Três Desejos escrita por Kayra Callidora


Capítulo 26
Capítulo Vinte e Quatro




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Capítulo Vinte e Quatro

Atena acordou antes de Poseidon. Tal fato já era suficientemente raro para fazer o Universo entrar em colapso, mas a despeito da inversão de horários, o dia começara absolutamente normal - a diferença era que, dessa vez, Atena era grata por isso. Se tudo estava absolutamente normal, era porque um certo grupo de titãs, liderado por uma certa deusa primordial megalomaníaca e com sérios distúrbios em relações sociais havia sido impedida de destruir o planeta. E isso significava que a missão havia dado certo, e tudo finalmente estava acabado.

Mal havia se passado um mês, mas parecera durar uma eternidade. Um mês sem comunicação com o Olimpo - a não ser por meio de Afrodite, que não fora lá uma fonte de informação muito eficiente -, um mês sem ver os deuses com os quais convivia todos os dias, um mês presa ao homem pelo qual nutria um ódio mortal que na verdade não passava de amor reprimido (tensão sexual, Afrodite diria); um mês, e Atena já não se parecia em nada com a deusa que aparecera na frente da casa de praia da ilha Dauphine carregando uma pilha de malas e desejando a morte de Poseidon. Agora tudo estava acabado. E ela podia finalmente escolher o que fazer.

Atena se remexeu dentro do abraço de Poseidon, mas não tinha intenção alguma de se levantar. Sabia que fora daquele quarto não havia qualquer lugar melhor do que aquele onde estava no presente momento. E Poseidon estava num sono tão profundo que não demonstrou sequer um vestígio de consciência quando Atena se moveu perto dele. Bom, ela não o culpava. Não tinha experiência no assunto, mas imaginava que morrer e voltar à vida podia ser realmente desgastante.

Ela sorriu quando a mão áspera do deus dos mares roçou a pele desnuda de suas costas quando ele começou a acordar, e um arrepio percorreu seu corpo. Talvez ela nunca se acostumasse com Poseidon. Talvez ele viesse a ser um elemento surpresa constante, sempre com um lado oculto para mostrar, sempre causando uma reação diferente nela. Era isso que ela amava sobre ele. Ele não era uma pessoa quadrada. Nunca se podia esperar uma determinada atitude dele, porque Poseidon tinha um espírito independente e imprevisível, como o mar ao qual governava.

Atena não soube ao certo quanto tempo passou ali, apreciando em silêncio cada precioso segundo nos braços da pessoa que mais amava em todo o Universo, percorrendo com os olhos a extensão de seu rosto, os milimétricos traços belos que formavam o todo. Uma mecha negra de cabelo caindo sobre a testa, as sobrancelhas ligeiramente franzidas, os cílios fechados sombreando as bochechas e os lábios rosados, tudo criava um só elemento tão absolutamente lindo que chegava a ser injusto. Tudo aquilo era superficial e quase irrelevante quando comparado à beleza interior que ele carregava, mas certamente ajudava em algo.

A temperatura do quarto começou a cair ligeiramente, e Atena percebeu que Poseidon estava acordando antes mesmo que ele apertasse os olhos e os esfregasse com a mão livre antes de abri-los, e pareceu surpreso ao encontrar Atena já acordada olhando para ele.

— Você acordou cedo - ele observou, a voz rouca e falha.

Atena riu.

— Você sabe que horas são?

— Hum, não precisamente - Poseidon respondeu. - Mas eu sempre acordo antes de você, então suponho que seja cedo, não?

Atena apoiou o antebraço na parte superior do peito dele, tomando o cuidado de não se aproximar da cicatriz no abdômen, e beijou rapidamente seus lábios.

— Nem um pouco - ela murmurou com o rosto próximo ao dele. - Já passa de uma da tarde.

— Hum - Poseidon impulsionou a cabeça para frente, selando seus lábios mais uma vez. - Sendo que já é tão tarde, poderíamos aproveitar e passar o resto do dia aqui.

Atena entrou no jogo.

— Fazendo o quê?

Poseidon puxou o corpo de Atena para cima do seu, circundando a cintura dela com os braços. A deusa se perguntou se o corte não doía com o peso, mas não verbalizou a pergunta; afinal, Poseidon avisaria se sentisse dor (ou não?).

— Há muitas possibilidades - ele respondeu, mordendo o lábio inferior de Atena. - E tenho certeza de que aparecem ainda mais ideias depois de algum tempo.

Atena gargalhou. Ela queria passar o dia na cama com Poseidon. Ah, como queria. Poucos convites soariam tão tentadores como aquele. Mas aquele era, se não contassem o dia anterior, provavelmente o dia mais cheio de tarefas a serem cumpridas, e nenhuma das quais podia ser adiada. E assim, odiando sua racionalidade tanto quanto Poseidon provavelmente também o fazia naquele momento, ela balançou a cabeça e se levantou.

— Vamos ter que deixar esse plano para outro dia - ela disse, andando em direção ao banheiro. - Hoje nossa agenda está cheia.

Poseidon soltou um resmungo de reclamação, mas nem ele podia negar que aquele era um dia realmente importante fora de sua pequena bolha de amor. Era o fim de uma missão bem sucedida, algo que seria reportado e comemorado em todo o Olimpo.

Atena apanhou um roupão pendurado em um gancho na parede e adentrou o banheiro. O espelho sobre a bancada refletiu os poucos arranhões que cobriam seu corpo praticamente cicatrizados, alguns ainda um pouco vermelhos, outros já esbranquiçados, como pequenos riscos feitos de canetinha. Talvez Atena tivesse o trabalho de fazê-los desaparecer mais tarde. Apenas mais tarde. Queria carregar as marcas da pior batalha - e quase derrota - de sua vida por mais algum tempo, queria se lembrar da dificuldade e do orgulho da vitória. Depois de um banho rápido (nem para uma atividade tão revigorante ela teria tempo naquele dia), ela voltou ao quarto e encontrou Poseidon se vestindo de costas para ela. Os lábios de Atena tremeram, não contendo um sorriso. Numa linha de pensamentos insana seguida por sua mente, ela se viu refletindo sobre quão pouco realmente demonstrava algum carinho por Poseidon. Quer dizer, deixar-se ser beijada ocasionalmente ou dizer um "eu te amo" após uma batalha mortal eram reações naturais de uma pessoa apaixonada, mas a não ser por isso, ela costumava ser tão indiferente a Poseidon quanto era ao resto do mundo. E não deveria ser assim, ela pensou, de repente se sentindo culpada. Atena se importava com ele como não se importava com qualquer outra pessoa. Poseidon era agora o centro de seu universo, o sol em torno do qual ela orbitava para se manter constantemente aquecida e viva. E ele merecia ser tratado como mais que um namorado adolescente ou um caso de uma noite - principalmente depois da prova de amor que ele havia feito por ela. E também porque aquele era um dia especial. Muito especial.

E nesse impulso de sentimentalismo, Atena caminhou silenciosamente até ele e o abraçou pelas costas. Seus braços envolveram facilmente o corpo de Poseidon, mas sua estatura não permitia alcançar sequer os ombros ou o rosto do deus, de forma que, no momento, um abraço era tudo o que ela podia oferecer. Poseidon estremeceu, surpreendido pelo toque inesperado, mas logo reagiu, girando o corpo para ficar face a face com ela. Atena não esperou que ele dissesse qualquer coisa ou desse o primeiro passo para incentivar o começo de um momento. Tão rápido quanto se era possível após uma breve troca de olhares, ela se apoiou em seus ombros e o beijou. E ela não apenas o beijou. Ela o beijou. Beijou como se fosse a última vez, e se agarrou a ele como se ele estivesse prestes a desaparecer. Afinal, depois da madrugada passada, Atena aprendera que nunca poderia saber quando viria a perder Poseidon. Talvez dentro de séculos. Talvez dentro de segundos. Talvez - e ela assim esperava - ela nunca o perdesse. Mas enquanto ele estava ali, enquanto ele era seu... Atena aprenderia a aproveitar cada instante de sua companhia.

A deusa foi obrigada a se afastar quando, eventualmente, seu ar se esgotou. E apesar de todas as vantagens em ser uma deusa, respirar ainda era uma necessidade básica. Ela desgrudou seus lábios, ofegante, e mirou os olhos de Poseidon. As duas esferas mais lindas que ela já havia visto em toda a sua eternidade. Eles brilhavam como se estivessem pontilhados de milhares de estrelas, e seu brilho parecia refletir também nos olhos de Atena, tamanha era a felicidade que a inundava. Naquele exato momento, ela tinha tudo o que precisava para sobreviver. Disso ela estava certa.

— O que foi isso? - Poseidon perguntou.

— Eu só... - Atena ofegou, sorrindo. - Só queria dizer que te amo. Você merece um pouco de carinho.

— Hum - Poseidon descansou o queixo em sua testa. - Isso é bom. Sabe, na verdade eu me sinto um pouco para baixo hoje. Talvez eu precise de mais alguns minutos de carinho...

Atena apenas riu.

— Você não sabe brincar, Poseidon.

— Você é que para a brincadeira logo quando está ficando boa - Poseidon retrucou.

— Temos literalmente uma eternidade para brincar - Atena apontou. - E isso soa extremamente pervertido quando é você quem fala. Mas você vai ter que esperar mais algumas horas.

Poseidon suspirou.

— Acho que não vou sobreviver.

— Que pena.

Atena o afastou alguns centímetros, apenas para ter espaço o suficiente para conjurar uma muda de roupas comuns. Ela precisava se lembrar urgentemente de trazer suas roupas para o quarto dele.

— Qual é a nossa agenda para hoje? - Poseidon perguntou, uma vez que estava vestido.

— Primeiramente precisamos nos alimentar - Atena apontou. - Depois temos que ir ao Olimpo e fazer um relatório da missão. Bom, alguns detalhes vão ter que ficar de fora, é claro. E então, de noite provavelmente vai haver uma festa, e precisamos nos preparar para ela.

— Não me parece um dia tão cheio - Poseidon ponderou.

— Quando eu falo é realmente rápido - Atena concordou. - Espere só até chegarmos ao Olimpo e precisarmos transcrever quase dois meses de atividades.

— Vamos deixar boa parte delas de fora - Poseidon sorriu de canto.

Atena enrubesceu.

— Ainda vai sobrar um bom número de palavras. E de toda forma, eu quero terminar um vestido que comecei a costurar há alguns dias.

— Você vai usá-lo hoje? - Poseidon perguntou.

— Não tenho certeza ainda - Atena alisou a roupa por costume, se certificando de que estivesse perfeitamente lisa. - Vamos?

— Primeiro as damas - Poseidon apontou em direção à porta com a mão aberta e se curvou levemente.

Seu sorriso era divertido, mas algo em seus olhos estava sem brilho. Atena respirou fundo; estava sendo muito dura com Poseidon. Depois de tantos anos treinando a si mesma para levantar todas as suas defesas sempre que ele se aproximasse, era difícil se acostumar a ser mais doce com ele, mesmo depois de tudo o que haviam passado juntos. Mas ela precisava tentar. Se não por ela mesma, então por ele e pelo amor que sentia por ele.

Atena girou sobre os próprios pés, e o movimento brusco a colocou tão perto de Poseidon, que vinha logo atrás, que ela o teria beijado se não fosse a diferença marcante de altura entre os dois, de forma que o que realmente aconteceu foi que Atena colidiu contra seu peito.

— Vamos sair - ela soltou, um pouco zonza, após dar um passo para trás.

Poseidon franziu o cenho.

— Já estamos saindo, amor.

— Não, eu quis dizer sair - ela esclareceu, e então complementou ao ver que ele continuava confuso: - para fora do palácio, Poseidon. Vamos para o mundo dos mortais.

— Oh - os olhos de Poseidon se ampliaram, preenchidos pelo entendimento. - Pensei que você tivesse dito que nossa agenda estava cheia hoje.

— Um almoço em um lugar diferente não faria diferença no horário - Atena o dispensou com um gesto. - A menos que você não queira...

— Não, é claro que não - Poseidon se apressou a dizer. - Para onde você quer ir?

Atena deu de ombros.

— Por que você não escolhe um lugar?

Poseidon estreitou os olhos. Ele estava começando a desconfiar de tudo aquilo, era possível dizer mesmo sem ler sua mente, e isso fazia Atena se sentir pior. Será que dar privilégios a ele por um dia era algo tão sobrenatural assim?

— Hum... Tudo bem, então - Poseidon baixou os olhos para pensar e voltou a erguer o olhar para Atena de súbito. - Eu queria um lugar ensolarado. Não vemos o sol há tempos.

— Mas é inverno - Atena o lembrou.

— Não no mundo todo - respondeu Poseidon.

— Estamos procurando algum lugar ao sul do Equador, então? - indagou Atena. - Hum, deixe-me pensar... África do Sul?

Poseidon refletiu por um instante.

— Quente demais.

— Certo. Então você quer um clima tropical?

— Algo assim - Poseidon concordou.

— Bom... - Atena projetou o mapa múndi em todos os ângulos possíveis em sua mente antes que a ideia lhe viesse num estalo. - Já sei! Venha aqui.

Ela agarrou a mão do deus dos mares e os tirou do quarto no mesmo instante. O lugar onde apareceram depois era imediatamente quente e barulhento. O sol brilhava bem no meio do céu, aquecendo a orla de uma praia paradisíaca, onde ondas de um azul-esverdeado se quebravam suavemente perto de seus pés, que estavam afundados na areia morna do local. Os quiosques de madeira cravados no chão, que se estendiam a uma distância a se perder de vista na beira-mar, estavam repletos de pessoas em roupas de banho, grande parte delas entornando latas de cerveja ao som de músicas agitadas e cheias de percussão.

— Onde estamos? - Poseidon perguntou, maravilhado.

— Em Porto Seguro, na Bahia - respondeu Atena.

Poseidon olhou para ela tão confuso como estava a um segundo.

— Fica no Brasil - ela emendou.

— Ah. Para que lado fica o Rio de Janeiro?

Atena gargalhou.

— Tão longe quanto Nova York fica da Carolina do Norte - ela respondeu. - O Brasil é muito mais do que o Rio. Eu particularmente prefiro esse lugar aqui.

— Acho que eu concordo com você - disse Poseidon.

Enquanto eles andavam em direção ao quiosque mais próximo, Atena entrelaçou seus dedos nos de Poseidon por puro costume. O deus, no entanto, sorriu e levou sua mão até os lábios, e então deixou ali um beijo estalado. Ele não captou a reação que o gesto desencadeou em Atena, mas ela não o culpava. É claro que ele não tinha como saber que o beijo na mão era o modo como Jack sempre a cumprimentava, ou que essa marca estaria na mente de Atena para sempre. Por isso, ela se recompôs rapidamente e abriu um sorriso sincero em sua direção.

Os dois se acomodaram em uma mesa de ferro que ficava fora do quiosque, já que todas as outras estavam ocupadas. Seus movimentos eram acompanhados por dezenas de pares de olhos, alguns deslumbrados pela beleza sobrenatural que exalavam, outros cheios de ciúme por seus parceiros que viravam a cabeça como corujas para acompanhá-los. Atena não os culpava. Talvez devessem ter assumido uma aparência mais... Humana para visitar uma praia tão cheia.

Um garçom trajando apenas uma bermuda e chinelos se aproximou com um cardápio de plástico em mãos e o depositou sobre a mesa.

— Boa tarde, patrões - disse em um português desenvolto e cheio de sotaque, com um sorriso fácil enfeitando seu rosto. - Qual é o pedido?

Poseidon olhou para Atena, absolutamente perdido. Ele entendia perfeitamente a língua, é claro - uma das vantagens de ser um deus era entender qualquer língua em qualquer lugar -, mas não fazia do tipo de comida do lugar ou o que pedir. A deusa, no entanto, que nunca sofria de falta de informação, o socorreu no último instante.

— Um comercial com filé à parmegiana. - pediu também em um português impecável, e então se virou para o deus dos mares e voltou a perguntar em inglês: - O que você vai querer?

Poseidon deu de ombros, sorrindo.

— Você parece conhecer mais do que eu. Por que não escolhe?

Atena sorriu, se virou para o garçom e pediu um prato igual ao seu. O homem anotou o pedido e, depois de lançar um último olhar para Poseidon, se afastou de sua mesa. Atena esperou até que ele estivesse longe o suficiente para explodir em uma gargalhada tão estrondosa que boa parte dos clientes próximos viraram as cabeças para ver o que acontecia.

— O que foi? - Poseidon perguntou, um ligeiro sorriso de interesse repuxando seus lábios.

— O garçom estava te comendo com os olhos - Atena disse com a voz trêmula.

Poseidon deu de ombros, já sorrindo abertamente.

— Acontece quando se é absurdamente sexy, como eu.

— Aham - Atena se inclinou em sua direção com um sorriso cheio de malícia. - Deve ser por isso que todos esses homens estão me olhando.

Como Atena já esperava, Poseidon fechou a cara numa fração de segundo e virou a cabeça para todos os lados em busca dos tais homens que a olhavam. Atena desenrolou-se em outra gargalhada estrondosa.

— Bom, se eu não posso, você também não pode - Poseidon argumentou.

— Eu nunca disse que você não pode - Atena rebateu.

— Oh, ótimo. Vou chamar aquele garçom para ir em um canto comigo...

Atena fez um falso bico de tristeza.

— Estou decepcionada - ela disse.

— Por quê?

— Pensei que você fosse me chamar.

Antes que Poseidon pudesse elaborar uma resposta - que provavelmente viria cheia de malícia e acompanhada de outro convite para deixar o Olimpo de lado e passar o dia na cama -, o garçom voltou com seus pedidos. Ele lançou mais um olhar para Poseidon, tão obsceno que Atena se sentiu uma intrusa naquela cena, e perguntou muito sugestivamente se eles desejavam mais alguma coisa. Só quando o próprio Poseidon respondeu que não o homem se deu por vencido e saiu.

— Você acabou com o dia do pobre homem - Atena já sentia a barriga doer de tanto rir. - Eles estão em época de festa, você sabe. É a semana do carnaval. Geralmente é quando eles procuram... Qual seria o termo para isso?

— Eu conheço um - Poseidon sugeriu.

— Não comece - Atena o silenciou. - Digamos que eles procuram... Ficar. Nessa época eles costumam encontrar pessoas para ficar, já que eles geralmente fazem as festas na rua.

— Interessante - Poseidon comentou, olhando ao redor, muito curioso. - Não parece o tipo de lugar a que você costuma ir.

— Não costumo - Atena confessou. - Mas achei que você fosse gostar.

— Realmente gostei – Poseidon admitiu. – Algum motivo em especial para você ter me trazido aqui hoje?

Atena sentiu a desconfiança em sua voz, mas não estava disposta a dar o braço a torcer. Por isso, a deusa apenas deu de ombros e sorriu.

— Bem, nós nunca tivemos um segundo encontro. Talvez já estivesse na hora, não acha?

Poseidon estreitou os olhos, ainda desconfiado, mas não conseguiu encontrar nada para contradizê-la, então apenas concordou. Os deuses almoçaram em silêncio então, ao delicioso som da música brasileira e das ondas quebrando ao fundo.

                                                                    ∞∞∞

Algum tempo depois, Atena e Poseidon estavam de pé diante do palácio principal do Olimpo, as mãos entrelaçadas, como que em apoio mútuo. Seus sentimentos eram muito divergentes sobre aquele lugar. Atena, apesar de todo o trabalho que tinha, das brigas, das fofocas e das reuniões às três da manhã com Zeus, tinha o Olimpo como o lar em sua mente. Era onde havia passado toda a sua vida, e querendo ou não, o Olimpo sempre estivera ali para ela. Ela sempre tivera um local para retornar depois de uma batalha, um palácio para chamar de seu, uma lareira em torno da qual se reunia com sua conturbada família.

Já Poseidon tinha uma ideia bem diferente. O Olimpo foi, uma vez e por pouco tempo, seu lar. Após a derrota de Cronos, ele e seus irmãos viveram no novo Monte dos Deuses por aproximadamente dois anos, antes que fosse feita a partilha oficial da Terra. O deus não havia sido nominalmente expulso dali depois de receber o domínio dos oceanos, mas ficara claro, ainda que subentendido, para todos que ele não deveria mais estar naquele lugar. Assim, sem escolhas, ele se mudou para Atlântida, onde começou toda uma nova vida e fundou seu reinado. O Olimpo talvez trouxesse uma certa nostalgia para o deus – o Monte era, afinal, onde todas as reuniões com sua família aconteciam, assim como todas as batalhas, e o único lugar no planeta onde os inimigos dos deuses não conseguiam entrar. Era, para todos os efeitos, um porto seguro. Mas Poseidon não conseguia, de forma alguma, chamar o Olimpo de lar. Não, lar não era uma casa. Lar era para onde ele voltava todos os dias; lar era aonde ele tinha um povo para proteger; lar era onde ele passava noites sem fim tentando vencer uma guerra, era onde dormia por pura exaustão. Lar era Atlântida.

Ele não esperava que conseguisse convencer Atena a pensar assim. Sabia que a deusa tinha certo apego ao Olimpo e aos olimpianos, e entenderia completamente se ela decidisse continuar morando no Olimpo e exercendo suas tarefas ali. No entanto, não podia deixar de desejar, do fundo de seu coração, que ela escolhesse morar com ele. Mesmo que Atlântida fosse sua casa, Poseidon percebeu que os poucos dias que Atena passou ali iluminaram o lugar de um modo sem igual. Nem um dia sequer havia sido tedioso enquanto ela estava lá, e tudo parecia ter mais vida. Ele só conseguia imaginar o quão feliz seria se ela decidisse morar em Atlântida. Seus dias com certeza não seriam mais os mesmos.

Os deuses respiraram fundo quase que simultaneamente. Estavam prestes a encarar Zeus e reportar toda uma missão para ele, e essa tarefa não era encorajadora nem para Atena, que já estava acostumada a seguir esses protocolos com seu pai.

— Pronto? – ela perguntou para Poseidon.

Era uma pergunta retórica, é claro. Pronto ou não, Poseidon teria que entrar ali e cumprir seu dever. Mas ainda assim, o deus assentiu corajosamente e tomou a iniciativa, dando o primeiro passo para a frente. As portas duplas do salão dos tronos se abriram sozinhas, revelando um cômodo absolutamente vazio. Bem, os deuses tinham mais o que fazer além de ficarem sentados em cadeiras de ouro olhando para o nada em um domingo ensolarado de inverno. Era de se esperar – e inclusive era melhor – que não estivessem ali. Poseidon e Atena cruzaram o cômodo a passos lentos, nenhum dos dois ansioso para se encontram com o deus dos céus. Mas por fim, chegaram ao inadiável: estavam diante da porta do escritório de Zeus. Atena avançou corajosamente e deu duas batidas leves na porta. Alguns segundos depois, a voz arrastada atravessou a porta e chegou até eles:

— Entre.

A própria Atena abriu a porta e se adiantou para dentro do escritório. Poseidon vinha logo atrás, mas sua postura já mostrava que aquela conversa seria liderada por Atena e ele não falaria uma sílaba além do estritamente necessário com Zeus.

O deus dos céus ergueu os olhos com certo tédio no olhar – que logo se transformou em surpresa quando ele viu quem estava diante dele. Seu rosto estava cansado de uma forma que a deusa da sabedoria jamais havia visto: haviam olheiras profundas debaixo de seus olhos, e rugas bem visíveis em seu rosto, que aparentava estar velho naquele dia (embora Zeus normalmente escolhesse parecer um jovem de trinta anos). Ainda assim, sua feição se abriu completamente, e quem o olhasse poderia jurar que havia felicidade em seu rosto por registrar Atena de pé ali.

— Atena? Poseidon?

— Olá, pai – cumprimentou a deusa.

— Irmão – disse Poseidon secamente.

— Comecei a achar que vocês não voltariam mais – Zeus se inclinou em sua cadeira e desembocou a falar. – Vocês sumiram do mapa por três semanas. Procuramos vocês nos quatro cantos da Terra, e nenhum sinal. Pensamos até... – ele hesitou. – Pensamos até que vocês tivessem morrido.

— Estamos bem – Atena garantiu. – Podemos nos sentar para explicarmos tudo?

— Claro – Zeus esperou que os deuses se acomodassem nas cadeiras a sua frente, e no mesmo segundo questionou. – E então, onde diabos vocês estavam?

— Atena estava comigo – Poseidon respondeu quase que prontamente.

A deusa quis revirar o olho. Sabia que Poseidon odiava se dirigir à Zeus, então se havia dito aquilo, foi meramente movido pelo intuito de ver a reação do deus dos céus ao saber que Atena estivera em seu palácio aquele tempo todo. Ela mal acreditava que seria obrigada a lidar com aquele comportamento infantil com dois deuses de mais de dez milênios de idade.

Como esperado, Zeus arregalou os olhos perante aquela resposta, e cerrou os punhos involuntariamente.

— Aonde? – ele perguntou, e embora já soubesse a resposta, sua expressão foi quase cômica quando Poseidon respondeu:

— No meu palácio.

— Em Atlântida? – a voz de Zeus subiu uma oitava; o deus estava mortificado com a resposta, e claramente receoso com o que vinha a seguir.

— É óbvio – Poseidon respondeu, com um pequeno sorriso de triunfo no rosto.

Zeus parecia prestes a explodir o palácio inteiro – já era possível sentir a energia vibrando dentro do escritório –, tamanha era a aura de raiva que ele emanava, mas justo quando ele parecia estar no limite de seu autocontrole, o deus olhou para Atena, e não havia nenhuma tempestade que seus olhos azuis não fossem capazes de acalmar. Ele inspirou profundamente e, já com a voz mais branda, perguntou:

— O que vocês estavam fazendo lá?

— Estávamos... – Poseidon começou, mas Atena o interrompeu, sabendo que o quer que ele estivesse prestes a dizer, não poderia ser nada de bom.

— Deixa que eu respondo – disse a deusa. – Os titãs descobriram nosso esconderijo na casa de Afrodite e destruíram o lugar, então fomos forçados a ir para o palácio de Poseidon.

Atena reparou que Zeus encarava fixamente Poseidon, que retribuía o olhar, enquanto Atena explicava, e ela tinha a impressão de que nenhum dos dois estava ouvindo o que ela dizia. O deus dos céus só se virou para ela quando ela terminou de falar.

— O que Poseidon ia dizer para você tê-lo interrompido? – ele perguntou, extremamente desconfiado. - E por que vocês foram para Atlântida ao invés de vir para o Olimpo?

Ah não, foi o primeiro pensamento de Atena, sabendo exatamente o rumo que aquela conversa tomaria. A deusa já previa que fosse haver no mínimo uma discussão indireta entre seu pai e Poseidon, mas não imaginava que fosse ser por esse motivo, ou que começaria tão facilmente.

— Não sei o que ele ia dizer, apenas achei que seria melhor que eu respondesse – disse Atena, escolhendo cuidadosamente suas palavras. – E eu estava inconsciente por ter lutado com os titãs, por isso Poseidon me levou para...

— LEVOU MINHA FILHA INCONSCIENTE PARA O SEU PALÁCIO? – Zeus já não conseguia mais se conter, e se levantou ao bradar com Poseidon.

O deus dos mares, no entanto, permanecia incrivelmente calmo. Talvez porque Atena estivesse ali e ele não quisesse brigar com Zeus junto dela, mas sua voz era baixa, e sua postura, tranquila, quando ele respondeu:

— O que você queria que eu fizesse, Zeus? Que a abandonasse desacordada na ilha?

— Você devia tê-la trazido para cá – Zeus respondeu, ainda cheio de ira.

— Eu não queria voltar para o Olimpo antes de concluir a missão – dessa vez foi Atena quem respondeu. – Pareceria desistência.

— Como você poderia saber para onde estava sendo levada se estava desmaiada? – indagou Zeus.

— Pai – o tom de Atena era um alerta, e Zeus pareceu entender, porque fechou a boca e abrandou sua expressão. – Não precisa de tudo isso. Eu estou bem.

Zeus voltou a se sentar, parecendo tremendamente insatisfeito, mas contentado com a repreensão de Atena.

— Humpf. Atlântida ao invés do Olimpo. O cúmulo do absurdo – ele murmurou para si mesmo. – Mas afinal, vocês conseguiram concluir a missão ou não?

— Conseguimos – respondeu Atena, firme. – Matamos Eurínome e todos os seus seguidores ontem.

— Eurínome? – perguntou Zeus; algo que Atena já esperava, visto que a deusa da criação era pouquíssimo conhecida.

— Esposa de Caos – Atena esclareceu. – Ela estava revoltada pelo alcance de sua fama e se rebelou, mas conseguimos contê-la.

— Tudo bem – Zeus abriu e fechou os punhos continuamente; Atena, que o conhecia bem demais, sabia que ele fazia aquilo quando estava nervoso, e apreciava o fato de que ele estava tentando ao máximo se controlar.

A deusa não entendia a rivalidade entre seu pai e Poseidon; seu palpite era de que aquilo era algo natural entre irmãos, um tipo de competitividade quase infantil que eles carregavam há muito tempo. Mas apesar de não entender os motivos, a deusa entendia que a rivalidade existia, e tentava tomar cuidado para não estourar a linha tênue que continha as duas personalidades naquele momento delicado de confronto indireto. Ela tentava imaginar qual seria a reação de Zeus quando descobrisse que ela e Poseidon estavam “juntos”, por falta de um termo melhor. Ele provavelmente seria o primeiro deus grego da história a morrer de infarto, enquanto Poseidon seria o primeiro a morrer de rir. E ela estaria bem no meio. Atena não era de sentir pena de si mesma, mas naquele momento, ela honestamente sentia.

— O importante é que vocês conseguiram cumprir a missão – Zeus concluiu. – Agora só precisam passar para o papel todos os acontecimentos da missão. Não deixem nada de fora – a última frase fora definitivamente dirigida para Poseidon. – Vou dar a notícia aos outros deuses e mandar organizar uma festa para comemorar a volta de vocês hoje.

— Tudo bem – Atena assentiu, aliviada porque aquilo estava chegando ao fim. – Podemos ir?

— Podem – respondeu Zeus, mas não antes de dar seu olhar mais mortífero para Poseidon.

O deus dos mares teve a audácia de abrir um sorriso para o irmão antes de deixar o cômodo acompanhado de Atena.


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