Universos Particulares escrita por Carolena Bardo


Capítulo 1
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo

Olá, bem vinds a esta história curtinha!
Espero que possam gostar. Deem também uma conferida no romance que a originou. Lá, nossa personagem principal, Natália ou Natie, tem um papel secundário, mas muito relevante. Só entrarem neste link aqui: https://fanfiction.com.br/historia/669404/Clareana/
Cada capítulo será dividido em subcapítulos, por assim dizer. Este é mais introdutório, para conhecermos a vida da Natie.
Então é isso; boa leitura!



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Ser humano: a criação divina mais fascinante, dentre tantas espécies
vivas, habitantes do Planeta Terra. Um ser dotado de tamanha habilidade,
inteligência e capacidade de adaptação. Nenhum outro animal se iguala a
esse mamífero em particular. Com seu potencial, o ser humano pode
organizar, planejar, decidir sua vida a tal ponto de transformá-la em um
universo a parte dos outros, das outras vidas; do universo inteiriço em
si.
O inconveniente seja, talvez, a atração gravitacional desses
universos particulares. Eles se unem, envolvem-se; interferem uns nos
outros e, por conseguinte, interferem no universo inteiriço.
Apropriando-me de palavras mais simplórias, quiçá mais adequadas: com
todo o poder de criação e escolha que temos, os outros têm o poder de se
meterem em nossas vidas.
E por algum motivo grotesco, não explicado pela Ciência, o meu
universo particular me parece mais atrativo e "interferível" do que o
normal.

XXX

I.

Iniciemos por meus pais. Esse casal simpático e influente,
constituído por uma microempresária, dona e funcionária de um dos mais
conceituados salões de estética da cidade de Campos Fortunato; e um empresário
maior, responsável por uma rede de madeireiras, estendida por grande
parte da Região dos Lagos, Rio de Janeiro.
A filha desse casal tão bem sucedido, a qual responde por Natália
Fernandes Peçanha, jamais poderia ser menos do que
uma jovem bem sucedida: namorada do filho de um banqueiro e melhor amiga
da herdeira de um grande escritório de contabilidade. Agora, pergunte a
ela se a dita cuja escolheu os rumos de seu universo particular. No
direito a mim atribuído, sendo a própria dita cuja, respondo: não!
— Você tem que fazer um relaxamento nesse cabelo, Natie!
— E eu não pedi sua opinião, Evie!
Apresento-lhes Evelyn: minha melhor amiga, por maioria de votos. Com
a mesma idade, nascidas no mesmo hospital. Por sorte, não no mesmo dia.
Nossas mães, comadres, uniram-nos pelos laços do batizado: Carla, mãe da
Evelyn e minha madrinha; Susana, madrinha da Evelyn e minha mãe. O mesmo
se repete com Fábio e Amauri, este segundo mais entendido por mim como
pai.
Evie e eu crescemos juntas. Vivíamos uma na casa da outra.
Compartilhávamos roupas e brinquedos, estudávamos na mesma sala de aula
por todos os anos letivos, assistíamos tevê juntas, viajávamos juntas
com nossas respectivas famílias. Sempre foi assim. Contudo, foi a
pré-adolescência, exibindo suas garras pequenas e discretas, mas muito
pontiagudas, que nos acordou a uma realidade, até então, imperceptível:
Evelyn e eu éramos muito, muito distintas.
Quando ganhamos nosso primeiro livro, um presente da escola,
senti-me a criança mais sortuda e importante do mundo. Olhem só para
mim, eu dizia. Sei ler! E não apenas isso: posso ler essas folhas
coloridas aqui, não só olhar os desenhos, e recontar toda a história,
sem precisar ler de novo! Mais ainda: posso encenar toda a
história, em vez de apenas narrá-la. E se ninguém quisesse apreciar meu
espetáculo, coisa muito comum, não faz mal! Apresento-o para mim mesma,
diante do espelho do guarda-roupa.
— Que coisa chata, Natie! — Evelyn costumava dizer. — Eu, hein?
Fica aí fingindo que é uma pessoa do livro! Parece que é maluca!
— Eu acho legal... — Defendia-me, amuada.
— Mas não é legal nada! É chato! E ler também é chato!
Eu nunca achei que ler pudesse ser uma coisa chata. Corroborando
isso, aos doze anos, ganhei o primeiro volume da saga Harry Potter de
presente. Dos meus pais? Ah, claro que não. "Ler é muito importante e
construtivo!! Mas é melhor que você se dedique mais aos livros da escola
e menos a essas coisas que só servem pra passar o tempo." Não, não. O
presente viera de uma prima afastada. Espremida em seus catorze anos, a
garota já mergulhara em muitas aventuras fictícias.
— Esse daqui não é um dos que eu mais gosto. — Ela me disse, ao
entregar o embrulho. — Mas acho a sua cara. Você vai se amarrar.
Estava certa. Eu me amarrei. Mesmo obtendo, dias depois, sua
confissão de que odiava aquele livro. Para mim, foi uma das melhores
obras. Uma viagem em forma de palavras. Aliás, não uma viagem: uma
aventura.
Qual é a graça, porém, de desfrutar sozinha de tão maravilhosa
aventura? Eu queria, queria muito, que minha melhor amiga, minha irmã,
aventurasse-se comigo. Com esse desejo, mostrei-lhe o livro. Contei-lhe
a história. Li alguns trechos. E o que obtive com esse esforço?
— Você é muito estranha, Natie! — Pois é, esse comentário.
— Eu não sou nada estranha! Harry Potter é muito legal! — Os anos
garantiram-me uma certa atitude. Nada de ficar amuada. Não mais.
Não perdi o hábito de interpretar personagens diante do espelho.
Conforme adquiria mais livros, fossem comprados com a mesada garantida por meu pai,
fossem emprestados de colegas, aumentava a minha gama de personagens e
meu tempo no espelho. Um ritual secreto, por trás de portas fechadas.
Não queria mais ser tachada de estranha, maluca, dentre outros adjetivos
pouco amistosos vindos de Evelyn.
Não era estranha ou maluca, afinal. A escola nos levou, mais de uma
vez, a peças de teatro. Quando ganhei um computador pessoal, aos treze
anos, descobri a magia de assistir a vídeos na internet. E eu
buscava, incessante, por outras peças. Assistia e assistia de novo,
porque lá estava, não uma, mas várias pessoas que ganhavam a vida fazendo
exatamente a mesma coisa que eu praticava no quarto. A diferença? Além
de receberem dinheiro por isso, essas pessoas fingiam ser quem não era
em cima de um palco, sendo observadas por outras tantas pessoas que
gostavam disso.
— Evie, o que você acha de teatro? — Arrisquei a pergunta em uma
das inúmeras vezes que dormimos juntas.
— Sei lá, — deu de ombros. — Legal, eu acho.
Legal, ela achava. Mas não legal o suficiente para assistir uma
adaptação de Les Miserables, representada em Londres, cujo elenco contava
com adolescentes da nossa idade, talvez um ou dois anos a mais. Ok, entendi. Nem tudo na vida, eu podia
compartilhar com Evelyn.
Ela não nutria esse pensamento: sempre fazia questão de que
reservássemos um momento das nossas vidas para me apontar, ou
pessoalmente, ou por meio de fotos, os garotos que achava bonitos.
Separava os filmes que mais gostava para assistirmos juntas. Sanava as
dúvidas do dever de casa comigo e, quando necessário, oferecia-se para
fazer o mesmo por mim. Discordávamos veementemente no que dizia respeito
a garotos; seus gostos para filmes eram muito destoantes dos meus; e eu,
definitivamente, tinha melhor desempenho do que ela nos estudos. Ainda
assim, amava-a. Oh, só meu coração sabe o quanto. Não queria magoá-la.
Queria sempre proporcionar as melhores experiências a ela. Mesmo que ela
não se importasse em fazer o mesmo por mim. Estávamos juntas há tanto
tempo... Não conseguia imaginar minha vida sem a irritante participação
dela.
Considerando toda aquela teoria de universos particulares que se
envolvem e interferem uns nos outros, o universo de Evelyn quase se
fundia o meu. Emanava energias muito fortes. A interferência era
inevitável. Às vezes, minha atmosfera, sobrecarregada, permitia a
passagem de algumas influências. Outras vezes...
— Mas seu cabelo não tá bonito, Natie! Muito armado! Tem que fazer
um relaxamento pra abrir mais os cachos, sabe?
— É. Vou ver se faço mesmo.
Outras vezes, eu projetava a ilusão de sucesso em suas investidas,
só para as interromper. Eu não faria relaxamento coisa nenhuma. Nada de
acabar com meu cabelo, só para ceder a uma pressão social ridícula. Meu
cabelo poderia aparentar o capacete do Dart Vader; o problema seria única
e exclusivamente meu. Porque, até onde minhas faculdades mentais me
permitiram observar, meu cabelo em nada influi em meu caráter ou
comportamento. Mas, por algum motivo desconhecido, isso não penetrava no
cérebro da minha amiga. E de muitas outras pessoas. Que fazer, senão
manter o que me pertence, da forma que me apetece, sem gastar energia
discutindo?
— E aí, animada pra ficar mais velha? — Trocou de assunto,
referindo-se ao meu aniversário de dezesseis anos, a menos de um mês.
— Claro! — Menti. Se eu respondesse que não via a menor diferença
em trocar um dígito no momento de revelar minha idade, seria bombardeada
com perguntas, tentativas de convencimento e outras coisas que me fariam
perder a paciência.
— Ai, eu tô doida pra fazer dezesseis anos!
— Por quê? — Mas claro, eu sempre me traio. Digamos que guardar
minhas opiniões dentro da boca é uma tarefa necessária à conserva da
saúde; mas árdua demais para mim.
— Ah, cara, sei lá... Mais perto dos dezoito! — E soltou seu
risinho cheio de dentes e crenças na abertura de um portal mágico para
outra dimensão, fato ocorrido aos dezoito anos.
— Cara, na boa? — Comecei. — Eu acho que...
Meu celular me salvou de destravar um gigantesco monólogo em Evelyn.
Ainda bem. Que besteira eu estava prestes a fazer! Ergui a mão.
— Alô? — Atendi a chamada de um número desconhecido.
— Oi, gostosa! — A voz, entretanto, era muito conhecida.
— Sua sapatão filha de uma... — Recebi a gargalhada do telefone e o olhar reprovador da amiga ao mesmo tempo. — Eu tô com saudades, sua coisa! E que nuumero é esse?
— Chip novo, gata. E olha, eu sei que você me ama! — Ainda gargalhava. — Mas relaxa, vou
aí dar um beijo na sua boca.
— Olha, o beijo eu dispenso, mas você vir aqui é uma boa, viu?

XXX

II.

Iniciemos por meus pais. Esse casal simpático e influente,
constituído por uma microempresária, dona e funcionária de um dos mais
conceituados salões de estética da cidade de Campos Fortunato; e um empresário
maior, responsável por uma rede de madeireiras, estendida por grande
parte da Região dos Lagos, Rio de Janeiro.
A filha desse casal tão bem sucedido, a qual responde por Natália
Fernandes Pessanha, jamais poderia ser menos do que
uma jovem bem sucedida: namorada do filho de um banqueiro e melhor amiga
da herdeira de um grande escritório de contabilidade. Agora, pergunte a
ela se a dita cuja escolheu os rumos de seu universo particular. No
direito a mim atribuído, sendo a própria dita cuja, respondo: não!
— Você tem que fazer um relaxamento nesse cabelo, Natie!
— E eu não pedi sua opinião, Evie!
Apresento-lhes Evelyn: minha melhor amiga, por maioria de votos. Com
a mesma idade, nascidas no mesmo hospital. Por sorte, não no mesmo dia.
Nossas mães, comadres, uniram-nos pelos laços do batizado: Carla, mãe da
Evelyn e minha madrinha; Susana, madrinha da Evelyn e minha mãe. O mesmo
se repete com Fábio e Amauri, este segundo mais entendido por mim como
pai.
Evie e eu crescemos juntas. Vivíamos uma na casa da outra.
Compartilhávamos roupas e brinquedos, estudávamos na mesma sala de aula
por todos os anos letivos, assistíamos tevê juntas, viajávamos juntas
com nossas respectivas famílias. Sempre foi assim. Contudo, foi a
pré-adolescência, exibindo suas garras pequenas e discretas, mas muito
pontiagudas, que nos acordou a uma realidade, até então, imperceptível:
Evelyn e eu éramos muito, muito distintas.
Quando ganhamos nosso primeiro livro, um presente da escola,
senti-me a criança mais sortuda e importante do mundo. Olhem só para
mim, eu dizia. Sei ler! E não apenas isso: posso ler essas folhas
coloridas aqui, não só olhar os desenhos, e recontar toda a história,
sem precisar ler de novo! Mais ainda: posso encenar toda a
história, em vez de apenas narrá-la. E se ninguém quisesse apreciar meu
espetáculo, coisa muito comum, não faz mal! Apresento-o para mim mesma,
diante do espelho do guarda-roupa.
— Que coisa chata, Natie! — Evelyn costumava dizer. — Eu, hein?
Fica aí fingindo que é uma pessoa do livro! Parece que é maluca!
— Eu acho legal... — Defendia-me, amuada.
— Mas não é legal nada! É chato! E ler também é chato!
Eu nunca achei que ler pudesse ser uma coisa chata. Corroborando
isso, aos doze anos, ganhei o primeiro volume da saga Harry Potter de
presente. Dos meus pais? Ah, claro que não. "Ler é muito importante e
construtivo!! Mas é melhor que você se dedique mais aos livros da escola
e menos a essas coisas que só servem pra passar o tempo." Não, não. O
presente viera de uma prima afastada. Espremida em seus catorze anos, a
garota já mergulhara em muitas aventuras fictícias.
— Esse daqui não é um dos que eu mais gosto. — Ela me disse, ao
entregar o embrulho. — Mas acho a sua cara. Você vai se amarrar.
Estava certa. Eu me amarrei. Mesmo obtendo, dias depois, sua
confissão de que odiava aquele livro. Para mim, foi uma das melhores
obras. Uma viagem em forma de palavras. Aliás, não uma viagem: uma
aventura.
Qual é a graça, porém, de desfrutar sozinha de tão maravilhosa
aventura? Eu queria, queria muito, que minha melhor amiga, minha irmã,
aventurasse-se comigo. Com esse desejo, mostrei-lhe o livro. Contei-lhe
a história. Li alguns trechos. E o que obtive com esse esforço?
— Você é muito estranha, Natie! — Pois é, esse comentário.
— Eu não sou nada estranha! Harry Potter é muito legal! — Os anos
garantiram-me uma certa atitude. Nada de ficar amuada. Não mais.
Não perdi o hábito de interpretar personagens diante do espelho.
Conforme adquiria mais livros, fossem comprados com a mesada garantida por meu pai,
fossem emprestados de colegas, aumentava a minha gama de personagens e
meu tempo no espelho. Um ritual secreto, por trás de portas fechadas.
Não queria mais ser tachada de estranha, maluca, dentre outros adjetivos
pouco amistosos vindos de Evelyn.
Não era estranha ou maluca, afinal. A escola nos levou, mais de uma
vez, a peças de teatro. Quando ganhei um computador pessoal, aos treze
anos, descobri a magia de assistir a vídeos na internet. E eu
buscava, incessante, por outras peças. Assistia e assistia de novo,
porque lá estava, não uma, mas várias pessoas que ganhavam a vida fazendo
exatamente a mesma coisa que eu praticava no quarto. A diferença? Além
de receberem dinheiro por isso, essas pessoas fingiam ser quem não era
em cima de um palco, sendo observadas por outras tantas pessoas que
gostavam disso.
— Evie, o que você acha de teatro? — Arrisquei a pergunta em uma
das inúmeras vezes que dormimos juntas.
— Sei lá, — deu de ombros. — Legal, eu acho.
Legal, ela achava. Mas não legal o suficiente para assistir uma
adaptação de Les Miserables, representada em Londres, cujo elenco contava
com adolescentes da nossa idade, talvez um ou dois anos a mais. Ok, entendi. Nem tudo na vida, eu podia
compartilhar com Evelyn.
Ela não nutria esse pensamento: sempre fazia questão de que
reservássemos um momento das nossas vidas para me apontar, ou
pessoalmente, ou por meio de fotos, os garotos que achava bonitos.
Separava os filmes que mais gostava para assistirmos juntas. Sanava as
dúvidas do dever de casa comigo e, quando necessário, oferecia-se para
fazer o mesmo por mim. Discordávamos veementemente no que dizia respeito
a garotos; seus gostos para filmes eram muito destoantes dos meus; e eu,
definitivamente, tinha melhor desempenho do que ela nos estudos. Ainda
assim, amava-a. Oh, só meu coração sabe o quanto. Não queria magoá-la.
Queria sempre proporcionar as melhores experiências a ela. Mesmo que ela
não se importasse em fazer o mesmo por mim. Estávamos juntas há tanto
tempo... Não conseguia imaginar minha vida sem a irritante participação
dela.
Considerando toda aquela teoria de universos particulares que se
envolvem e interferem uns nos outros, o universo de Evelyn quase se
fundia o meu. Emanava energias muito fortes. A interferência era
inevitável. Às vezes, minha atmosfera, sobrecarregada, permitia a
passagem de algumas influências. Outras vezes...
— Mas seu cabelo não tá bonito, Natie! Muito armado! Tem que fazer
um relaxamento pra abrir mais os cachos, sabe?
— É. Vou ver se faço mesmo.
Outras vezes, eu projetava a ilusão de sucesso em suas investidas,
só para as interromper. Eu não faria relaxamento coisa nenhuma. Nada de
acabar com meu cabelo, só para ceder a uma pressão social ridícula. Meu
cabelo poderia aparentar o capacete do Dart Vader; o problema seria única
e exclusivamente meu. Porque, até onde minhas faculdades mentais me
permitiram observar, meu cabelo em nada influi em meu caráter ou
comportamento. Mas, por algum motivo desconhecido, isso não penetrava no
cérebro da minha amiga. E de muitas outras pessoas. Que fazer, senão
manter o que me pertence, da forma que me apetece, sem gastar energia
discutindo?
— E aí, animada pra ficar mais velha? — Trocou de assunto,
referindo-se ao meu aniversário de dezesseis anos, a menos de um mês.
— Claro! — Menti. Se eu respondesse que não via a menor diferença
em trocar um dígito no momento de revelar minha idade, seria bombardeada
com perguntas, tentativas de convencimento e outras coisas que me fariam
perder a paciência.
— Ai, eu tô doida pra fazer dezesseis anos!
— Por quê? — Mas claro, eu sempre me traio. Digamos que guardar
minhas opiniões dentro da boca é uma tarefa necessária à conserva da
saúde; mas árdua demais para mim.
— Ah, cara, sei lá... Mais perto dos dezoito! — E soltou seu
risinho cheio de dentes e crenças na abertura de um portal mágico para
outra dimensão, fato ocorrido aos dezoito anos.
— Cara, na boa? — Comecei. — Eu acho que...
Meu celular me salvou de destravar um gigantesco monólogo em Evelyn.
Ainda bem. Que besteira eu estava prestes a fazer! Ergui a mão.
— Alô? — Atendi a chamada de um número desconhecido.
— Oi, gostosa! — A voz, entretanto, era muito conhecida.
— Sua sapatão filha de uma... — Recebi a gargalhada do telefone e o olhar reprovador da amiga ao
mesmo tempo. — Eu tô com saudades, sua coisa! E que nuumero é esse?
— Chip novo, gata. E olha, eu sei que você me ama! — Ainda gargalhava. — Mas relaxa, vou
aí dar um beijo na sua boca.
— Olha, o beijo eu dispenso, mas você vir aqui é uma boa, viu?

II.

O envolvimento dos universos particulares também atua em terceiros.
Vejamos o próximo universo a orbitar próximo ao meu: Amanda. A tal prima
afastada que odeia Harry Potter. A tal "sapatão filha de uma...". A que
viria me visitar em breve.
Com "em breve", quero dizer "duas horas depois da ligação". Não que
essa informação me tenha sido dada.
— Quando você vem me ver, coisa? — Perguntara.
— Ah, qualquer dia desses eu apareço aí. — Mais risada. - Antes do
seu aniversário. Relaxa, prima!
Amanda é despojada. Cada movimento dela diz "eu realmente não me
importo com o que você pensa de mim". E sua vida reflete essa ideologia:
lésbica, filha de evangélicos conservadores, sobrinha de católicos não
praticantes, mais conservadores ainda. Membro dessa família de bem
sucedidos, Amanda leva a vida entre o trabalho escravo em uma empresa de
Call Center e o curso de Arquitetura e Urbanismo, conquistado a duras
penas, através de um vestibular. Seus pais esperavam, provavelmente, uma
dona de casa, servente do Senhor, e heterossexual. Ela não se importava
nem um pouco. E eu a admirava baldes por isso.
Eu precisaria de oito páginas para descrever, em precisão, a cara da
minha mãe ao atender o interfone e saber que sua sobrinha, nada querida,
tocava-o. Foi uma coisa oscilante, meio desprezo, meio "eu preciso
fingir que gosto dessa garota, pelo bem da boa vizinhança".
— Mandy tá aí? Cara, a Mandy tá aí!
Já a cara da minha mãe, destinada a mim, ao me ver saltitando em
direção à porta, essa eu posso descrever em uma palavra: raiva. "Nem
pense", seus olhos diziam. E como aquele olhar me desconsertou um pouco,
tive a decência de saltitar menos e abrir a porta com mais solenidade.
— Prima! — Ali estava ela, os braços abertos.
— Mandy, sua coisa! — Aproveitei-os, mergulhando num abraço cheio
de saudades.
Há um ano atrás, um dia posterior ao meu aniversário de quinze,
Amanda me apresentou a uma amiga. Ela estava "a fim de mim". Nunca me
relacionara com uma mulher antes. Paulo e eu havíamos nos desentendido, em
algum momento da festa, por motivos bobos; ele também viajara com o pai
naquele mesmo dia. Que mal ia fazer? Desse modo, às escondidas, eu
arrisquei um beijo com a tal garota.
Não foi uma experiência de todo negativa. A garota
beijava bem. Com gentileza e e afobação, ambas na medida certa. Mas quem
já beijou os lábios de um homem e de uma mulher sabe a grande diferença:
suavidade demais. Curvas demais, maciez demais... não era disso que eu
gostava.
Não gostava a meu próprio usufruir, por algum motivo orgânico ou o
que fosse. Ainda vejo casais de meninas, ou até mesmo de meninos,
desfilando de mãos dadas, trocando beijos e carinhos, olhares
amorosos... Seja na realidade ou na ficção... E acho a coisa mais linda.
Creio, por isso, que não seria correto classificar-me como homofóbica.
Os apelidos dirigidos a Amanda eram duplamente inapropriados.
Primeiro, já entendemos bem que minha relação com as preferências
sexuais alheias são das melhores. Segundo, vejamos o visual dela, em
especial, nesse dia de bela surpresa: uma blusa rosa, decotada, exibindo
uma metade generosa dos seus seios fartos e morenos. Shorts curtos e
justos, valorizando as coxas e as nádegas. Sapatilhas pretas, baixas. Os
cabelos cacheados, escuros, caídos nos ombros e emoldurando o rosto
oval, bem maquiado. Eu não preciso me relacionar com o mesmo sexo para
admitir que 1, minha prima em nada corresponde a esse termo chulo e
carregado de estereótipos; e 2, a bendita é muito, muito bonita.
— Boa noite, boa noite... — Ela cumprimentou, sorridente, aos meus
pais e Evelyn, recebendo suas respostas vazias.
— Gente, eu vou andando, tá? — E o membro não oficial da família
rapidinho tratou de se retirar.
— Ainda tá cedo, querida! — Mesmo que minha mãe preferisse que o
membro sanguíneo indesejado o fizesse.
— Não, tia... Eu vou andando. Amanhã tô aí, tá?
E após beijar a mim e meus pais — Amanda ganhou, e muito mal, um
aceno de cabeça — saiu. Melhor para mim. Mataria as saudades de uma das
pessoas que mais admiro, se não a pessoa que mais admiro, com
privacidade.
Tudo bem: não tanta privacidade. Sentamo-nos no sofá da sala, onde
nos pusemos a par das novidades, recebendo olhares constantes dos donos
da casa.
Falei da escola, dos livros e filmes que apreciara, das poucas
coisas chatas da vida. E claro, em dado momento, o nome do meu namorado
precisou surgir.
— Você tá com esse cara ainda? — Nesse instante, ela me
interrompeu.
— Tô, ué! Por que não estaria?
— Cara, você tá com ele há... Sei lá! Quanto tempo?
— Sem contar as idas e voltas? — Afirmou. — Dois anos.
Cobriu a boca com a mão e abafou o que possivelmente seria um mal
palavreado. É interessante observar o quanto minha prima age diferente
quando a sós comigo e na presença dos nossos pais.
Balançou os ombros e relaxou a expressão:
— Desse jeito, vai acabar casando com ele.

XXX

III.

A atração e o envolvimento dos universos particulares tem tal poder
atribuído, a ponto de forçar a interação entre outros universos
particulares. Comprovamos isso com meu relacionamento amoroso
extremamente duradouro: como já citado, meus pais são pessoas bem
sucedidas e influentes. Eu tenho um namorado bem sucedido e influente,
vindo de uma família igualmente bem sucedida e influente. Legal. E como
já citado antes também, grande parte do rumo do meu universo particular,
entenda-se vida, eu mesma não escolhi. Não diretamente, ao menos.
Seria impossível eu dizer como e quando Paulo e eu nos conhecemos.
Assim como Evelyn, ele simplesmente sempre esteve em minha vida; um
integrante da família. Nossos pais, inclua os da minha amiga, estavam
sempre reunidos: churrascos na casa de um deles, viagens em conjunto,,
um almoço aqui, um jantar ali... Consequência? Éramos muito próximos. O
trio inseparável: Paulo, Evelyn e eu.
As piadinhas da família eram tão comuns, tão frequentes e existentes
há tanto, que só notei o quão constrangedoras, incômodas, podiam
ser, depois de muito, muito tempo. "Qual menina o Paulo vai escolher pra
namorar?" Ouvíamos. O assunto "namoro" era terminantemente proibido
com meu pai ou o pai da Evelyn; "Um dia, sua filha vai ter um
namoradinho e..." Estava feito. Espere um olhar cortante, uma quebra
brusca do assunto, ou, na pior das hipóteses, um belo de um fora. A não
ser que o namoradinho em questão fosse Paulo. Aí não tinha olhar
cortante, ou quebra do assunto, ou fora; não. Nesse caso, seu brinde
seria um sorriso iluminado, de orelha a orelha: "O Paulo é tão bonzinho!
Que rapaz direito, bonito, inteligente..."
Eu tenho essa forma de narrar os fatos, de falar sobre como o
comportamento dos nossos universos particulares foram manipulados por
outros. Talvez isso leve a crer que eu tenho verdadeira repulsa a esses
fenômenos. Bom, depende: agora eu tenho mesmo. Mas eu não sou, agora, a
mesma que era antes. Resultado? Paulo era o homem mais bonito, mais
incrível, mais maravilhoso e mais certo para ser meu futuro namorado.
Ainda que muito próximo de duas amigas, Evelyn, como a "romântica" que
era, não apenas respeitou minha paixão, como a incentivou. O fim desse
romance não podia ser outro.
— Nem brinca com isso, Mandy! — Foi a resposta que dei à minha
prima, após sua observação.
Porque Paulo ainda era lindo, incrível, maravilhoso em muitos
aspectos. Também não me imaginava sem ele em minha vida. Entretanto,
ele não sabia das minhas artimanhas defronte do espelho; não sabia que
eu queria praticá-las em cima de um palco. Ele falava do futuro: uma
faculdade de administração, muito dinheiro, filhos correndo pela casa...
— É, eu tinha pensado em, sei lá, me dedicar a arte... Teatro,
essas coisas... — Arrisquei certo dia.
— Isso é ótimo, amor! A gente pode levantar um dinheiro legal com a
empresa do seu pai e investir na sua carreira de artista. Legal, né?
Não, nada legal. Eu estava falando de cursar teatro em uma companhia
grande! Trabalhar nessa companhia grande. Representar papéis, fazer
turnês... E eu não sou nenhuma sonhadora. É preciso trabalho duro, muito
suor e um bocado de sorte para se obter tal lugar na arte. Sinceramente,
eu não via como, ou por quê, encaixar a madeireira do meu pai nos meus
sonhos. Mas Paulo entendia isso?
— Relaxa, amor... A gente vai planejar direitinho as coisas, tá
bom?
Não, não entendia. Essa era a resposta padrão para quando ele queria
dizer: vamos fazer tudo do meu jeito.
Acredito que isso tudo consiga justificar a resposta que dei a
Amanda, referente à sua troça em dizer que Paulo e eu acabaríamos nos
casando.
— Não dá pra entender vocês... Se tá assim, toda estranhada com
ele, por que vocês não terminam?
Boa pergunta. Você já teve que viver com algo durante toda a sua
vida? Se respondeu "sim", então sabe o porquê da minha resposta:
— Porque eu gosto dele, Mandy! Tipo, eu sei que um dia a gente vai
desandar por causa dessa diferença de visão... Mas é aquilo...
— Você tá insegura de abrir mão dele.
— Não, não... Eu gosto dele mesmo. Gosto de estar com ele. — Ainda
que as palavras dela tenham sido gravadas a fogo em meu cérebro, a serem
avaliadas em outro momento.


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Notas finais do capítulo

Eai? xD Comentem, por favor! Comentários são muito importantes para eu saber o que está bom, e manter; o que está ruim, e evitar. Quem aí tiver algum conhecimento em elaboração de capas, por favor, manda uma MP! Preciso de uma ajuda para fazer uma capa! E não se esqueçam de visitar Clareana! E é isso, e é isso... Nos vemos no próximo capítulo!



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