Estações de ser escrita por Ainda Wendy


Capítulo 3
Inverno


Notas iniciais do capítulo

"A pálida luz da manhã de inverno,
O cais e a razão
Não dão mais esperança, nem menos esperança sequer,
Ao meu coração.
O que tem que ser
Será, quer eu queira que seja ou que não.
No rumor do cais, no bulício do rio
Na rua a acordar
Não há mais sossego, nem menos sossego sequer,
Para o meu esperar.
O que tem que não ser
Algures será, se o pensei; tudo mais é sonhar."

— poema "A pálida luz da manhã de inverno" de Fernando Pessoa.



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As agulhas acordaram-me pela manhã querendo algo além do sangue. Questionei aos doutores o que era exatamente, mas não me responderam. Sorrindo, eles pediram para que eu somente me acalmasse e não contraísse os músculos. Ah, esses sorrisos hospitalares!... São os mais nojentos. Piores que os meus à base de antidepressivos e qualquer outro remédio que recebo visando abafar um estado psíquico negativo e às vezes, suicida.

Estava cansada disso e portanto, inventei outra desculpa para sair de lá. Disse que precisava visitar a minha mãe e sem grandes complicações, fui autorizada. Cheguei em casa quando o relógio deu quatro da manhã. Corri para o quarto, envolvi-me pela coberta e fiquei. Olhos abertos, olhos fechados; o silêncio permitindo que as agulhas voltassem. Eu estendi o braço - sussurrei: acabem comigo! – e de súbito, tive a estranha sensação de já ter perecido.

Estava morta? Aconcheguei-me mais e insisti. Teria eu já morrido sem saber? Foi quando me lembrei. Minha bolsa estava na cozinha e dentro dela, guardado na repartição maior, encontrava-se o resultado dos últimos exames que não tive coragem de ver, temendo concretizar minha previsível realidade.

Meus dedos percorreram aquela escritura digitada para encontrar o meu prazo de validade. Eu tinha mais uma estação apenas. Informação suficiente para levar-me às lembranças que as agulhas e os médicos, felizmente, não tinham alcançado.

Eram seis da manhã e eu tinha seis anos de idade. Amanheci primeiro com as batidas na porta, depois com a luz e então, com um susto. “Filha, hora de levantar. Hoje você tem prova oral de inglês.” Eu ouvia muito sobre essas provas. Minha irmã mais velha dizia que eram as piores. A professora encarava os alunos e pedia que eles falassem rápido coisas muito difíceis.

Eu estremeci e olhei, com medo, a minha mãe. Os olhos verdes dela me encaravam e um sorriso tranquilizador voltou-se a mim. “Fique calma. Irei fazer chocolate quente para você tirar dez.” Eu lembro que essas palavras não adiantaram; eu acabei correndo para perto dela, segurando em sua mão e acompanhando-na até a cozinha.

Observei seu jeito ágil e cuidadoso ao colocar cada ingrediente em uma caneca enorme e a forma como isso cheirava bem. Tornava o cômodo mais quente. Eu amei principalmente quando, ao término de tudo, ela sentou na minha frente, segurando duas xícaras na mão, e revelou que eu não teria prova nenhuma. Eu fiquei muito brava no começo. “Você mentiu para mim!”.

Minha mãe pediu desculpas. Afirmou que tinha feito aquilo para que eu não sentisse medo quando, de fato, eu tivesse que fazer uma prova e aos poucos, conforme eu esvaziei o copo, percebi que estava pronta mesmo. Senti que poderia fazer quantas provas quisesse. Tinha funcionado! 

 Dei um longo suspiro nostálgico antes de devolver o papel à bolsa. Então, prendi meus cabelos, arregacei as mangas e comecei a procurar os ingredientes dentro dos pequenos armários na cozinha. Fazia muito tempo que não bebia minha infância. Nos hospitais, só há café ou bebidas misturadas com café e elas têm gosto industrial. Lembram adultos, dinheiro e doenças. Parecem compactuar com uma vida curta e horrível de tal forma que eu sorri ao ver minha xícara cheia de chocolate quente em cima da mesa.

A cozinha estava agradável e aconchegante e envolvia-me com um cheiro substancialmente esperançoso. Eram ares de finais felizes que eu, de olhos fechados, aspirava e que, no entanto, foram interrompidos pela minha própria imaginação. “Fiz isso para você não ter medo quando, de fato, morrer”. A voz de minha mãe chegou aos meus ouvidos tão real quanto o inverno do lado de fora e ela pedia desculpas pela minha previsível realidade: uma estação inadiável.  


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Notas finais do capítulo

Muito obrigada a todos que chegaram aqui. Gostaria de agradecer especialmente ao Josh, ao Nano e à Elize que comentaram a fic. Esse capítulo foi dedicado à Elize e ao Nano por terem favoritado também. Estou muito feliz com todo esse apoio. De verdade, muito obrigada.
Desculpem-me qualquer erro de português, caso encontrarem avisem-me, ok? Ajudará muito a mim e aos outros leitores.
Caso alguém queira saber da onde eu tirei o poema, o link é esse: http://www.jornaldepoesia.jor.br/ined13.html

Acredito que seja isso. Espero que tenham gostado do capítulo. Até *



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