De cabeça escrita por Drafter


Capítulo 2
O fim




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A mala caiu com um estrondo no chão. Estava tão pesada que Robyn, em um descuido, soltou a alça a meio caminho da porta de casa, seguido de um palavrão. Suspirou, tentando arrumar forças para suspender de novo a bagagem e seguir adiante com o plano. Sabia que se parasse para pensar demais, corria o risco de desistir — e desistir era o que ela menos queria naquele momento.

Tinha decidido embarcar para Manitoba poucas horas atrás e, em vez de esperar pelos voos do dia seguinte, saiu à cata de algum ainda naquela noite. Isso significava que passara a tarde inteira procurando por uma passagem aérea de última hora para sua cidade natal, agendando um hotel para passar a noite e rebatendo os argumentos da irmã de que ela estava sendo precipitada como sempre e que era um absurdo ficar em um hotel quando podia muito bem ficar na casa dela. Sendo bem honesta, Robyn também achava estranho ter que procurar hospedagem no lugar onde havia nascido e crescido, mas não estava com a menor vontade de ficar na casa de Paloma. A irmã já era casada, tinha seus filhos e uma rotina completamente diferente da dela. Não queria incomodar — esse era o seu pretexto, e insistiu nele até a irmã finalmente dar o braço a torcer e aceitar a vontade de Robyn. A verdade, no entanto, é que temia se sentir uma intrusa no meio daquela gente que ultimamente só via pela tela do computador ou do celular. Preferia manter a ilusão de que ainda eram uma família.

A segunda opção apresentada por Paloma fora ainda pior: ficar na casa da mãe. Como iria suportar dormir e acordar naquele lugar abarrotado de memórias? Robyn chegou a ralhar com a irmã quando ela fez a sugestão e por pouco não desligou o telefone na mesma hora. Já estava nervosa o suficiente com a oferta limitada de voos das companhias aéreas locais, não precisava de mais motivos para perder a paciência.

Estava decidida: ficaria em algum hotel qualquer, ao menos nos primeiros dias. Depois do funeral, poderia resolver o que faria da vida. Ao menos nessa frente estava tendo mais sucesso do que com as empresas de aviação. Sim, Oldhaven era uma cidade minúscula nos confins de Manitoba, e a cadeia hoteleira local não era grandes coisas, mas em compensação, o fluxo turístico também não, o que garantia uma oferta razoável de quartos disponíveis. Foi com facilidade que reservou uma suíte por sete dias em um hotel no centro, com banheiro privativo e vista para a praça — a mesma praça, ela pensou, se divertindo, onde passara tantos dias da sua juventude.

Por fim, depois de horas, conseguiu um voo tarde da noite para Winnipeg, onde pegaria um trem noturno até Oldhaven. Foi o melhor que conseguiu tão em cima da hora — e pelo menos arranjara um assento do tipo leito, com reclinação 180 graus, para a viagem de trem, o que a permitiria ao menos tentar dormir um pouco.

Robyn suspirou, cansada, terminando de imprimir todos os tíquetes e comprovantes de reservas. Olhou no relógio e se deu conta de que ainda havia algo a fazer. Não poderia ir embora sem falar com ela. 

Pegou o telefone novamente, discando um número local de cabeça. Podia mandar uma mensagem, mas precisava ter certeza de que a amiga estaria disponível, e não queria passar pela agonia de ter que esperar pela resposta.

— Me encontra no Starbucks? Preciso falar com você — Falou, assim que Cassie atendeu. Foi assim, sucinta. Não queria explicar nada pelo telefone. Sabia que a amiga iria a encher de perguntas, então que ao menos conversassem pessoalmente.

Assim que a jovem do outro lado da linha confirmou, Robyn correu para trocar de roupa e passar uma maquiagem rápida. O café a que se referia era perto de sua casa, a dois blocos de distância, e ela poderia ir a pé, como sempre fazia. Sabia que a amiga estava saindo do trabalho naquela hora, e provavelmente, chegaria antes dela, mas não se importou.

Caminhou sem pressa pelas ruas do bairro, aproveitando o sol do verão de Vancouver, um sol que ela talvez fosse sentir saudades. Não que Oldhaven não fosse ensolarada, apenas que... bem, Manitoba nunca seria British Columbia quando o quesito era a previsão do tempo. Ali, naquela cidade costeira, a grama era mais verde do que jamais havia visto, e quando o astro-rei brilhava, parecia iluminar Robyn inteira por dentro. 

No Starbucks, Cassie já estava esperando a amiga com uma bebida em mãos. Se cumprimentaram com um abraço demorado — tão demorado que Cassie chegou a estranhar.

— Espera, também preciso de um café — pediu Robyn, se dirigindo para a fila do caixa e acenando para a amiga ir sentar em uma das mesas próximas a janela — Já estou indo!

Era fim da tarde, mas naquele Starbucks, a fila sempre era pequena. Esse era um dos motivos que a levavam a adorar o lugar. Era como se fosse uma cafeteria exclusiva, um lugar quase privativo onde podia conversar em paz sempre que precisava de uma pausa na rotina. E Robyn adorava essas pequenas pausas. Tanto que tinha dias que chegava a ir duas ou até três vezes ali. Conhecia praticamente todos os baristas de nome, e eles a conheciam de volta. Sabiam seu drinque de cor, e, em algumas ocasiões, já preparavam de antemão quando a viam na fila, ao que Robyn retribuía com uma gorjeta bem gorda. Era o relacionamento perfeito.

— O de sempre, Robyn? — o rapaz jovem do caixa perguntou, sorridente. Ela devolveu o sorriso e trocou meia dúzia de palavras descontraídas enquanto fazia o pagamento. Logo, estaria rumando em direção à mesa de Cassie enquanto bebericava seu latte preferido.

— O que aconteceu? Você foi tão esquisita no telefone...

— Não queria dar spoiler — ela respondeu com uma piscadela, arrancando uma risada da amiga.

Robyn sorriu de volta, agradecida por ter alguém para conversar naquele momento. Cassie era sua amiga desde que arrumara o emprego naquele conceituado escritório de arquitetura de Vancouver. Trabalharam juntas por quatro anos, até Robyn ser mandada embora na semana passada.

— É o seguinte... — Robyn começou, o semblante agora mais sério — Estou voltando para Oldhaven.

Cassie arregalou os olhos, admirando a amiga com surpresa.

— Por que isso do nada? Se for por causa do emprego, já falei que tenho alguns amigos da faculdade que podem te ajudar...

— Minha mãe morreu, Cassie — ela soltou, de supetão, deixando a companheira sem palavras.

As duas se olharam por alguns instantes, Cassie ainda de boca aberta, no meio da frase que ficou no ar perante a revelação de Robyn.

— E-eu sinto muito... — ela gaguejou, surpresa — quando foi isso?

— Paloma me ligou hoje cedo. Ela já estava doente, eu te disse... parece que nas últimas semanas vinha piorando e acabou não resistindo — contou. A mãe de Robyn vinha sofrendo de um câncer no pâncreas pelos últimos cinco anos e, apesar do tratamento inicial ter gerado bons resultados, ela tivera uma recaída recentemente que a deixava prostrada em uma cama o dia inteiro, sem forças. Segundo Paloma, os próprios médicos não andavam muito otimistas.

— Eu sinto muito, Robyn. De verdade — Cassie falou, apertando a mão da amiga e a olhando firme nos olhos, em sinal de solidariedade.

— Eu sei, obrigada — respondeu, com um sorriso sincero — Estou indo esta noite para lá. Ajudar minha irmã com os preparativos para o enterro e essas coisas, sabe como é...

A sua frente, a amiga concordou com a cabeça, enquanto sorvia mais um pouco do seu café.

— Mas você volta... né?

Robyn desviou o olhar, e abaixou o rosto em direção ao copo de papel com o latte ainda quente em suas mãos. Levou a bebida à boca, tomando um gole intencionalmente demorado.

— Não sei... — falou por fim.

A amiga não escondeu a surpresa, e elencou mil argumentos para convencer a ex-colega de trabalho de que a vida em Vancouver era muito mais promissora do que naquela cidadezinha do interior. O pior de tudo era que Robyn sabia e concordava com todos eles. Talvez ela acabasse voltando no final das contas, ou então indo para outro lugar — como Calgary ou Toronto — onde tivesse mais oportunidades de emprego. Não queria desperdiçar seus talentos de arquiteta em um fim de mundo como Oldhaven, isso era óbvio. Por alguma razão, no entanto, a única coisa que conseguia pensar era ir para a cidade natal. Era quase como que se a morte da mãe e a demissão fossem um aviso, um sinal de que as coisas talvez não fossem ser do jeito que imaginava, e que deveria dar um tempo para enxergar com clareza o passo a dar em seguida.

Mesmo depois de se despedir de Cassie, a conversa continuava rondando a sua cabeça. E era por isso que não podia perder muito tempo racionalizando em cima do assunto. O hotel já estava reservado, as passagens, compradas, e agora o táxi a estava esperando na rua para levá-la ao aeroporto.

Resoluta, Robyn ergueu a pesada bagagem do chão e retomou o passo firme. Desceu pelo elevador e entrou no carro que a aguardava na porta do prédio. Passou todo o trajeto olhando pela janela, em uma despedida silenciosa da cidade que fora sua casa pelos últimos sete anos.

Sabia que aquele era o fim da vida que conhecia.


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Notas finais do capítulo

Apesar de Vancouver, Manitoba e British Columbia serem lugares reais, a cidade de Oldhaven é completamente fictícia.



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