Kidou Senshi VP Gundam - Os Vigilantes escrita por Moonlight Butterfly


Capítulo 8
Contos de Inverno




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(Música: Tema de Arcadia)

As sessões do RPG ficavam cada vez mais longas e empolgantes. Havia dias em que os Vigilantes varavam a noite jogando e conversando aleatoriamente.

— Então, os Vigilantes salvaram o mundo mais uma vez! - exclamou Nix, empolgado, no término da sessão; era quase dez horas da noite, e a sessão havia começado de manhã. Era uma missão difícil, em que os jogadores precisavam despertar poderes relacionados com as emoções e as cores do arco-íris para combater os inimigos alienígenas: seus poderes normais não seriam suficientes.

— Estou morrendo de fome – exclamou Edward – será que aquela padaria 24 horas está aberta? O pão que tem aí não dá para todos.

— Está sim – confirmou Keisha, após usar sua intuição Newtype para pressentir o fato.

— Ótimo – exclamou Karma – vou pegar a moto e comprar algo para nós. Naquela padaria fazem umas broas alemãs ótimas.

— Vá, mas não traga broa, traga pão normal – retrucou Estel. - Broa é ruim. É como se fosse.. um pão inferior, de segunda classe.

— Não, você está errado – replicou o garoto loiro. - A Broa é a forma evoluída do Pão, algo mais saudável e elaborado, com mais personalidade.

— É só mais um tipo de Pão. Está subordinada ao Pão, em um lugar inferior da hierarquia.

— Pode achar o que quiser, mas quem vai sair sou eu e eu vou trazer broa.

— Não, traga pão!

— Broa!

— Pão!

— Broa!

— Pão!

— Broa!

— Pão!

— Broa!

— Pão!

— Broa!

— Pão!

— Broa!

— Pão!

Karma e Estel ficaram um bom tempo naquela discussão, empolgando-se; os outros membros presentes apenas observavam, sem entender direito o que estava acontecendo.

— Quem sabe eu faça uma tese de mestrado sobre este tema – ironizou Rebecca – efeitos alucinógenos do sono.

Ninguém percebeu que, durante esse tempo, Daiya foi para a cozinha terminar um bolo que estava fazendo. Estava aguardando que este esfriasse para poder desenformar, colocar o recheio e a cobertura. Levou a bandeja do doce para a sala, com alguns pratinhos e garfos.

— Pessoal, enquanto vocês decidem se vão trazer broa ou pão… alguém quer bolo?

— BOLO! - gritou a maioria dos jogadores, levantando-se rapidamente e fazendo fila para pegar seu pedaço. Mas nem isso fez a “disputa” parar:

— Então você se rende, vil membro da República do Pão?

— De jeito nenhum! O Reino da Broa irá sucumbir e não irá nos dominar!

— Vamos decidir então por combate. Vou verificar se o simulador está aberto.

— Espere aí… você quer que lutemos AGORA, Karma? São dez horas da noite!

— Então a República do Pão desiste? - perguntou o rapaz loiro de olhos verdes, maliciosamente.

— NUNCA! Aceito o desafio do Reino da Broa.

A maioria das pessoas do grupo foram assistir ao duelo no simulador; Christine, Rebecca e Edward ficaram na república. Desta vez, a vitória foi de Karma, usando novamente um Hyaku-Shiki contra o Qubeley.

— Comam todas as broas que puderem – brincou Estel, assim que estavam voltando da padaria para a cobertura da Watchtower – serão as últimas! Logo, logo, o Pão dominará tudo! Vencer um adversário que está caindo de sono não é algo muito passível de orgulho posterior, Arauto do Reino da Broa.

— Estou tão bêbado de sono quanto você – retrucou Karma – isso não é desculpa.

— Pelo jeito, sonolência atrapalha os reflexos naturais… mas não atrapalha a intuição Newtype – comentou Zaina. - Inclusive, muitos têm lampejos intuitivos e sonhos premonitórios enquanto estão dormindo.

Aquele dia foi a primeira vez em que vararam a noite. De manhã cedo, Daiya estava exausta: tinha feito dois bolos durante o período, e havia lavado a louça que sujou. Não queria aparentar o cansaço que sentia; estava sendo bem sucedida, pois nenhum dos Newtypes presentes detectou sua enorme vontade de dormir um pouco. Achava que seria falta de educação e atrevimento se dormisse na cama de algum dos moradores, mesmo que por poucos minutos. Foi Siren quem percebeu o cansaço pela primeira vez.

— Daiya, não quer dormir um pouco? É bom que você descanse bem… afinal, saindo daqui, tem que continuar fazendo mais bolos para vender, e a cama da casa abandonada onde você mora não é lá muito confortável.

— O… obrigada, Siren – respondeu a moça, sem jeito – mas eu não me importo. Nenhum de vocês pretende dormir, mesmo tendo passado a noite em claro, estou bem.

— Não está, não – retrucou Keisha – não consigo sentir isso pela intuição, mas dá pra perceber pela sua voz e pelas suas olheiras.

— Eu… estou bem, amigos. Não se preocupem comigo.

Karma começou a prestar atenção nela. Não conseguia pressentir nada sobre seu estado, mas via que ocasionalmente ela fechava os olhos.

— Daiya – sugeriu – quer dormir um pouco na minha cama?

— Credo, Karma, assim de repente, sem nem um jantarzinho antes? - provocou Ilya.

— Não é pra ela dormir comigo na minha cama, seu babacão. Só pra descansar um pouco sozinha.

— Eu… não precisa, eu realmente não quero incomodar.

— Você está cansada, não está? Quer dormir, não quer? Então levante-se e venha aqui. Não pretendo dormir agora, estou sem sono.

A moça ficou sem graça, com medo de estar incomodando, mas foi. Seu amigo disse que ela descansasse quanto tempo quisesse sem se preocupar. Perguntou se ela preferia outro travesseiro ou cobertor. Quando saiu do quarto, comentou carinhosamente:

— O jeito como você se cobre é engraçado… mal deixando os olhos de fora. Parece… uma borboleta em um casulo. Boa noite… ou, melhor dizendo, bom dia, pois já é de manhã.

— O… obrigada – murmurou Daiya, sentindo-se acolhida, e pegando no sono logo em seguida.

 

Aquela sessão de jogo foi a última antes de uma viagem de Natal que o grupo da Watchtower faria, como premiação da reitoria pelo bom desempenho acadêmico de alguns de seus membros. Após solicitarem, conseguiram que Siren fosse junto, apesar deste não ser um morador oficial da república; mas não sabiam como fazer para levar Daiya, já que ela era moradora clandestina na colônia.

— Deixem isso comigo – exclamou Edward – convidem-na para vir conosco, e eu faço o resto.

No espaçoporto, na hora de entrar na sala de embarque, os Cyber-Guards usaram a intuição para analisar a mente de todos, verificando se havia algo errado. Detiveram-se um pouco em Daiya; Phillip, que ia para escoltar Kaori, ficou apreensivo. Edward então tomou a frente e disse, parecendo se concentrar:

— Ela é do nosso grupo, podem deixá-la passar.

— Ela pertence ao grupo – respondeu um dos guardas – podem deixá-la passar.

— Não detecto nada de errado com estas pessoas – disse uma policial feminina – Prossigam para a sala de embarque e tenham uma boa viagem.

Quando os Vigilantes sentaram-se nas poltronas da sala esperando a nave, comentaram sobre:

— Que bruxaria foi essa que você fez, Sr. “Terror de Shangri-La”? - indagou Siren. - Até lembrou aquele velhinho, o Obi Wan, enganando os Stormtroopers naquele filme de séculos atrás...

— Você contrabandeia pessoas também? - indagou Karma, irônico.

— Me ensina a fazer isso? Vai ser bem útil nas vezes em que eu tiver que ver minha família idiota – exclamou Christine, entusiasmada.

— Confesso que eu realmente fiquei interessado – comentou Phillip. - Não se preocupe, não pretendo contar a ninguém, ainda mais porque estou me comprometendo também, tentando descobrir quem eu realmente sou. Inclusive, agora eu percebo que foi usado o mesmo artifício contra mim quando eu estava te investigando. Você nem Newtype é… e consegue manipular mentes alheias!

(Música: Chagas da guerra)

— Nunca entendi direito como funciona… só sei que funciona – respondeu sombriamente o rapaz de Shangri-La, que tinha cabelos entre o louro escuro e o ruivo. - Eu preferia não ter descoberto esta habilidade, pois o preço para isto foi muito alto. Foi quando eu e meus amigos fomos pegos pelos Cyber-Guards vendendo sucata roubada de campos de batalha. Não tínhamos mais que 12, 13 anos. Eu via meus companheiros apanhando… com medo… humilhados... sendo levados para não sei onde; até hoje não faço ideia do que ocorreu com eles. Então comecei a pensar: “Eu não sou um criminoso… eu não sou um criminoso… não fiz nada de errado”. Os guardas leram este pensamento… e interpretaram como a verdade da minha mente. Fui solto. Comecei a fazer isso para sobreviver e fugir… e hoje utilizo para os negócios e para ajudar pessoas quando necessário.

Zaina murchou os olhos, segurando o choro. Conhecia Edward desde antes da Watchtower, e tinha vivenciado uma pequena parte dos fatos relatados.

— Nunca ninguém te pegou?

— Geralmente, Kouga, para os Cyber-Guards isso passa despercebido. Mas um Newtype com os poderes bem desenvolvidos consegue detectar o que há por trás destes meus falsos pensamentos.

— Ah, ela chegou – exclamou Nix, levantando-se. Pela entrada do espaçoporto entrou Rebecca, com uma mala de roupas em uma mão e na outra uma sacola que parecia conter frutas.

— Então… agora é pra valer? - perguntou Karma, indo até a moça e dando um tapinha carinhoso em seu ombro. - Está voltando para nós?

Estel levantou bruscamente, tropeçando em uma das malas no chão e também indo até ela desajeitado com o desequilíbrio.

— Às vezes ficar sozinha cansa. Ainda mais agora, que estou furiosa com a Anaheim Electronics; o tonto do Louis negou meu projeto de pesquisa sobre Zonas Void. Disse que a companhia só investe em projetos relevantes. Teve a cara de pau de me dar de presente estas laranjas aperfeiçoadas com as máquinas agrícolas, usando como exemplo de “projeto relevante”.

— ISSO são laranjas? - exclamou Keisha, tirando algumas da sacola. - São enormes, mais parecem melões! Pelo que sinto, têm nutrientes concentrados. Provavelmente são para alimentar pessoas em zonas de guerra… Admira-me você ter aceitado o presente, sendo que eu sinto claramente que você odeia Louis.

— Não me sinto bem rejeitando comida, seria injusto com o tempo em que passei necessidades. Mesmo o “presente” tendo sido dado por alguém como ele. Achei, além disso, que seria algo interessante para levarmos para a mesa de frutas na ceia de Natal.

— Que falta de tato – resmungou Estel. - Rejeitar o projeto e ainda “dar um presente” que supostamente prova o quanto existem coisas mais “úteis”. Bom, eu não esperava menos frieza vinda dele. Mas espere… você vai conosco, Rebecca?

— Juntou-se a nós novamente em excelente hora, bem na nossa viagem de Natal – sorriu Ilya. - Aliás… não lembro bem o que são as zonas Void. Já ouvi falar sobre, mas…

— Zonas Void – explicou Zaina – são uma “defesa” mental natural em memórias traumatizantes, especialmente quando os traumas foram sofridos na infância, e o indivíduo ainda não tem boa capacidade de discernimento. Para outros Newtypes, e às vezes até para a própria pessoa, é como se aquela memória não existisse, estivesse bloqueada; só com técnicas especiais de mentalização, ou vivências intensas que lembrem o fato ocorrido, causando uma sensação semelhante, é que essas memórias podem ser acessadas.

— Será que é por isso – murmurou Phillip, melancólico – que eu não me recordo do meu passado, não conseguindo ter nenhuma ideia de quem eu realmente sou? Provavelmente minhas memórias estão seladas em alguma dessas zonas de bloqueio mental… e o BABACA do Louis Anaheim não quer financiar uma pesquisa tão importante, que poderia ajudar tantas pessoas como eu, que sofrem com isso!

Kaori esboçou um sádico sorriso de satisfação; também não nutria simpatia pelo homem.

— Vendo você falar assim de uma pessoa tão influente como ele realmente me faz acreditar que você quer deixar de ser um Cyber-Guard, desafiando a corporação para descobrir sobre sua vida pregressa.

“Zonas Void, hein?”, pensou Karma, olhando para Daiya. “Acho que agora sei porque a mente dela parece ser tão… vazia e sem vida, como se não houvesse nada ali. Os traumas devem ter sido fortes”.

— Nossa nave chegou – exclamou Christine, levantando-se e indicando o transporte estacionando para aguardar o embarque dos passageiros. - Vamos, antes que ela nos deixe aqui.

— Terra, aí vamos nós! - bradou Nix, entusiasmado.

— Vamos ver como você se sente em meio aos plebeus terráqueos, Playboy de Axis – brincou Estel – e também experimentando um pouco de gravidade DE VERDADE.

 

(Música: Tema gentil de Daiya)

A nave decolou após os passageiros sentarem. Mesmo para quem já teve a visão várias vezes, era quase impossível ficar indiferente à beleza do espaço externo. Por isso mesmo, o transporte tinha janelas grandes, para que todos pudessem acompanhar; como não era um veículo de guerra, não era necessária tanta proteção. A visão da Terra azul se aproximando cada vez mais era magnífica.

— Obrigada, pessoal – murmurou Daiya para si mesma, agradecida pelo convite dos Vigilantes.

O destino final da viagem era uma casa rústica em um lugar campestre da Noruega. A anfitriã seria uma garota loira, que quase sempre usava tranças, chamada Albertina Travis, antiga amiga e vizinha de Estel. Este saiu correndo quando a viu e deu nela um abraço afetuoso.

— Então resolveu trazer seu exército com você desta vez? Vai ser bom passar o Natal com bastante gente, pra variar. Desde que minha avó se foi, tem sido um pouco solitário. Imagino que vocês todos estão cansados, com frio e com fome… entrem, vou acender a lareira, tem um café colonial esperando vocês. Quando estiverem descansados, podemos dar um passeio para vocês conhecerem o lugar.

 

— Confesso que isso para mim está sendo… épico – comentou Siren. - Estou em um chalé montanhês rodeado de neve, assando peixe em um espeto na lareira… e esse peixe está bem fresco, com certeza foi fisgado recentemente. Eu devia ter aprendido a tirolear, pra combinar com o ambiente. Vocês usam aquela técnica de quebrar o gelo de cima dos lagos pra pescar?

— Sim, e se você quiser, posso lhe ensinar – respondeu Albertina. - Minha avó aprendeu para sobreviver a uma guerra, e me ensinou.

— Eu adoraria – sorriu o baixinho de cabelos pretos. - Aliás, pode contar comigo para lhe ajudar no que for necessário. Cortar lenha, lavar louça, varrer a casa, consertar coisas…

— Siren, nada de tirolear, estamos na Noruega, não na Suíça – corrigiu Ilya, fazendo todos rirem.

— Épica foi aquela discussão que tivemos sobre a lenda da criação do mundo – comentou Estel. - Não chegamos a conclusão nenhuma, e mantenho a mesma opinião, mas mesmo assim… foi algo memorável.

— Então você ainda não aceita o fato do Caos ser o grande redentor e criador, e ao mesmo tempo, o grande destruidor de tudo o que existe? - sorriu a garota de tranças.

— Poderia contar esta lenda para nós? Fiquei interessado – sugeriu Kouga.

— Que milagre você estar interessado em algo – ironizou Kaori – geralmente fica em estado “blasé”, alheio a tudo… foi a descrição da natureza do Caos que te interessou, não é? Pelo que senti em sua mente até agora, você é uma pessoa interessada em coisas destrutivas, como morte, medo, forças ocultas…

— Bom, pessoal, vocês querem que eu conte a história para vocês? - perguntou a dona da casa.

(Mùsica: O esplendor do espaço)

A maioria respondeu afirmativamente.

— Houve um tempo, antes do advento de Deus como criatura suprema – começou Albertina – em que o Bem e o Mal eram absolutos. Onde um reinava, o outro não conseguia entrar. Todos estavam condenados à eterna felicidade ou ao eterno sofrimento. Sem meios termos, sem esperança de mudança para os que estavam sob a influência do Mal. Deus tentava interferir, mas tudo o que afetava um lado também afetava o outro. Não era possível simplesmente tentar apagar o Mal sem que o Bem fosse afetado; isso causava desequilíbrio. Após refletir sobre este enigma, Deus decidiu, com pesar, que a melhor solução seria acabar com o determinismo de ambos os lados. Criar uma força que fizesse com que nem o Bem, nem o Mal, pudessem ter a vitória absoluta, ambos podendo ser criados ou destruídos a qualquer momento. Os dois polos opostos entraram em movimento constante, misturaram-se, nenhum dos dois seria mais absoluto. Assim nasceu o que chamamos hoje de… Caos. A matriz de criação e destruição do mundo, o que não permite que nada fique parado, que nada dure para sempre, nem bom, nem mau. O impacto desta ação foi tão grande que o Mundo foi criado novamente, segundo estas novas leis. Por isso, afirmamos que o Caos é o pai da Esperança; afinal, esta é a aspiração de que tudo pode dar certo, mesmo em meio ao maior dos desesperos. E o que pode ocasionar este sentimento, senão o Caos, ou a “certeza da incerteza”, o eterno transitório, o que pertence a Tudo e ao mesmo tempo não é Nada?

— E é por isso que eu não concordo com esta história de jeito nenhum – resmungou Estel. - Caos, pra mim, sempre foi destruição, incerteza, escárnio perante os nossos sonhos. Esperança é exatamente o contrário disso. Um sentimento de certeza do sucesso não pode vir de algo incerto e instável.

— Escárnio perante os nossos sonhos – refletiu Zaina – mas também perante os nossos pesadelos.

— Aquela história do 1% de Caos vem daí, então?

— Exatamente… seu nome é Kouga Zechs, não é? - continuou Albertina. - Muito se refletiu sobre como alcançar a felicidade com a sombra do Caos pairando eternamente sobre tudo o que existe. Se eu não me engano, essa teoria afirma que o que ocorre conosco é construído com 33% de coisas determinadas, 33% pelas nossas escolhas, e 33% através da Providência Divina, ou Sorte. Se conseguirmos fazer a Providência fluir a nosso favor, junto com nossas escolhas, venceremos matematicamente os 33% de aspectos determinados pela situação, de que não podemos fugir.

— Mas sempre tem o 1%, a sombra do Caos à espreita que pode mandar tudo isso para o abismo num piscar de olhos, não é?

— Correto, Phillip. Inclusive, há até uma demonstração matemática sobre isso. O que acontece quando dividimos 10, ou 100, por 3?

— Uma dízima periódica – respondeu Rebecca, como uma aluna aplicada. - Uma conta que repete o mesmo padrão numérico e não termina nunca.

— O número sagrado da completude da Grande Obra é o 10, a base decimal – prosseguiu a dona da casa. - Há 10 dimensões na Árvore da Vida, o que é confirmado pela Teoria das Cordas. 9 é o número da Iniciação; é quando o número sagrado da Criação e da Divindade, que é o 3, multiplica-se por si mesmo. São 3 os princípios envolvidos no Destino: fatos que não escolhemos, fatos que escolhemos, e a Sorte. Mas os três não são suficientes para completar a criação. Pois falta o fator que a iniciou: o Caos. Só que este não é contado como um quarto fator, pois é algo que ao mesmo tempo existe e não existe. O número Um não tem valor na multiplicação e na divisão. É um princípio criativo, não algo criado. A dízima periódica, a divisão de 10 por 3, representa exatamente a fluência do mundo segundo esta lei de criação e destruição: é uma conta que nunca termina, representando o eterno movimento do mundo. E é uma conta que repete sempre o mesmo padrão numérico, demonstrando que o mundo se mantém em equilíbrio sob estas leis. O resultado é 3,333333… ou seja, o Princípio Divino, o número 3, sendo propagado infinitamente.

— Aaaahhh – gemeu Karma, colocando suas duas mãos na cabeça – parem de falar de matemática, isso está me deixando nervoso! Odeio essa matéria maldita!

— Muitos grandes filósofos também se interessavam por matemática— provocou Estel. - Aristóteles, Descartes, Pitágoras, Leibniz…

— Quando eu dominar o mundo – continuou o garoto loiro de olhos verdes, movimentando o indicador, enérgico— nenhum filósofo vai se meter com matemática!

 

Após descansarem, os Vigilantes foram desbravar o belíssimo e montanhoso lugar. O céu estava cheio de nuvens escuras, o que indicava que cairia neve na noite de Natal. A maioria dos Vigilantes foi explorar as trilhas das montanhas e dos bosques de pinheiros. Nix tentou esquiar; atrapalhou-se no começo por conta da mudança de gravidade, mas depois conseguiu usar sua intuição Newtype para guiar seus reflexos. Kaori, sempre surpreendendo a todos com suas incríveis habilidades, começou a provocar o amigo, serpenteando perto dele com ágeis movimentos de esqui. Siren aprendeu a técnica de pesca rapidamente, e conseguiu fisgar belos e grandes peixes para a ceia daquela noite. Keisha e Ilya deram início a uma guerra de bolas de neve. Christine juntou-se a este último, acertando Keisha também.

— Dois contra um não vale – reclamou Uraki, enquanto tentava fugir das bolas de neve (Christine fazia questão de criar projéteis grandes e bem compactos, para que doessem mais).

Daiya não participou das atividades; transitou um pouco por cada grupo, olhando de longe. Não queria incomodar. Sentia ao mesmo tempo como se pertencesse a tudo, mas não pertencesse a nada. Andando a esmo sozinha, acabou encontrando, perto do chalé, uma estátua de uma mulher feita em mármore branco, rodeada por um pequeno jardim de pequenas flores brancas, cujas pétalas tinham uma pequena “pelugem”. Ficou ali, admirando o jardim e a estátua por um bom tempo; quando estava anoitecendo, todo o grupo voltava para o chalé, e encontrou a garota ali.

— Você também cultua Ragna, a Deusa do Inverno? - sorriu Albertina para Daiya.

— Deusa… do Inverno? - murmurou Keisha, curioso.

— Estas flores são de verdade – exclamou Zaina, tocando nas pétalas e folhas. - Como elas conseguem sobreviver em meio à neve?

— São exemplares de “Edelweiss”, uma das únicas flores que conseguem sobreviver ao nosso cllima – explicou Albertina. - O nome significa “Branca e Nobre em alemão. Achei que plantá-las seriam a oferenda perfeita para o altar da Deusa.

— Edelweiss… são as flores que são citadas no musical “The Sound of Music”, não é? - indagou Chrintine - e isso é mármore branco… essa estátua deve valer uma fortuna!

— Pois é – emendou Estel – onde você conseguiu isso? Não tinha a estátua quando éramos vizinhos… e acho que não teria dinheiro pra comprar… era da sua avó?

— Era o prêmio de uma gincana de um de nossos Festivais de Inverno. O vencedor era quem cometesse o ato mais corajoso e maluco. E eu ganhei dirigindo um automóvel sem roupa nenhuma, com a temperatura abaixo de zero e a janela do carro aberta, perguntando qual era o caminho para Valhalla.

Todos ficaram alguns segundos chocados, tentando imaginar a cena, mas logo se recompuseram.

— Bom… não é de admirar que você tenha ganho – murmurou Edward.

— Espere um instante – exclamou Karma – esta também não é a divindade da Morte para vocês? Lembro-me de ter lido sobre isso em um livro de História. Como você pode prestar culto a uma deusa como essa, se seus pais morreram, seu irmão Ian desapareceu, e sua avó norueguesa morreu recentemente também? Não é do nome dela que vem a expressão “Ragnarok”, que é uma forma de Apocalipse?

(Música – Além da matéria)

— Sim, é – respondeu a moça de tranças, séria – e isso faz dela também a deusa da Justiça. Ragna é aquela que não deixa o Mal se aproximar de nós. Nada resiste ao seu poder gélido de destruição e finitude. No Inverno, nada cresce, quase tudo encolhe, adormece e definha. Dizem que quando temos um inverno muito rigoroso, é porque ela está lutando contra inimigos poderosos, e uma parte dos seus poderes reflete aqui, no mundo humano. Nosso dever, nestes casos, é rezar para ela, dando-lhe forças para o combate. Um preço altíssimo foi pago para que ela conseguisse seus novos poderes. Inimigos poderosos vindos de um Universo paralelo ameaçavam a existência não só dos homens, mas também dos Deuses. Queria escravizar todos os humanos e eliminar as divindades. Temendo pela vida do deus que amava, Ragna desceu ao Submundo para obter um poder destrutivo capaz de combater este temível adversário. A questão é que nem mesmo um Deus pode descer assim e ressurgir ileso. Ela passou por provações terríveis; ficou estéril, teve seu corpo destruído, sua beleza, seu sorriso e o brilho de seus olhos extintos, o calor de seu corpo deu lugar à frieza da morte, apesar dela continuar viva. As esperanças do amor abandonaram seu coração; agora ela existia apenas para a destruição. Condenou-se, assim, a uma existência solitária, pois ninguém iria desposar aquela que tinha se tornado a encarnação da Finitude. Mas conseguiu cumprir seu objetivo: destruiu implacavelmente os inimigos que ameaçavam as dimensões deste Universo. Desde então, é ela quem protege todos nós das forças negativas.

— Perdeu a beleza? Para mim ela é linda – suspirou Phillip, admirando a bela estátua e segurando com carinho uma das mãos gélidas do mármore.

— Para mim também – sorriu Albertina. - Uma lição importante que Ragna nos ensina é a de união. Em tempos difíceis, não conseguimos sobreviver sozinhos, divididos. Quando o vento frio cortante e as temperaturas negativas despontam, não há lugar para imprudências, atos irrefletidos, brigas vãs. Devemos ser sábios e mantermo-nos unidos em volta do que realmente importa, se quisermos sobreviver às provações do inverno. E é em momentos como esta ocasião, nossa ceia de Natal, que colocamos em prática este espírito de solidariedade. Por essa razão, apesar das dificuldades de vivermos em um país frio, esta estação tem um significado muito profundo e importante para nós.

Por alguns instantes, os Vigilantes ficaram em frente a estátua, refletindo sobre tudo aquilo. Logo depois, entraram, para preparar a ceia.

Aproximadamente às 20:30, começou a cair uma pesada nevasca, sem vento. A lareira permaneceu acesa à noite toda; Siren, trabalhando incansavelmente como sempre, cuidava do fogo e também ajudava Daiya, Christine e Edward na cozinha. Foi feito um belo arranjo para o centro da mesa, com as oito laranjas dadas por Louis Anaheim, frutas secas e castanhas. Antes de comer, todos resolveram brindar e rezar para a deusa Ragna, agradecendo por aquele momento de calor e união. Tiraram também uma foto com todos; decidiram que seria melhor tirar antes da ceia, já que depois desta provavelmente todos estariam com a barriga enorme de tanto comer. Siren então estreou uma de suas novas engenhocas: uma câmera fotográfica com tripé e obturador movidos por Psycommu. Assim, um Newtype ou Cyber Newtype poderia controlar o ângulo da foto e o momento em que ela seria tirada através da intuição. O inventor tomou o cuidado de permitir somente o uso de uma intuição por vez, para não haver conflito de mentes na hora de tirar a foto. Nix foi o escolhido; após ajustar a câmera com a mente, avisou a todos:

— Digam “Axis”!

— Me obrigue – retrucaram Karma, Edward e Kaori juntos, brincando.

Depois que todos se empanturraram de tanto comer – descobriram que as laranjas eram de fato deliciosas, com gosto doce, forte e concentrado; alguns as comeram para ajudar na digestão – foram dormir. Antes de deitar-se, Christine olhou pela janela, viu a estátua da deusa e comentou:

— Fiquei com pena dela… ela está lá, sozinha no frio, enquanto nós nos divertimos… sei que ela está cumprindo seu papel de nos proteger, mas parece algo cruel demais…

De madrugada, Albertina acordou, pois ouvira barulhos próximos à estátua. Era Kouga; dizia que não conseguia dormir bem, e resolveu rezar, mesmo com a neve ainda caindo.

— Identifiquei-me muito com ela - comentou o rapaz. - Sempre convivi com a morte perto de mim; minha mãe possui uma doença crônica, desenvolvi meus poderes Newtype detectando esta aura de morte que ela carregava. Com o tempo, fui me adaptando, e passei a abraçar a finitude como se fosse uma… amiga de infância. Sinto, às vezes, que eu mesmo não vou durar muito aqui. E não me importo nem um pouco com isso.

— Deve… deve ser horrível prever algo relacionado com a própria morte – murmurou Albertina, preocupada. - Achava que seu interesse pelas lendas era só curiosidade… me desculpe… por isso então que você tem a impressão que não sente empatia por nada? Porque… é como se já estivesse um pouco no Submundo, como Ragna?

— Não é horrível quando você se acostuma. Inclusive, isso me ensina a dar valor aos bons momentos quando eles aparecem. Não concorda?

Lançou um olhar profundo e penetrante para Albertina; estava tentando prever como ela iria reagir. Sentiu aceitação.

— Você… você realmente é uma pessoa muito mais profunda e misteriosa do que aparenta – murmurou ela. – Eu… eu não queria que você fosse embora.

Retribuiu o olhar fixo, e deixou o rapaz alto se aproximar. Beijaram-se em meio à neve da madrugada, com a Deusa do Inverno como testemunha.


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Notas finais do capítulo

Após as festas de fim de ano, os Vigilantes retornam à Arcadia, e vão à inauguração de um planetário que reproduz os dois hemisférios de visão estelar da Terra, com a possibilidade de assistir ao espetáculo em gravidade zero. Karma sente-se impotente ante o sentimento de que, ao redor de cada estrela, pode haver um planeta e pessoas precisando de ajuda. Daiya tenta ajudá-lo; qual será a reação do rapaz?
Já teria Phillip resolvido seu conflito de identidade, sentindo-se em definitivo sendo homem ou mulher?
Não perca o próximo episódio de Kidou Senshi VP Gundam! A sombra do Caos está à espreita.



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