Anjo das Trevas - 2ª temporada escrita por Elvish Song


Capítulo 5
Encontro desagradável


Notas iniciais do capítulo

Olá! Aproveitei o fim de semana para postar dois caps encadeados. Muita tensão pela frente.



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Por um momento, as pernas de Annika vacilaram, e ela teve de se apoiar no corrimão: aquele homem, aos pés da escadaria, não apenas a pusera no mundo... Ele fora responsável direto por tudo o que ela passara na vida. E pior: por tudo o que Gabrielle passara. Ele voltara para os pais, para a vida de luxo e conforto, deixando para trás uma esposa com duas filhas para criar; fechara os olhos e preferira ignorar enquanto suas duas filhas estavam perdidas pelas ruas, sendo prostituídas, espancadas, estupradas... De todos os ratos imundos que conhecia, ele era o pior, e foi só ao vê-lo que Annika percebeu todo o ódio que nutria pelo pai, Derrik Anjou.

Recompondo-se e assumindo a postura mais fria de que era capaz, Annika terminou de descer a escadaria e postou-se diante do homem. Sentia vontade de gritar, chorar, de envolver o pescoço dele com o cordão do Punjab e apertar até vê-lo morrer! Em seu íntimo, culpava-o pela morte da mãe, e certamente por tudo o que se passara, depois disso.

— Boa noite, cavalheiro. O que deseja aqui? – perguntou, no tom mais polido que o ódio lhe permitia.

— Ah, Annie, por favor... Não me trate assim – pediu o senhor, tentando fazer uma carícia no rosto da filha. Ela, porém, o repeliu com um tapa seco:

— Para o senhor, sou Madame Destler. E imagino que esteja cometendo um engano quanto a quem sou.

— Annika, por favor... Um pai sempre reconhecerá sua filha. Imagino que esteja com raiva de mim, mas...

— Com raiva? – perguntou ela, irônica e gélida – por que eu teria raiva? Não, monsieur... Para o senhor, tenho apenas desprezo. Nada temos a falar. Passar bem – ela ia se voltando para ir ao refeitório, quando ele pediu outra vez:

— Pelo menos escute o que tenho a dizer... Madame Destler.

Um nó se formou na garganta de Annika, que engoliu as lágrimas por puro orgulho: nunca aceitaria a humilhação de chorar diante daquele homem! Usando a força adquirida em anos de dor e luta, virou-se para ele com o semblante impassível, e disse:

— Seja breve. Meu tempo é precioso, pois tenho um trabalho e três filhos que precisam de meus cuidados.

O cavalheiro se aproximou um pouco mais, hesitante, e murmurou:

— Eu sei que me culpa por ter ido embora, por não ter retornado...

— Você teve seus motivos, e não me importa quais foram.

— Eu lamentei a morte de sua mãe – disparou ele, tentando impedir que Annie o dispensasse. Aquilo, porém, tocou numa ferida dolorosa da mulher:

— Lamentou? – havia um tom raivoso na voz dela – pois bem, vamos conversar fora do hall, monsieur. – ela praticamente arrastou o pai para fora do grande saguão, para uma sala lateral, antes de fechar a porta – lamentou enquanto mamãe trabalhava em três turnos para criar duas meninas, sem nos deixar faltar nada, ensinando-nos tudo o que podia? Lamentou quando homens armados entraram em nossa casa, violentaram nossa mãe, espancaram-na e a mataram a tiros? Lamentou quando suas filhas ficaram sozinhas e sem ninguém, à mercê do mundo? Foi isso o que fez? LAMENTOU?! – ela se obrigou a controlar a voz – deixe-me informar que seus lamentos não modificaram nada, nem tampouco o fazem agora.

— Deixe-me explicar...

— Nada há a explicar. Você não queria filhas mulheres, então foi embora, e deixou que sua mulher se virasse com as meninas. – o homem meneava a cabeça:

— Não, não... Nunca foi isso.

— Não me diga o que foi ou não. Eu me lembro. Lembro-me de como tentou me proibir de ir ao conservatório, de como gritava com minha mãe por ela trabalhar... De tudo o que falou quando Gabrielle nasceu. Com que direito ousa vir aqui, agora? Tive de criar Gabi sozinha, num mundo que nos faz pagar por cada migalha que lhe é atirada. Você nunca imaginaria as coisas que tive de fazer para nos manter vivas... – ela meneou a cabeça, pensando em Erik para fugir às memórias de vergonha e dor – enquanto você vivia no luxo e conforto com sua nova esposa. Agora, quando sou uma pianista reconhecida, e Gabrielle faz o próprio nome como violinista, aparece para colher os louros da vitória? Eles não são seus.

— Filha...

— NÃO ME CHAME ASSIM! – a raiva foi maior do que tudo, fazendo Annie usar a potência vocal que vinha desenvolvendo no estudo de canto com Erik. Depois de um segundo, ela baixou o tom outra vez – nunca mais me chame deste modo. Não lhe devo nada, e tudo o que sou devo a mim mesma ou, no máximo, a meu marido. O qual, por sinal, partiria sua espinha em dois se o visse aqui, senhor Anjou. Portanto, seria prudente partir enquanto tem chance.

Vendo que não havia qualquer chance de argumentar com sua filha, o senhor resolveu dizer de vez o que o trazia ali:

— Annika, eu estou morrendo.

— O quê?! – aquelas palavras a pegaram de surpresa.

— Eu estou morrendo. Desenvolvi tuberculose, e é questão de tempo até morrer.

— E o que espera que eu faça? Acenda uma vela em seu túmulo? Eu o farei, se isso o fizer me deixar em paz – devolveu a mulher. Crueldade raramente era um traço seu, mas, quando se manifestava, o fazia de modo poderoso. Ela não sentia a menor empatia pelo pai. Ele sabia disso, e sabia ser merecedor:

— Não tive outros filhos, e sei que você e sua irmã tiveram uma infância difícil.

— Difícil seria o paraíso, comparado ao que vivemos.

— Quero nomeá-las minhas herdeiras. Você já está casada, mas Gabrielle precisará de um dote...

Annika não deixou seu pai terminar: a ideia a encheu de asco:

— Acha que pode comprar nosso perdão? Acha que queremos seu dinheiro imundo?! Aquilo que nós queríamos, aquilo que precisávamos, você nunca deu: não nos deu um teto para morar, nem comida para encher nossas barrigas que roncavam. Não impediu que fôssemos vendidas como escravas e prostituídas! Não impediu que nos espancassem, que nos torturassem... Onde estava, enquanto eu roubava para tentar impedir que Gabrielle fosse vendida a cada noite? Onde estava, quando ela adoeceu, e quase não resistiu? Onde estava quando o homem que hoje é meu marido nos comprou, e nenhuma de nós sabia quais eram suas intenções? Acha que dinheiro pode comprar isso? Que dinheiro pode pagar por isso? – ela meneou a cabeça, com nojo – guarde seu dinheiro. Doe-o a uma igreja, aos pobres, leve-o para o túmulo. Gabrielle sequer pretende se casar, graças aos estupros que já sofreu e, caso um dia se decidisse por um casamento, nós duas ganhamos mais do que o suficiente para um excelente dote.

— Gabrielle... – era possível ver a dor e a culpa no semblante do homem, que se remoía de ódio por si mesmo, por saber tudo o que acontecera a suas filhas... Se ao menos houvesse conseguido encontra-las! Mas nem seus melhores esforços haviam conseguido localizar as meninas, após o incêndio da casa onde moravam... Acabara por concluir que haviam morrido, também, e chegara a construir duas lápides em seu jardim, onde depositava velas e pedia perdão diariamente. E quando os jornais haviam começado a falar sobre Annika e Gabrielle Anjou, ele demorara a crer que podiam ser elas. Só compreendera a verdade quando viera assistir pessoalmente a um dos solos de Gabrielle... Reconheceria suas filhas em qualquer lugar, mesmo que dezesseis anos se houvessem passado. Elas tinham não apenas os traços e cabelos, mas o porte e orgulho da mãe. Ele se orgulhava das mulheres que se haviam tornado, e envergonhava-se do homem que era. Se pudesse voltar no tempo, jamais teria feito as escolha que fizera, mas já fora jovem e arrogante, e pedir desculpas à esposa lhe parecera impensável, naquela época. Mas quanto às filhas, ele jamais pretendera abandoná-las. Ele realmente acreditara que as havia perdido. – Como ela é?

— Linda. Corajosa, alegre, forte. Como nossa mãe. Bem diferente de você. Na verdade, acho que de você só tem os olhos. – quanta crueldade! Annika não se lembrava de já ter agido assim, antes, mas não conseguia, nem queria parar. Via a dor nos olhos daquele homem, e essa dor a fazia sentir-se vingada. Que ele experimentasse uma ínfima fração do que Gabrielle sofrera. Do que a própria Annika sofrera. – Mas se quiser vê-la, será dos camarotes, ou nos jornais, pois ela não saberá que você existe. Ela não precisa passar por isso.

— Por que está fazendo isso, Annika? Eu nunca pretendi abandonar vocês! Mandei homens procurarem duas meninas, eu mesmo procurei em documentos, registros... Mas vocês desapareceram! Pensei que haviam morrido nas chamas, e por isso desisti de procurar! – havia lágrimas nos olhos de Derrik – lamentei todos os dias, até descobrir que estavam vivas. Eu as assisti nas performances, li tudo o que pude sobre vocês... Mas demorei a ter coragem para vir procura-la, porque imaginei que reagiria assim. Embora não tenha pensado que seria tão cruel. Sua mãe nunca foi cruel.

— Crueldade foi algo que eu precisei aprender. Acontece, quando se cresce num bordel.

— Eu juro que...

— Não me importa o que você jure a mim. Na verdade, se isso se tratasse de mim, eu o perdoaria, senhor. Eu realmente o perdoaria. Mas não posso perdoá-lo, por causa de toda a dor que causou a Gabi. Por sua causa ela sofreu tanto! Porque você não pôde amar uma menina. Porque queria um filho varão, e não outra menina inútil.

— Nunca foi isso, Annie, pelo amor de Deus! Sua mãe e eu éramos pobres. Eu me sentia menos homem por minha esposa ter de trabalhar para podermos viver... Uma segunda menina representava outro dote que teríamos de pagar, e outra boca a mais para alimentar, sem perspectivas de que trouxesse dinheiro para casa. Quando disse a sua mãe que enjeitasse Gabrielle, estava pensando em todos nós. Seria o melhor para ela, que poderia ser adotada por uma família de posses... Seria o melhor para todos nós. Sua mãe poderia ter um filho homem, que poderia trabalhar e ajudar a pagar o seu dote, quando você crescesse...

— Então foi por isso? – uma nova voz ecoou no ambiente: Gabrielle entrara silenciosamente no aposento, e nem Annie, nem o Sr. Anjou sabiam desde quando estava ouvindo, mas a menina parecia desapontada – Seu orgulho de homem permitia me dar para outra pessoa, mas não me deixar trabalhar? E quando minha mãe não fez o que você queria, preferiu mandar ao inferno seu “papel de homem” e deixar que sua mulher se virasse sozinha com as filhas, quando já era difícil fazê-lo em dois? – Gabrielle não esboçou reação, seu rosto não tinha emoção nenhuma – você é um covarde. Um covarde, e eu não quero nada de você. – A menina saiu da sala a passos largos, e Annika, com desespero por saber o quão devastada estaria sua irmã, encerrou a conversa:

— Vá embora. Já causou estrago suficiente, em nossas vidas. Morra de uma vez e vá para o inferno. – e assim dizendo, correu atrás de sua irmãzinha.

*

Gabrielle estava sentada no peitoril largo da janela de seu quarto, os vidros abertos, abraçada aos joelhos. Fitava o mundo lá fora com olhar perdido, imaginando sabia-se lá o que, a expressão indiferente. Annika abriu a porta do alojamento e fitou sua irmãzinha, lembrando-se dela quando ainda uma menininha de quatro, sete, dez anos... No rosto de quase-mulher havia ainda os mesmo traços da infância, e esses traços que não mudavam fizeram Annie reconhecer a tristeza que Gabi tentava ocultar.

— Abelhinha? – chamou a pianista, o que fez a mais nova se voltar para fita-la – como você está, meu amor?

— Foi por minha causa que nosso pai abandonou você e mamãe, não foi?

— Não! – exclamou Annika, desejando voltar ao saguão e quebrar cada osso do corpo do pai, por fazer Gabrielle se sentir mal – De modo algum, meu amor! Ele foi embora porque era um cretino, covarde, que não estava disposto a trabalhar ainda mais para melhorar a vida que tínhamos. Desculpas esfarrapadas de um garoto mimado. Nossa mãe conseguiu, sozinha, nos sustentar e fazer com que acreditássemos não nos faltar nada! Se ele não houvesse sido covarde, podiam ter enfrentado tudo juntos, e a vida teria sido realmente mais fácil. Mas ele não foi embora por sua causa, de modo algum! Ele foi por não ter coragem. Foi por ser um fraco.

— Ainda assim, se eu não tivesse nascido...

— Ele teria ido embora do mesmo modo... E eu não teria tido motivos para lutar e continuar em frente, depois que mamãe morreu. – respondeu Annika, sentando-se de frente para a irmã e tocando a testa dela com a própria – Você é minha luz, meu raio de sol, a irmãzinha que amei e sempre vou amar como minha primeira filha. Você foi a melhor coisa que aconteceu em minha vida, e ainda me lembro de como mamãe passava horas simplesmente olhando para você, quando nasceu. Você foi tudo para ela, e ainda é parte de meu coração! Você foi a melhor coisa de minha vida, Gabi! E não quero que se sinta culpada por aquele porco descarado ter nos deixado. – ela abraçou a irmã – passamos coisas duras, abelhinhas, mas tivemos nossos bons momentos, também. Momentos que, talvez, não tivéssemos tido sob a guarda daquele cretino. – ela tomou o rosto da irmã nas mãos, e beijou-lhe a fronte – prometa-me que não vai carregar esta culpa, pois ela não é sua.

— Eu prometo – suspirou Gabrielle, forçando um sorriso – agora sei por que você nunca havia falado de nosso pai. Algumas coisas é melhor ignorar...

— Sim, querida. Mas, por favor, não fique triste. Esqueça esse passado, que você era pequena demais para lembrar, e pense no agora.

— E se ele tentar algo contra nós, Annie? Ele quer uma herdeira... E se ele tentar... Tomar-me de você?!

— Então, ele acordará com um laço do Punjab no pescoço. – respondeu a mais velha, séria, antes de abraçar a irmã – eu não vou deixar que ele lhe faça mal, meu amor. Ninguém, nunca mais, vai te machucar. Eu prometo.

— Nós prometemos – disse uma voz grave, atrás das jovens. Erik tinha o semblante marcado pela fúria contida, e o laço do Punjab enrolado no pulso. Ele se aproximou ne dizer nada, e fez a mais moça se levantar – nós somos sua família, Gabrielle, e ninguém ira lhe fazer mal. – as argolas do cordão brilharam à luz do sol que entrava pela janela. Annika entendeu o que ele pretendia, e segurou o braço de seu marido, num olhar que lhe pedia para não fazer aquilo, pelo menos por hora. Ele anuiu, compreendendo, e guardou o cordão dentro do colete. Tudo bem: não mataria o Sr. Anjou... Por enquanto.


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Notas finais do capítulo

E então? O que acharam do pai das meninas? E a Annie, foi cruel demais, ou estava certa? Deixem suas reviews, por favor!
kisses