Consequências escrita por Winston


Capítulo 1
Capítulo único




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/685073/chapter/1

Chuva.

Sempre a chuva.

Não conseguia compreender porque sempre começava a chover quando tudo terminava. Teorias era o que não faltavam, e que iam desde o céu finalmente ficar mais limpo de toda aquela tensão até porque simplesmente alguém, em algum lugar do mundo, estava sofrendo com aquele desfecho.

Considerando todas as coisas que aconteciam, não seria uma novidade que as duas teorias estivessem certas ao mesmo tempo.

Passando as mãos sobre a testa para afastar os fios que se pregavam nela, Igor tirou a atenção do céu para observar os sons e cheiros que tomavam conta do ambiente. Havia se desligado pouco antes do final e, bem, agora que tinha seus sentidos a pleno vapor outra vez, voltava a entender porque havia feito tal coisa.

As sirenes, os gritos, o cheiro de sangue, terra molhada… lágrimas. Fechou os olhos antes que pudesse ver algo ainda pior, sentindo na pele o calor do fogo que estava a uma distância mais do que segura de si mesmo. Notou que seus ombros começavam a tremer, e em poucos segundos a combinação de frio da chuva, angústia e todos seus sentidos aguçados o fizeram cambalear para trás no beco e abraçar o próprio corpo.

Tinha a sensação que deveria estar de noite, de que tudo deveria estar escuro e melancólico. Que o clima deveria estar de acordo com o sentimento das pessoas. Mas o sol tomava seu lugar naquele azul imenso até mesmo com a chuva gelada que caía sobre cidade, sem se importar com o que estivesse passando nos corações de seus habitantes.

— Oi, está tudo bem?

Uma voz na entrada do beco o fez tremer ainda mais, e não porque era acusadora e muito menos nervosa, mas justamente porque estava calma e gentil. O contraste dela com o que acabara de acontecer era grande demais.

Igor assentiu com a cabeça, negando-se a levantá-la para ver de quem se tratava. Não se sentia corajoso o suficiente para abrir os olhos outra vez. Mas não precisava deles para saber que a pessoa se aproximava a passos quase flutuantes, ou que não tinha nenhum vestígio em si de que estava ali no momento da comoção.

— Hm, não é o que parece, mas não me admira. — Ela parou por um instante.

Igor pôde ouvir o barulho que suas roupas faziam quando ela dobrou os joelhos para ficar na mesma altura que ele. Um vestido. Provavelmente de seda, ou não, não era bom com panos. Era bom com cheiros, e a mulher que estava a sua frente cheirava a terra molhada e primavera, o que não fazia sentido algum naquela situação.

— Vou chutar que está assim pelo que acaba de acontecer — comentou a mulher, esticando a mão na direção do garotinho, apenas para parar alguns poucos centímetros de seu braço ao perceber que ele se encolhia. Igor ouviu o suspiro dela mais claramente do que a própria respiração. — Olha, se você vier comigo acho que posso te ajudar.

O garoto pensou por um instante. Continuar ali não era uma boa opção, e considerando que achava que não tinha como a situação ficar pior, confiar em uma desconhecida que prometia ajudá-lo era o menor de seus problemas. E também, não conseguia ouvir sinal nenhum no coração da mulher que demonstrasse que ela estivesse mentindo.

Relaxou então os ombros, esticando a mão esquerda na direção da mulher, que soltou uma leve risada ao passar o braço pela cintura do garoto. Provavelmente percebendo que o movimento de Igor significava que podia encostar nele.

— Assim é menos perigoso, segura bem — tranquilizou-o ao ver que congelava com o movimento brusco. — Vai ser mais divertido se abrir os olhos. — Sua voz saiu em um sussurro como se estivesse contando um segredo.

A próxima coisa que Igor ouviu foi o barulho de asas se abrindo e logo depois seus pés já não estavam mais no chão. Em um ato instintivo, passou os dois braços ao redor da mulher para se segurar melhor, ouvindo a risada divertida que ela dava pouco antes de finalmente abrir os olhos.

Já tinha notado, por motivos óbvios, que não estava mais no chão, mas nunca tinha voado de forma alguma e a visão dali de cima era bem mais bonita do que podia sequer imaginar sem tê-la visto antes, mesmo com a chuva. Seus olhos se arregalaram como se quisesse guardar aquela visão para sempre em sua memória, esquecendo-se por um instante do que tinha a suas costas.

Quase abriu um sorriso, mas então a mulher deu a meia volta deixando-o de frente outra vez para o local da explosão, descendendo alguns metros até que finalmente seus pés encontraram o teto de um prédio.

Igor fechou os olhos outra vez, abaixando a cabeça.

— Fechar seus olhos não vai fazer o que aconteceu sumir — avisou a mulher, movendo os ombros como se estivesse aproveitando o fato de que suas asas estavam livres.

— Eu sei — respondeu Igor, fungando de repente.

— Então porque não os abre? Não é a primeira vez que isso acontece e não será a última. — Ela respirou fundo, colocando uma mão no ombro de Igor para trazê-lo mais para perto do parapeito e da destruição mais abaixo. — Não consigo começar a entender como é poder sentir tudo que acontece mesmo estando a quilômetros de distância, mas não é porque você é uma criança que deve se esconder da realidade.

Igor começava a achar que ela estava sim mentindo quando dissera que podia ajudar, ele só não tinha se dado conta com o barulho da chuva e dos próprios pensamentos. Segurou seu instinto de falar que não era uma criança, percebendo que não era tão importante no momento.

— Achei que os mocinhos tinham que proteger todo mundo. — resmungou o garoto, limpando o rosto com as costas das mãos.

— Que bom que não sou um deles então, é muita responsabilidade.

Quando as palavras dela finalmente foram entendidas por Igor, ele levantou a cabeça em um só movimento, arregalando os olhos ao dar um passo para trás. O medo estava mais do que visível em seu rosto e em seu corpo inteiro, que começava a tremer.

— Você não é um dos mocinhos? — perguntou, sem saber como como ainda respirava.

— Não, credo! — A mulher afastou aquele pensamento com um aceno da mão, como se só de pensar nele a desse calafrios, para então finalmente voltar os olhos para o garoto. Ao ver sua expressão de desespero resolveu elaborar. — Não é porque estou com o outro lado da moeda que quero fazer mal a todo mundo que encontro, muito menos a uma criança. Afinal, quem foi que decidiu que nós seriamos os errados? Eu não fui. — Levantou as mãos como se estivesse se rendendo, abrindo um sorriso amável para o garoto.

— M-mas, foram vocês que fizeram isso! — Apontou para o local que ainda pegava fogo, por mais que os bombeiros e a chuva tentassem apagá-lo. — É culpa do lado de vocês que tanta gente morreu!

As asas da mulher tremeram repentinamente e ela colocou as mãos na cintura, olhando para Igor com as sobrancelhas franzidas, o sorriso não mais presente.

— E por que acha isso? — perguntou, séria. Se não fosse a situação, Igor teria ficado feliz que pela primeira vez alguém o tratava com seriedade. — Por que te disseram que somos os ruins? Nosso objetivo não era queimar um quarteirão inteiro, nunca foi. Quem começou a briga não foi a gente, foram os tais mocinhos. — Suspirou por fim, relaxando os braços ao voltar a olhar a destruição. — Nós queremos uma coisa, eles querem outra, isso nunca vai mudar. Por isso o resultado também não.

Igor, ainda confuso com suas palavas, mas menos amedrontado, deu alguns passos na direção da mulher, olhando para a destruição ao mesmo tempo em que desligava seu olfato. Não precisava sentir todos aqueles cheiros horríveis que o fogo causava para entender o que ela estava dizendo.

A realidade era que era muito novo para saber o motivo exato da briga dos dois lados, e talvez por isso ponderou por alguns instantes se o que a moça dizia não tinha seu lado de verdade. Ela não estava mentindo, isso ele podia ter certeza, não podia mais colocar a culpa na chuva que ainda caía. A mulher acreditava realmente no que estava dizendo, o que fazia com que o garoto também absorvesse um pouco daquele discurso.

— Então você está dizendo que o seu lado é o certo? — Cortou o silêncio, fechando as mãos em punhos ao franzir as sobrancelhas, vendo os bombeiros em desespero para parar o fogo lá embaixo.

— Longe disso, nenhum lado está completamente certo. A gente só escolhe o que parece menos errado pra seguir. — Apoiou as mãos no murinho do telhado, fechando os olhos para sentir melhor os pingos da chuva. — O que estou dizendo é que cada um escolhe por si mesmo, mas você tem que saber ver que terá consequências pra cada escolha que fizer e vai ter que aceitá-las de um jeito ou de outro. — Franziu as sobrancelhas ligeiramente ao voltar o fogo, movimento que não passou despercebido por Igor.

— Você aceita essa de hoje? — perguntou, apoiando os cotovelos também no murinho, com o queixo sobre os braços.

— Não, esse tipo de desfecho a gente nunca aceita.

Igor assentiu levemente com a cabeça, ligando outra vez seu olfato ao encarar como as chamas finalmente começavam a diminuir.

Ainda não entendia muita coisa, seu coração estava apertado com todo o sofrimento causado naquele dia. Mas não tentou tapar os ouvidos para não ouvir os gritos e prantos das outras pessoas, não fechou os olhos outra vez para se esconder da realidade e não parou seu tato quando sentiu a mão da mulher bagunçar seus cabelos.

A única coisa que fez realmente foi respirar fundo, alimentando a esperança de que o próximo dia seria melhor, que talvez um dia todos se entendessem e que o final não fosse sempre igual.

Que da próxima vez não começasse a chover.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!