A Terra e o Mar - o encontro de dois mundos escrita por Lu Rosa


Capítulo 12
Onze




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O capitão Cocke reuniu no Roebruck, depois do ataque inicial, o que podia ser chamado de segundo escalão. O alarido dos piratas ainda continuava, saqueando e queimando.

  - Agora que dominamos a cidade, vou reunir os lideres dela e mantê-los como reféns. Juntamente com as mulheres e as crianças. Cansados e com fome, darão até a alma para se livrarem de nós. Amanhã sir Cavendish chegará com o resto de nossa frota.

  - O senhor sabe o que virá a seguir, capitão? – perguntou um dos marinheiros.

  - Não sei o que Cavendish pode decidir de hoje para amanhã. As decisões dele mudam com a direção do vento. Apenas uma coisa me preocupa.

  Os homens aguardaram ele completar seu pensamento.

  - O selvagem que fugiu. Com certeza ele trará reforços. Temos que ficar de olho. - ele abriu um mapa que estava sobre a mesa.  - a cidade tem duas fronteiras: o canal pelo qual entramos e por terra. Além de Santos, ainda há a Vila de São Vicente. Se ele foi para lá, espero que Cavendish não demore muito para seguirmos viagem.

  Ele correu o dedo para cima no mapa, atingindo a vila de São Paulo de Piratininga.

  - Agora, se os santos nos ajudarem e ele tiver ido por aqui, trará bem mais reforços, mas demorará mais tempo. Aquela jovem é perigosa. Bem mais do que eu esperava. Teremos que ficar de olho nela.

  Alguns murmúrios de expectativa elevaram-se entre os homens. Claro que todos, sem exceção haviam notado a bela jovem. Por alguma razão desconhecida, Thomas não queria que nenhum deles chegasse perto dela.

  Thomas aprumou-se arrumando a arma sobre o ombro.

  - Ficarei de vigia essa noite junto com alguns homens. Aqueles papistas estão com tanto medo que não esboçarão nenhuma reação. Basta darmos alguns berros, e os separarmos. Ficarão com galinhas em noite de tempestade.

  Os homens riram com a comparação. Cocke olhou para aquele que Cavendish havia descrito como sombrio e calado. Mas corajoso e leal.

  - Pois bem, Horton. Destaque alguns homens que não estejam bêbados e dispense os que ficaram na igreja. Eles também têm direito de participar da festa.

  - Sim senhor. – Horton se preparou para sair e pegar mais munição.

  - Horton. – Cocke o seguiu.

  Thomas voltou-se para o capitão.

  - Senhor?

  - Cavendish me contou a sua estória. Sinto por sua mulher e seu filho. Mas eu vi o quanto você ficou perturbado durante o ataque na igreja. Não se preocupe, filho. Deus não irá castigá-lo por causa de um bando de papistas

  Thomas sentiu-se aliviado pelo capitão pensar que o temor a Deus tinha sido a causa de sua perturbação.

  - Eu ficarei mais tranquilo quanto a isso, senhor. – ele deu um passo em direção ao arsenal.

  - E Horton... Também achei a moça bela. Mas cuidado. Dizem que as sereias também são belas, mas elas podem te levar para o fundo do mar. – o capitão completou rindo.

  Thomas sentiu o rosto esquentar e achou melhor pensar que era de vergonha.

***

  Leonor terminava de amarrar uma atadura na mão de um jovem quando sentiu que a tocavam pelo ombro.

  - Vosmecê não parou um minuto. Tem que descansar. – Era D. Eugenia de semblante tão cansado quanto o da jovem.

  - A senhora que deveria estar descansando, D. Eugenia. Eu estou bem. A atividade não me deixa pensar no que está acontecendo lá fora. Mas a senhora tem razão. Venha, vou arrumar um lugar para deitarmos.

  Leonor esticou o corpo para trás para relaxar os músculos doloridos por estar abaixada muito tempo. Seu lindo vestido branco tinha manchas vermelhas que ela nem se lembrava de onde eram. Como um conforto mútuo, ela afagou a pequenina mão de D. Eugenia.

  Elas andaram entre os corpos deitados. Famílias inteiras deitadas juntas para protegerem-se. Casais com as mãos entrelaçadas. Mães com seus filhos no colo ou agarrados às saias.

  Ao chegarem perto do altar, as duas sentaram-se e Leonor encostou suas costas contra a sólida pedra que servia de altar e indicou um espaço ao seu lado para D. Eugenia.

  - Deite-se D. Eugenia. E coloque a cabeça em meu colo, assim ficará um pouco mais confortável.

  A velha senhora deitou-se de lado e colocou a cabeça no colo da jovem. Distraidamente, Leonor pôs-se a acariciar a cabeça de cabelos grisalhos prematuramente.

  O silêncio agora reinava. Mas um silêncio agourento, sombrio, que dava medo. De alguma forma, as mulheres que estavam na igreja se sentiam mais seguras do que as que tinham ficado fora. Como será que estavam Mãe Maria e as outras criadas? Ela só esperava que Agoirá não tivesse feito nenhuma loucura para defendê-las.

  Como se o pensamento nele o atraísse como imã, ela viu uma sombra mover-se.

  - Moça Leonor...

  - Agoirá! O que fazes aqui. E João Guilherme?

  - Ninguém buliu com ele, moça Leonor. Todos bem na casa.

  Leonor soltou um suspiro de alívio.

  - Como estão as coisas lá fora?

  - Muita fumaça, moça Leonor. Muita briga também. Agoirá moveu-se nas sombras, assim ninguém vê Agoirá. Ele tira moça Leonor daqui.

  - Não posso ir e deixá-los a mercê desses facínoras. E é melhor que se vá Agoirá. Eles não podem te pegar aqui. Vá e cuide de João Guilherme, já que mandei Igaracê atrás de meu pai.

  - Sim, moça Leonor, Agoirá vai, mas volta pra tirar moça Leonor daqui.

  - Espero que até lá esses canalhas nos libertem.

  Silencioso como sempre, Agoirá se mesclou a escuridão e se foi. Leonor estava mais tranquila pelo fato do irmão estar a salvo, assim como as criadas e Mãe Maria.

  Quando ela começou a ser vencida pelo cansaço, um tumulto tomou conta da igreja. O bando de piratas entrou chutando os homens e berrando muito. As crianças acordaram assustadas e algumas mulheres também gritavam assustadas.

  Com deboche, eles as puxavam pelo braço e as abraçavam para logo depois as soltarem. O pirata que parecia ser o líder daquele grupo logo anunciou.

  - Todos acordados. Quero falar com os lideres da vila.

  Sem esperar um segundo chamado, Dom Brás ergueu-se e deu um passo a frente.

  - Então é comigo que tens que falar.

  - Não haverá mais ninguém? Somente este senhor? – Thomas olhou para os presentes.

  Desgostosa, Leonor viu que seu noivo declinava do chamado do pirata. Mas isso não devia surpreendê-la, a moça pensou, ela devia saber que seu noivo só pensaria em salvar a própria pele.

  Mais uns cinco homens colocaram-se ao lado de Dom Brás. Ela ardeu de vontade de colocar-se ao lado deles também, mas na ausência de seu pai, somente Martim teria esse direito. Ela era apenas uma frágil mulher.

  - Muito bem. Sou o imediato Thomas Horton. Eu e meus homens ficaremos na guarda de vosmecês. - sua pronuncia do português era boa e todos puderam entendê-lo sem que ele tivesse que erguer muito a voz.

  - O meu comandante, Sir Thomas Cavendish, chegará amanhã e até lá manterei os senhores aqui. Suas esposas e filhos poderão ir para casa. Mas somente quando o dia clarear. –           Thomas fez uma pausa.  - As ruas estão muito perigosas no momento.

  - Quanta consideração...  - Leonor disse em voz baixa.

  Thomas tinha quase certeza que a jovem dissera algo em relação a ele. Mas não conseguira entender o que. Ela estava ao lado de uma pequena senhora de preto. Os cabelos que ele se lembrava de estarem presos, agora caiam soltos numa cascata escura sobre os ombros e costas. As mãos estavam displicentes uma sobre a outra na frente do corpo. Ele franziu o cenho ao ver manchas de sangue sobre o tecido branco.

  Enquanto ele andava de um lado para outro falando aos líderes, mesmo não querendo, Leonor teve que admirar o porte firme. As calças justas terminavam em botas de cano longo e a camisa não escondia o peito forte e as costas largas. O cabelo escuro estava preso por uma fina tira de couro. Durante o confronto dos dois, ela estava muito enraivecida para notar os detalhes, mas não se esquecera dos olhos dele, azuis como o mar que se estendia na frente do seu lar em Rio Santo.

  Os homens dele separavam sob a mira de armas e espadas os homens das mulheres. Muitas choravam abraçadas aos seus maridos e filhos rapazes, mas não havia muito que se fazer.

  Isabel beijou Paulo e recebeu um beijo carinhoso na testa de seu pai e de seu irmão. E foi altiva juntar-se a Leonor e D. Eugenia. Assim como a esposa de Jose Adorno, Catarina. As mulheres do povo enxugavam as lágrimas e postavam-se de cabeça erguida atrás das mulheres dos líderes de sua vila.

  E assim reunidos em dois grupos homens e mulheres esperaram o amanhecer. Entre os grupos estavam os piratas, sentindo sobre eles olhares de ódio e rezas de maldição.

  E, quando as primeiras luzes da aurora passaram por entre as frestas da igreja, os piratas abriram as portas para que os cativos pudessem sair, ficando somente os homens mais importantes da vila de reféns.

  Murmúrios horrorizados elevaram-se na manhã morna. Até que um grito de dor e revolta ecoava quando um dos cativos reconhecia entre os corpos caídos um parente ou um amigo.

  As ruínas de uma guerra unilateral ainda fumegavam. Os choros eram ouvidos quando alguém reconhecia entre os escombros a sua moradia.

  Isabel, na ausência de seu pai e de seu marido, assumiu a liderança.

  - Vamos reunir um grupo. Alguns homens junto com Padre Marçal irão procurar por sobreviventes e levá-los ao hospital.

  Padre Marçal apressou-se em ajuntar alguns homens e cumprir as ordens de Isabel.

  Leonor aproximou-se dela.

  - D. Isabel, se vosmecê permitir eu vou reunir alguns panos e levar para o hospital para servir de ataduras.

  - Sim, Leonor. Faça isso. - Isabel sabia que D. Constancio também lidava com tecidos.

  Leonor pegou na mão de D. Eugenia e as duas encaminharam-se para a casa dos Olinto da Siqueira.

  A porta da frente estava escancarada, fazendo as duas entreolharem-se. Leonor soltou a mão de D. Eugenia e correu para dentro da casa.

  - João Guilherme? Mãe Maria?  - ela começou a percorrer os cômodos térreos.

  - João Guilherme? Mãe Maria? Onde estão vosmecês? – quando Leonor começou a subir as escadas, Mãe Maria veio da cozinha puxando João Guilherme pela mão.

  O menino correu para a irmã e abraçou-se a ela.

  - Leonor... Onde estava? Tive tanto medo de perder vosmecê.

  - E eu tive medo por vosmecê também.

  O menino ficou branco ao ver as manchas rubras no vestido da irmã.

  - O que é isso? Estás ferida?

  - Não te inquietes. Isso não é meu. Mas tive que ajudar alguns feridos na luta da igreja.

  - Eram muitos os piratas? E eles eram muito maus? Vosmecê teve medo? - perguntou o menino curioso.

   Leonor permaneceu pensativa por alguns segundos. Se eles eram maus? Talvez... Mas de um ela não tivera medo.

  A voz chorosa de Mãe Maria interrompeu seus pensamentos.

  - O que é isso, minino? Deixe sua irmã quieta. Não basta o que minha minina passou? Vem minina Leonor, vou cuidar de vosmecê.

  - Não, Mãe Maria. - Leonor bateu afetuosamente na mão da índia. - Cuide de D. Eugenia. A pobre está que não se aguenta. Prepare um banho para ela e a coloque para descansar. Eu ainda tenho algumas coisas a fazer. D. Isabel pediu a ajuda de todos para os feridos.

  A índia Carmo aproximara-se timidamente do grupo enquanto Genoveva e Mãe Maria levavam uma quase desfalecida D. Eugenia para o quarto distribuindo ordens aos outros índios.

  - Carmo... – Leonor viu a jovem índia parada na porta como se não soubesse o que fazer. – Que bom que estás bem. Preciso que me ajude com alguns tecidos. Precisamos levar ataduras e unguentos para o hospital. Venha, João Guilherme. Poderás nos ajudar também. – e sumiu para dentro da casa a procurar bons tecidos para cortar.

  Quando, vindo de seu comercio, D. Constancio chegou a sua casa, Leonor mais duas índias e João Guilherme cortavam os tecidos.

  - O que estás a acontecer aqui?

   Leonor não interrompeu o trabalho limitando-se a responder.

  - Estamos a fazer ataduras para levar ao hospital.

  - E pensas que sairá desta casa? Onde está minha irmã?

  Leonor ergueu a cabeça.

  - Vossa irmã está descansando. Ela já não tem idade para passar por provações como a dessa noite.

  - E quem está a comandar a casa? Quero banhar-me e comer.

  - As criadas já deixaram comida pronta. E só servir-se. E eu não penso em sair. Eu vou levar o que D. Isabel de Proença precisa.

  - Não vais sair! - D. Constancio chutou um dos tamboretes onde uma das índias estava sentada. A pobre caiu no chão. Leonor foi até ela e a ajudou a se levantar.

  - Carmo, pegue esses e continue com os cortes. Leve João Guilherme com vosmecê.

  - Mas eu não quero ir...  - choramingou João Guilherme.

  - Vosmecê vai sim com elas.

  Ela permaneceu em silencio enquanto as índias e o menino saiam da sala.

  - Bom... - ele esfregou as mãos com satisfação. Nada como um ataque direto para amedrontar uma mulher. - Vou levar em consideração teu ato tresloucado na igreja como resultado de forte nervoso. Mas agora obedeces a mim.

  - Nunca! Não tive ato tresloucado nenhum. Antes ele fora baseado na coragem que eu recebi de meu pai. E se fora tresloucado como vosmecê o considera, antes ele do que vossa covardia.

  - Me ofendes? Vosmecê se esquece do que posso fazer?

  - Não. Não me esqueci de vossa vil ameaça, meu noivo. Caso-me com vosmecê, mas não terás o meu respeito. Dizes que és importante, mas donde está a tua coragem?

Constancio aproximou-se perigosamente de Leonor. Mas ela não teve medo.

  - Oito homens estão naquela igreja por que não tiveram medo de expor o peito frente à espada do inimigo. E vosmecê? O que fez? Escondeu-se atrás das saias minha e de vossa irmã!

  A vista de D. Constancio tornou-se vermelha ao ouvir Leonor chamar-lhe a atenção. Esbofeteou-a com vontade assassina. A jovem virou-se para trás caindo de encontro a uma mesa. Sentiu como se seu rosto tivesse-lhe soltado da cabeça, tal era a dor que sentia.

  Uma sombra entrou na sala e ele sentiu o ar lhe faltar.

  - Agoirá, não! - Leonor pediu ainda no chão. A pena para um índio que matasse um branco era a morte. - Solte-o, não vale a pena.

  O índio soltou D. Constancio que ficou a tossir e arfar.

  Ela levantou-se e olhou bem no fundo dos olhos dele.

  - Tens coragem para bater-me ou achincalhar vossa irmã, como muitas vezes eu vi. Mas não é homem de encarar outro homem. Tenha fé em minhas palavras: Serei tua esposa, mas hei de te transformar a vida num inferno.

  Dito isso ela saiu da sala, com Agoirá logo atrás. D. Constancio foi até uma mesa e entornou uma dose de cachaça num copo que bebeu de um gole só. Quem diria que a deusa haveria de se tornar uma harpia. Bem, ele poderia aguentar a desfaçatez dela até o casamento. Depois disso... Quem disse que um raio não caía duas vezes no mesmo lugar?


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