A Terra e o Mar - o encontro de dois mundos escrita por Lu Rosa


Capítulo 3
Dois




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/682389/chapter/3

Londres - Inglaterra - Setembro de 1591

As portas da taverna moveram-se num vai e vem quando o homem passou por elas. Os olhos azuis esquadrinharam o local como se procurassem por alguém. As sobrancelhas uniram-se quando um brilho de reconhecimento passou por seus olhos. Ele encaminhou-se para um canto da taverna.

— O senhor é mestre Swan? - perguntou

Um homem barbudo com cachimbo à boca nem moveu a cabeça para responder:

— Depende de quem procura. O que quer?

— Soube que o senhor recruta homens para Sir Thomas Cavendish.

— E se for?

— Quero embarcar em sua próxima viagem. Dizem que ele vai partir sem data para voltar.

O homem ergueu a cabeça da caneca de vinho e fitou o homem à sua frente.

— E o que faz você pensar que é bom para embarcar conosco?

— Lutei ao lado de Sir Francis Drake. Sobrevivi ao confronto com a Armada espanhola e me tornei marinheiro. Fiquei ao lado dele até agora. Voltei à Inglaterra e descobri que minha esposa e filho haviam morrido no último inverno. Não me resta mais nada aqui.

O velho Swan já tinha visto homens destruídos pelo mar ou pelas guerras. Mas nada se comparava ao brilho gélido daqueles olhos. Aquele homem procurava a morte. E um homem assim podia ser azar ou sorte num navio. Azar por que um homem assim podia ser motivo de encrenca. Ou sorte por que ele não temeria nada. Seria capaz das maiores façanhas.

— Muito bem, rapaz. Acho que você tem bastante experiência em navegar e eu não costumo errar em meus julgamentos. Não me crie problemas ou acabará na ponta de um laço no mastro principal, entendeu?

— Sim senhor. Onde eu me apresento?

— No píer norte. Sairemos ao raiar do sol. Não se atrase. Já estamos por demais atrasados e não esperaremos ninguém. - Swan tirou o cachimbo da boca e cuspiu. - Qual é o seu nome rapaz?

— Thomas Horton.

— Está bem, Thomas Horton. Não faça me arrepender de ter cruzado seu caminho.

— Não o farei senhor. - disse Thomas já dando as costas para Swan.

O homem que estava sentado ao lado de Swan ergueu o chapéu que lhe encobria o rosto.

— Você acha que fez bom negocio contratando esse homem, Swan?

— Com certeza. Milorde. Esse homem é um fantasma. Não um moribundo. Ele será de muita serventia.

O que Swan não disse era que estava muito difícil para contratar marinheiros de boa qualidade. E que Cavendish estava levando muitos de seus pares para a viagem. Dessa forma quem iria fazer o trabalho pesado?

Thomas Cavendish pegou a pequena garrafinha de vinho que trouxera consigo e bebeu um gole. Ele era um lorde, nunca tomaria vinho naquela taverna.

— Espero que você esteja certo Swan. Se não fará companhia a ele no mastro principal.

***

Thomas saiu da taverna e sentiu o ar morno da noite londrina no rosto. Seus passos ecoavam na noite escura. Ele andava a esmo. Não tinha lugar para ir. A casa em que havia sido tão feliz já não existia. A casa onde tinha vivido com Alice...

Sem perceber seus passos o levaram para o cemitério da pequena igreja onde havia se casado com ela, onde seu filho tinha sido batizado e onde eles agora repousavam lado a lado no chão duro.

Thomas se aproximou da lápide e leu:

Alice Mary Horton

1572 - 1590

Rudolph Charles Horton

1588 - 1590

"Amada esposa e amado filho"

Ele abriu a sacola que carregava e tirou uma garrafa de vinho barato. Sentou-se ao lado da lápide e bebeu um gole fazendo careta quando o liquido intragável passou por sua garganta.

— Você disse que me esperaria Alice. Você disse. - ele apontou para a lápide. - Mas você me deixou. E ainda levou nosso filho. Ingrata! - tomou mais um gole da bebida.

— Não. Você não é ingrata... Você é a criatura mais doce que Deus pôs nesse mundo. - continuou Thomas em seu monólogo. - Você encheu minha vida de alegria e paz. Eu não soube retribuir tanto amor. O mar me chamava e eu o atendi deixando você

— Eu não te merecia. Todos diziam isso. E você balançava a cabeça com aquele sorriso doce e desmentia todo mundo. E agora eu não posso mais viver sem você. É por isso que eu vou partir Alice. Vou te procurar onde você estiver. E eu vou achá-la, nem que eu morra tentando. Vou me jogar nos braços da morte se ela puder me entregar a você. Meu anjo. Você é meu anjo. Minha Alice...

Ele se abraçou a lápide e chorou a perda de seu amor.

***

Mas na manhã seguinte, já refeito da noite insone, Thomas foi apresentar-se ao mestre Swan, no píer norte.

Quando passava em frente ao seu antigo navio, Thomas encontrou alguns ex-companheiros de armas.

— Ei, Horton! Veio pegar seu antigo cargo de volta como contramestre?

Swan, que estava perto, ficou surpreso e parou o que fazia. Aquele rapaz tão novo era contramestre de Drake?

— Não. Vou embarcar com Sir Thomas Cavendish.

— Sério? Porque navegar com o segundo se você pode navegar com o primeiro? Vamos Horton... Temos certeza que se você falar com Drake ele te coloca no cargo de novo. O tal de Cousin não vale um ovo.

— Não amigos. O que Cavendish pode me oferecer eu nunca poderei pedir a Drake.

— O que é? Dinheiro, fama, mulheres? Ora, isso Francis Drake pode te dar também.

Os marinheiros não perceberam, mas a cada frase o rosto de Thomas ia se fechando cada vez mais.

— Não é isso que eu quero. - ele fez uma pausa e os homens o olham em expectativa. - Eu quero a morte, senhores. Isso ele não pode me oferecer. Boa sorte a vocês. - ele desejou pegando sua sacola e se distanciando. Alguns marinheiros fizeram disfarçadamente o sinal da cruz embora fossem protestantes. Cruzar com um homem que procurava a morte nunca era de bom augúrio.

Swan recepcionou o novo contratado.

— Ora veja só. Você veio, não é Horton? - Swan tirou uma baforada do cachimbo. - Pode começar por ali. - ele indicou uma parte do convés. - Logo os outros homens chegarão.

— Sim senhor. - Thomas já ia saindo quando Swan o chamou.

Ele voltou-se.

— Horton, é verdade o que eu ouvi? Que você era contramestre de Francis Drake?

— Um dos contramestres, senhor Swan. Numa frota como a de Sir Francis, havia muito homens.

— E você não quis continuar com ele? Sabe que aqui você será como qualquer um dos outros.

— Sei disso, senhor. Mas não me importo. - Thomas olhou para o cais atrás dele e para os prédios além. - Tudo que eu quero é sair daqui o mais rápido possível.

Eles não tiveram mais chance de conversar, pois os outros embarcados começaram a chegar e o cais começou a apinhar de gente.

Uma carruagem puxada por quatro cavalos abriu caminho entre a multidão. Sir Thomas Cavendish foi saudado pela multidão e por alguns nobres que estavam ali para ver os navios partirem.

Acenando para a multidão, Cavendish saiu da carruagem. Recebeu as bênçãos de um clérigo e subiu na nau capitânia Leicester.

— Olha só ele... Se sentindo o próprio deus dos mares... - comentou um marinheiro próximo a Thomas.

— Você já viajou com ele? - perguntou outro marinheiro.

— Eu não. Estava com Edward Fenton. Esse sim era um corsário de valor. Causamos o terror nas Américas católicas. - o homem deu uma risada - Dava prazer de ver aqueles papistas correndo com suas imagens de um lado para o outro.

Thomas se afastou do grupo, desgostoso. Nunca concordaria em atacar vilarejos. As pessoas tinham o direito de viverem em paz. Agora, atacar soldados em navios espanhóis era diferente. Era uma guerra. A melhor esquadra vencia. Com certeza ele teria muito que aprender e desaprender com suas novas companhias.

***

Dois meses. Dois meses nesse inferno quente e úmido, pensou Thomas. A travessia do Atlântico não estava sendo fácil para ninguém. Os nobres que acompanhavam Cavendish era os que mais sofriam, pois não estavam acostumados com a dureza da vida em navio. Nem ele, que já navegava há muitos anos, não estava suportando o calor dos trópicos.

A alimentação estava escassa e a água potável nem se falava. Thomas estava com saudade da organização da frota de Francis Drake. Eles também tinham dificuldades, mas Drake sempre sabia lidar com isso, o que não acontecia com Cavendish que se mostrava tirânico e implacável.

Como a tripulação do Leicester era de pelo menos dois nobres para cada marinheiro, a soldadesca era obrigada a trabalhar dia e noite, sem descanso. Junte trabalho excessivo mais o desconforto dos trópicos e a fome, e você tem um barril de pólvora prestes a explodir.

Cavendish já havia mandado açoitar alguns marinheiros por insubordinação e dois já tinham sido enforcados por faltas mais graves.

— Cavendish está perdendo o controle... - comentou Samson, um dos marinheiros, parando ao lado de Thomas.

Horton continuou a enrolar o cordame, impassivelmente.

— Se não conseguirmos chegar logo a algum lugar, esse navio vai explodir. - respondeu Thomas.

— Os homens estão inquietos. Os mais experientes têm que manter a calma pelos novatos.

Samson tinha sido companheiro de Thomas a bordo do Defiance um dos navios de Francis Drake. Tanto um quanto o outro ficaram surpresos ao se encontrarem a bordo do Leicester.

Thomas ia responder ao companheiro quando um grito irrompeu no ar.

— Galeão de bandeira espanhola a estibordo, Senhor!

Os homens correram para a amurada do navio.

— Por São Jorge! - exclamou Samson. - E não é que é mesmo! - ele olhou para Thomas com os olhos brilhantes.

— Vai começar a brincadeira, Horton!

— É o que parece. - comentou Thomas.

Cavendish olhou para seu imediato.

— Senhor Swan?

— Senhor? - respondeu Swan.

— Vamos mostrar nossos cumprimentos à eles. Preparem os canhões.

— Sim senhor! Canhões à postos.

Os homens correram para carregar os canhões.

— Canhão um pronto, senhor!

— Canhões dois e três prontos, senhor!

— Canhão quatro a postos, senhor!

— Canhões prontos e carregados, capitão. - informou Swan. - Qual o alvo, senhor? Proa ou popa?

Cavendish baixou a luneta que usava. Um sorriso sarcástico desenhou em sua face.

— Na bandeira, Swan. Acerte o mastro.

— Canhão um. Mirar no mastro da bandeira!

— Na mira, senhor.

— Fogo! - gritou Cavendish.

O canhão disparou e o mastro da bandeira foi reduzido a pedaços. No silencio que se seguiu, no Leicester todos viram a bandeira espanhola flutuar no ar antes de atingir o oceano.

O alarido dos ingleses foi ensurdecedor. Com certeza os espanhóis haviam ouvido a festa dos inimigos ao ver a bandeira espanhola ser tragada pelo mar.

O galeão espanhol disparou um tiro, mas o projétil somente atingiu a água a direita dos ingleses.

— Oh. Eles querem conversa! - debochou Cavendish provocando o riso de seus homens. - Senhor Swan... Atire a vontade. Da popa à proa.

Swan virou-se para os canhoneiros.

— Disparar canhões! Fogo!

A cada disparo dos ingleses, um pedaço do navio espanhol voava pelos ares.

— Cessar fogo! Virar a estibordo! Vamos abordá-los! - ordenava Cavendish.

— Sim capitão.

Agora não havia nenhuma prostração no navio inglês. O navio espanhol havia sido cercado pelos navios ingleses sem possibilidade de fuga.

Os homens corriam de um lado para o outro preparando a abordagem.

Foi quando Thomas viu um rapaz de uns quinze anos, abaixado entre os canhões agora silenciosos.

— Barney? Barney, o que está fazendo ai? - perguntou quando o rapaz tirou as mãos dos ouvidos e olhou para ele. Os olhos escuros de medo.

— Senhor Horton... Eu nunca participei de uma batalha. Estou apavorado. - disse envergonhado.

Thomas abaixou-se ao lado dele.

— Olha, eu também era um rapazote quando participei da minha primeira batalha no mar. E vou repetir para você o que eu também ouvi. "Peça perdão à Deus pelo que vais fazer, mate o inimigo sem piedade e reze para que haja bebida e mulheres no céu caso tenha chegado a sua vez de morrer."

O rapazinho deu um sorriso às palavras de Thomas.

— Quem disse isso ao senhor?!

— Bess de Hardwick, quem mais?

O sorriso de Barney alargou-se. Bess de Hardwick, a condessa de Shrewbury, era a mais famosa dama da Rainha Elizabeth I.

— Vamos lá, Barney. Ficarei a sua esquerda. - Thomas estendeu a mão ao rapaz ajudando-o a se levantar. Desembainhou a sua espada e, quando Barney desembainhou a dele, cruzou sua espada à do rapaz. - Vamos honrar nossa Rainha e roubar alguns tesouros.

— Vamos! - assentiu Barney pegando um cabo e seguindo os outros homens na abordagem.

Thomas sentiu um olhar sobre ele e virando-se para trás viu que Cavendish havia presenciado toda a conversa. O capitão fez um sinal de consentimento e partiu para a abordagem.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A Terra e o Mar - o encontro de dois mundos" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.