes dias anteriores. A cerveja era boa e barata, e conhecia o dono do bar. Ninguém se incomodava com seus modos ou maneira de vestir porque eram igualmente porcos. Estava longe de passar despercebida, entretanto, com seu cabelo ruivo flamejante e a confiança posta em cada passo. Já tinha brigado com metade dos frequentadores do estabelecimento, e mandado a outra metade para o hospital, e isso lhe rendeu a reputação nefasta que a precedia. Costumavam chamá-la de “Tirana Sanguinária” entre risos irônicos e caretas dissimuladas, em razão tanto de sua personalidade turbulenta quanto da força de seu soco.

Estava mal-humorada como de costume. Mal tinha saído da ressaca do dia anterior, que lhe rendera uma enxaqueca de intensidade descomunal, e já estava afundando em mais álcool. Não recebia nenhum serviço há mais de duas semanas. Os arranhões do trabalho anterior já tinham sarado e isso era um mal sinal porque lhe lembrava constantemente que o tempo estava passando. Comida não brotava do além e a conta de energia não ia desaparecer não importava o quanto a ruiva a encarasse fixamente. Ficar sem iluminação não era tão ruim, mas a falta de água quente na hora do banho seria um problema considerável.

Voltou a atenção para a porta dentro da área do balcão quando ouviu-a ranger. Por ela saiu um homem moreno e esguio que secava um copo de vidro com um trapo. Seus trajes eram compostos por uma camisa branca — de tecido fino, embora levemente amarelado — sob um coletinho escuro que combinava com a calça, gravata vermelha, frouxa e dependurada, e sapatos perfeitamente engraxados. Um lenço branco repousava sobre o ombro esquerdo. Ele encarou a mulher, com seus olhos escuros e astuciosos, analisando-a com rapidez, antes de por fim se aproximar e guardar o recipiente transparente no armário de baixo.

— Foi mal a demora. — Murmurou o barman enquanto alcançava a geladeira atrás de si e apanhava outra garrafa de Budweiser. Destampou-a com o abridor de garrafas que trazia no bolso e serviu-a para a cliente. — Lá dentro 'tava uma bagunça.

— Relaxa. — Ela respondeu, em um sotaque irlandês que denunciava sua origem, ao que balançava ligeiramente a cabeça. — A propósito, o Sasha 'tá meio estranho hoje. Quero dizer, mais do que ele parece normalmente.

Ambos olharam para o cantor, no palco dos fundos, de cabelos castanhos pouco abaixo dos ombros, que olhava de modo desolado para um ponto qualquer no recinto. Ergueram a sobrancelha, examinando a figura excêntrica do músico russo, que parecia completamente desligado do mundo que o cercava, para só então retomar o diálogo que mal tinha começado.

— A Darlene morreu. — Informou o anfitrião.

— Sério? — A ruiva franziu o cenho parecendo genuinamente incomodada pela informação. — Eu avisei para ele ir dar uma olhada nela com o cara que conserta relógio aqui da esquina. Ele entende dessas coisas.

Darlene era uma das gaitas de Sasha.

Ambos deram de ombros.

— Ainda com problemas para dormir? — O barman tornou a indagar.

— A mesma merda de sempre. — Resmungou. — Não sei nem porque eu tento. Só fico mais irritada quando tento pegar no sono e não consigo. Nem encher a cara 'tá adiantando mais.

— É aquele maldito cheiro de queimado no seu apartamento, Mina. — Insistiu o inglês. — Já te falei para fazer uma faxina naquele lugar, mas falar com você é a mesma coisa que conversar com uma porta.

— Tch... — Mina suspirou visivelmente contrariada. — Eu não me incomodo, sinceramente.

— Você 'tá acostumada. Ou acha que está. — Ele suspira.

Enquanto conversavam, uma figura masculina adentrou o estabelecimento com o rosto oculto sob um chapéu de couro desgastado e envolto em um sobretudo feito do mesmo material. Seus passos eram calmos e precisos. Cruzou o salão como se soubesse exatamente onde estava indo ainda que não fosse familiar de nenhum modo ao barman — e proprietário — do local. Acomodou-se em um dos assentos junto ao balcão, na extremidade mais distante, e permaneceu em silêncio enquanto analisava os produtos expostos nas prateleiras do Red Card.

Mina sorveu o que restava da cerveja na garrafa e o barman prontamente lhe trouxe outra. Enquanto isso, guardava os copos restantes, além dos demais utensílios tais como pratos e panelas, nos vários armários no topo da parede e embaixo da bancada. Dali a poucas horas o sol nasceria e o bar ia fechar. Toda a sujeira e a maldade que se escondiam nos becos poluídos da cidade se recolheriam, aguardando que o astro-rei perecesse no horizonte, para mais uma vez correr livre por Mortestem.

— Não fica chateada. — James, ou “Jamie”, como ela chamava o barman, tornou a pronunciar em um tom ligeiramente debochado. — Se serve de consolo, você não parece tão ruim.

— Isso devia ser um elogio?

— Não, só sou eu sendo legal com você.

— Pois pode parar que eu não sou casa de caridade pra ganhar pena.

Ele se aproximou da irlandesa e delicadamente apanhou uma mecha de cabelo, cujos fios recaíam de qualquer jeito sobre o tapa-olho, deslizando-o até a parte traseira da respectiva orelha. Não parecia incomodado pelo pano negro que ocultava o olho esquerdo de Mina, nem ofendido pelas atitudes passivamente grosseiras que ela adotava. Conhecia-a há tempo suficiente para compreender seus trejeitos e entender que era assim que ela era: grossa, ríspida e de pavio curto. Trabalhava caçando criaturas das trevas e, ainda que não admitisse por ter uma reputação a zelar, salvando delas pessoas inocentes.

Ele era talvez a única criatura viva que tinha presenciado toda a desgraça que a acometera na adolescência e a transformara, como a água para o vinho, em uma mulher amarga, com sérios problemas para se relacionar com as pessoas, afogada em álcool e cigarro, e que aprendera a se defender com a língua afiada e os punhos cerrados.

Em um lampejo de consciência, Mina percebera que o homem que outrora estivera na extremidade da bancada agora estava logo atrás dela. Ainda não a tinha tocado, mas a ruiva era capaz de sentir suas intenções hostis. Em um movimento rápido, o desconhecido puxou-a pelos cabelos, arrancando da outra nada mais que um contrariado revirar de olhos, e pressionou uma adaga comprida contra seu pescoço. O barman interrompeu imediatamente o que estava fazendo — repousando, portanto, sem movimentos bruscos, as duas garrafas vazias que pretendia jogar fora sobre o balcão — e repousou o olhar de forma precisa sobre o 'visitante' que tinha certeza nunca ter visto na vida.

— Senhorita Dewitt? — O recém-chegado questionou em voz rasgada.

— Sim, ou me enganaram durante toda a minha vida. — O tom sarcástico escorre das palavras dela mesmo na posição de aparente desvantagem. — Mas caso a sua incompetência em ter certeza de seu alvo exija uma comprovação, posso te mostrar a minha identidade.

Em resposta, ele puxou com mais força os cabelos da irlandesa. Ela riu, mordendo o lábio inferior, e ergueu as mãos em rendição teatral. As poucas pessoas que os cercavam não notavam — e se notavam, não ligavam — para que o acontecia naquela parte do estabelecimento. Assim como elas, Mina tinha certeza de que o adversário não passava de um humano comum; as primeiras por não fazerem ideia de que criaturas nefastas, que fugiam totalmente da compreensão humana, se esgueiravam às sombras da sociedade (frequentando em massa, inclusive, aquele mesmo bar), e a segunda por não ser capaz de detectar no outro nenhum cheiro anormal.

Era apenas um humano. Um humano muito estúpido.

Com o cotovelo na altura do rosto alheio, acertou o nariz dele com uma pancada violenta. Ele recuou o suficiente para largá-la, mas deferiu um golpe que a acertaria na cabeça se não fosse o reflexo quase inumano da mulher ao agarrar-lhe o punho, apertá-lo, e empurrá-lo bruscamente para trás. O homem não lhe deu trégua. Aproximou-se com rapidez e projetou uma série de poderosos socos, dos quais ela desviou com facilidade, até receber uma cabeçada que o compeliu a se afastar.

— Qual é a regra da casa? — James indagou enquanto erguia a sobrancelha para ela.

— “Quebrou, pagou”... — Repetiu, de costas, irritada pela poda insistente. — Eu já sei.

Ele ergueu as mãos, como quem as lava da responsabilidade, e desapareceu tranquilamente pela porta dos fundos sob o soar do pequeno sino pendurado acima dela. Sasha, sentado na beirada do palco, acendeu um cigarro. Havia agora um silêncio gritante sendo desafiado pelos movimentos bruscos no centro do salão, tornando cada mísero som, mesmo o do caminhar tranquilo da irlandesa ou o da lâmina do oponente cortando o ar em débil tentativa de acertá-la, um verdadeiro escarcéu em meio ao eco.

Mina, que enxergava com o único olho bom uma arena de batalha à sua frente, impulsionou-se afim de encurtar a distância entre si mesma e o homem que certamente não fazia ideia do tamanho do problema que tinha conseguido. O primeiro soco foi habilmente defendido pelo braço do humano, enquanto do segundo desviou-se com maestria, todavia foi o terceiro quem lhe acertou em cheio. A ruiva não lhe dava tempo para respirar, gargalhava entre uma investida e outra, deliciando-se com a sensação única de sentir as juntas dos seus punhos se chocando contra os ossos de alguém que tinha chegado ali regozijando-se na própria presunção.

O desconhecido sacou um revólver, bem trabalhando, parecendo antigo, de dentro do sobretudo e apontou-o na direção da mulher que estava de pé, com as mãos nuas, diante dele. A suposta desvantagem não parecia incomodá-la. Escorregou a mão até o bolso da frente, ao que ele, por sua vez, com um corte no lábio inferior e um filete de sangue escorrendo pelo nariz, respirava ofegante. Acompanhava cada movimento da adversária com o cano duplo da Smith & Wesson 500. Estava preparado para enchê-la de balas caso qualquer coisa suspeita emergisse entre seus dedos. O que ela alcançou, no entanto, e posteriormente ergueu, foi o seu isqueiro de prata.

— O que está fazendo? — Ele indagou.

— Quem brinca com fogo, gosta de churrasco. Ou de ser o churrasco.

— Com isso aí? — Riu, em zombaria escancarada, erguendo a arma para sobrepujá-la.

— Alguma última palavra? Sabe, pra eu repassar ao meu contratante.

— Téigh go dtí ifreann.

— O quê?

— "Vá para o inferno".

Mina arremessou o isqueiro na direção dele, que permaneceu parado, cético sobre que impacto ela esperava causar, até perceber a tremulação incomum nas chamas que o objeto produzia. Elas cresceram rapidamente, se alimentando do oxigênio ao redor, e se transformaram em uma verdadeira rajada de calor. Era como estar diante de um pandemônio de labaredas flamejantes, que cresciam exponencialmente e destruíam a pureza do ar por onde passavam, cercando, devorando, quase como se estivessem... vivas. As chamas alcançaram o sobretudo alheio, enquanto ele largava a arma e cambaleava, tentando desesperadamente apagar o fogo que consumia as mangas da gasta peça de roupa.

O caçador bateu contra mesas e cadeiras no caminho urrando como um animal prestes a ser abatido. Deu com as costas na porta de madeira e tropeçou nos degraus que conectavam o estabelecimento diretamente à rua, com seu chão podre e esburacado, cujo silêncio que outrora reinara fora preenchido imediatamente pelos clamores exasperados de um homem que se arrependia amargamente da estupidez de desafiar a morte. Ele até conseguira apagar o fogo, mas não a tempo de impedir que seus braços queimassem em carne viva e que ele próprio descobrisse o significado de 'lancinante'.

— Não me mate, por favor! — Ele implorou em lágrimas. — Você venceu!!

— Você não foi macho o suficiente para puxar o meu cabelo, colocar uma faca no meu pescoço e achar que podia me derrubar? O que foi, é porque eu sou uma garota? Você não gosta de apanhar de garotas?

— N-Não, eu... — Ele não conseguiu rebater o argumento, e se arrastava no chão para longe da mulher conforme os passos dela a guiavam sua localização.

— Você não estava preparado para tirar a minha vida e condenar uma alma ao Inferno?

Ele alcançou uma pedra e arremessou-a contra a Carrasca que facilmente desviou. Mina fechava os punhos, à medida que seus passos pesavam contra o chão, e ela se aproximava feito uma serpente prestes a dar o bote: devagar e ardilosa. Em segundos, suas mãos entraram em combustão, bem como os fios alaranjados de seus cabelos que foram, um a um, se unindo à fogueira crepitante na qual suas madeixas de converteram. O único olho bom, que costumava brilhar em turmalina perfeita, agora fulgurava sob um laranja escarlate que a aproximava intimamente de sua natureza demoníaca que ela tanto desprezava.

— O Príncipe espera uma alma esta noite. — A voz dela soou imponente. — Mande-lhe lembranças, e diga que minha visita terá que ficar para o outro dia.

Projetou os punhos para a frente, lançando contra o homem caído uma rajada de fogo, e, por um momento, foi possível enxergar o contorno de uma Fênix a envolvê-lo. Os gritos coléricos daquele que tinha vindo para caçá-la ecoaram pelo cruzamento deserto. Mina o olhava queimar sem um pingo de compaixão; escutava o som da pele se desfazendo, sentia o cheiro de carne queimada e observava o apelo silencioso, emitido em um balançar de braços, mas o fato de tirar a vida de alguém que tentou assassiná-la não lhe parecia nem de longe suficientemente grande para se tornar um peso em seus ombros. Pelo menos não maior que o peso que ela já carregava.

Deu as costas ao homem carbonizado depois que sua aparência tinha voltado ao normal. Antes de retornar ao estabelecimento, porém, reparou em um papel no chão que provavelmente tinha caído do bolso dele. Apanhou-o, correu o olho direito pelas linhas, e foi nesse momento que James surgiu pela porta do bar ostentando um semblante curioso. Recostou-se à parede, de um jeito que Mina teria achado charmoso se tivesse prestado atenção, e indagou:

— É ele de novo?

— Sim, quem mais ia querer a minha cabeça? — retrucou. — O que me surpreende é ele ter achado que um simples humano com uma faca e um revólver seria suficiente para me matar. Talvez tivesse um plano, mas não deu tempo de fazer. — Ri soprando pelo nariz. — Não importa mais. 

— Dá um jeito nessa merda. — O dono do estabelecimento apontou o corpo com o queixo, tencionando retornar ao bar. — Não quero os tiras no meu pé de novo.

— Segura as pontas para mim dessa vez.

— Porquê?

— Tu e ele vamos ter uma conversinha.

Apertou entre os dedos a folha de papel — cujo conteúdo era composto não só pelo nome do contratante, que por puro acaso era também seu progenitor, mas também pelo local onde o futuro defunto trabalhava — e se pôs a caminhar pela calçada suja, desaparecendo por completo no que restava da escuridão.


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Notas finais do capítulo

... Espero que tenham gostado, ahsuahsua~! Explicando algumas coisinhas sobre a história da Mina. ♥