Choque de Tempo escrita por Miss Krux


Capítulo 26
Capítulo 26 - Do presente para o passado.




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Dois dias após a cerimônia, Jarl, Assai, o Xamã e a feiticeira haviam partido de volta para a aldeia Zanga. Os exploradores estavam todos reunidos, pois era o dia da partida de William. O ar estava pesado, tenso; embora Challenger tivesse acompanhado de perto a evolução das mulheres sobre o domínio dos medalhões, ainda se tinha receios de que, de repente, algo não ocorresse como planejado. William estava ao lado direito da herdeira, vestido com as roupas de quando chegou no platô, e John ao lado esquerdo; tanto o caçador como a herdeira estavam bem preparados, armados, pois ainda não sabiam bem se iriam se materializar ou não.
Verônica estava diante de Marguerite. Malone e Challenger, um pouco distantes, observavam tudo cautelosamente.
V - Marguerite, pronta?
M - Pronta. E você?
V - Pronta. Você primeiro.
Verônica se distanciou um pouco, a herdeira fechou os olhos, cada um dos irmãos depositou uma mão nos ombros dela. Claro que quando ela pôde sentir a mão de John em seu ombro, um arrepio lhe percorreu por inteira, fazia apenas dois dias desde a sua última briga com ele e desde então ele nem sequer lhe dirigia um olhar, uma palavra, quanto mais ele podia ficar fora mais ele ficava.
Os dois irmãos também fecharam os olhos. Marguerite se concentrou apenas no dia do acidente, o medalhão em suas mãos estava brilhando mais do que qualquer outra vez que o usou, assim como chegava a arder as mãos de tão quente que estava - talvez por conta de ser uma viagem através do tempo e também por estar recebendo energias diretas do Tryon.
N - Challenger, deu certo?
C - Espero que sim, Malone, espero que sim. Pelo menos diante de nossas vistas não estão.
N - Não mesmo, sumiram num piscar de olhos.
C - Presumo que tudo tenha dado certo. Verônica, o que acha?
Verônica segurava o Tryon, concentrada em enviar segurança para que desse tudo certo na viagem; mas o Tryon mesmo não tinha a capacidade de deslocamento como o Oroboros, ele funcionava mais como, para o Oroboros no caso, uma proteção e fonte de energia
V - Eu não sei, Challenger, espero que sim. Não tenho como saber ao certo, isso só quando eles retornarem. Por hora, tudo o que posso fazer é lhes enviar proteção e energia.
N - Mas então não pode se deslocar? Como o Oroboros?
V – Não, Ned, não posso.
C – Sim, meu caro, Verônica não pode se deslocar por conta do Tryon não ser um reator, ele não produz esse tipo de reações. Acredito que ele seja mais como um condutor ou armazenador, ele conduz energia para o Oroboros, além da proteção também e, claro, ele tem tudo isso armazenado. Além de também ser visto como uma chave para outros mundos, mais precisamente para Avalon. Já o Oroboros é um reator, ele reage, é apenas por meio dele que conseguiríamos viajar entre tempo e espaço. Contudo, os medalhões se complementam.
V - Sim, mas não se esqueça de que o Oroboros só funciona se estiver com as duas partes unidas.
N - Mas eu pensei que não podia ser separado novamente. E se caso for, o que acontece?
C - Simples, meu jovem, não funciona, nem mesmo com o Tryon. Embora acredito que nossa Marguerite fará de tudo para mantê-lo unido. Só o separaria mesmo se sua vida estiver em risco. E mesmo assim, bem, teria que ser alguém em que ela confie muito.
N - Ou seja, ninguém. Marguerite confiar alguém, só se estiver para nascer.
Verônica sorriu brevemente e discretamente; sim, tinha alguém em quem a herdeira confiasse, confiasse a vida, mas ela preferiu ficar quieta.

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Há 14 anos atrás, lá estava o momento exato em que ocorreu a fatalidade, o acidente. Apenas William havia se materializado, John e Marguerite eram apenas fantasmas, não podiam ser vistos e nem ouvidos por ninguém. O próprio William já não os enxergava mais acreditando, claro, que estes já haviam ido para o seu tempo presente.
William estava novamente diante daquele gorila enorme, assustador, indo em direção a ele no intuito de, no mínimo, apertá-lo até morte. John mais novo assistia por detrás de tudo, podia ver o gorila sobre o irmão, ouvir os gritos de pavor e desespero, ele precisava fazer algo, precisava reagir. Ele empunhou sua arma, mirou diretamente no gorila, sabia que iria matá-lo e assim libertar o irmão. Era esse o plano, um único tiro, um único disparo; e um silêncio enorme repousou sobre a selva a sua volta, quando então ele pôde ver o irmão cair ao chão por de baixo do animal, inerte, sem vida.
J (novo) - WILLIAM!!! NÃOOO!!!
John corria em direção a William, que já podia sentir sua vida indo embora, sentia, como ele mesmo havia descrito, como se um trem de carga o estivesse atropelando. John não podia acreditar, aquilo não estava acontecendo, não era real... A bala havia atravessado o gorila e atingido em cheio o coração do irmão. Ele já o pegava em seus braços, frio, o sangue se espalhando por toda a camisa, por todo o peito, de forma rápida, impossibilitando fazer um estancamento, os brilhos nos olhos do irmão se escurecendo aos poucos.
J (novo) - Vamos, fale alguma coisa! Você não pode morrer, não pode! Está me ouvindo? William, por favor, volta. Não, não, isso não está acontecendo, não era para ter te acertado. Foi um...
Ainda que a respiração lhe faltasse, mais parecia um suspiro, William pôde olhar por uma última vez para o irmão, pôde ver o quanto aquilo o fez mal, o quanto o feriu, uma cicatriz para a vida inteira.
W - Um acidente... Acidente.
Ditas essas palavras, William apenas fechou os olhos, sua cabeça tombou levemente de lado, então ele pôde sentir o corte gelado e certeiro da lâmina do anjo da morte. William estava morto. E John inconsolável, desnorteado, desamparado e desesperado. O pobre homem gritava aos quatro ventos, chorava com o irmão morto em seus braços, enquanto outros de sua expedição, incluindo seu próprio pai, se aproximavam para entender o que havia ocorrido. O tumulto, a falação de muitos tomou conta, os que acreditavam ser um acidente e os que acusavam ser um golpe.
Já o John do presente, ainda que como um fantasma, por assim dizer, podia ver todo o acontecimento, estava vivendo em sua mente tudo aquilo novamente. Lágrimas escorriam pelo seu rosto. Pôde ver novamente o efeito que tudo aquilo lhe causava, pôde ver também seu pai, Lord Phillip Roxton, que sempre fora um homem decidido, rígido e agora estava lá, caído ao lado do filho mais velho, tão desamparado quanto John mais novo.
A herdeira por várias vezes teve que respirar fundo, se concentrar, para não chorar. Agora ela sabia o porquê que John carregava tanta culpa e tanta dor; como se não bastasse o fato do irmão morto, havia o tumulto todo, os a maioria dos nobres da época o acusando de golpe, de ter matado o próprio irmão de propósito. Quando ela ouviu isso, percebeu que era hora de ir embora. Ela tocou no ombro do caçador, que virou-se de imediato para ela.
M - Hora de ir. Vamos?
J - Por favor.
Ao abrirem os olhos e verem o lugar que estavam, tanto Marguerite como John perceberam que estavam longe de terem voltado para casa, de estar no platô.
J – Marguerite, onde estamos?
M - Eu não sei, mas algo deu errado.
J – Percebe-se. O que você pensou? Não estava concentrada o suficiente, não é?
M - Isso não é da sua conta. Você não tem nada a ver com isso. Talvez seja porque eu me lembrei de uma música, nada demais.
J - Certo. E onde ouviu essa música?
M - Eu não ouvi, eu cantei. Se eu estiver certa, estamos em Berlim, em uma passagem de ano, de 1915 para 1916.
J - Talvez eu saiba onde estamos e se for o que estou pensando eu sei onde eu estava nesse dia.
M - A que bom. E o que isso nos ajuda?
J - Eu ainda não sei. Mas talvez possa nos ajudar. Venha, acho que é naquele bar que eu estava.
M - Belo jeito de se comemorar a passagem de ano.
Por descuido, a herdeira lembrou-se de uma música que havia cantado há alguns anos; talvez pela triste morte de William tenha se lembrado da melodia e isso resultou em levá-los para a última vez que ela a ouviu, ou melhor cantou. Em um pequeno bar durante uma passagem de ano, ainda nos tempos de guerra, em Berlim. Era um local onde muitos dos soldados alemães se refugiavam depois das batalhas para uma distração, para terem algo que os fazia esquecer das mortes que encaravam nos grandes campos de batalha. Diziam ter ali uma misteriosa cantora no lugar que conseguia acalmar-lhes o coração, a saudade de casa e lidarem com a perdas que enfrentavam. Ninguém sabia nada sobre ela, somente que raramente se apresentava e quando isto acontecia a casa ficava cheia, diziam que ela cantava com a alma.
Marguerite, durante essa época, viajava como intérprete por conta de seus negócios como Parcival. Quando estava na Alemanha ela se apresentava, mas nunca com uma data certa e sempre após a apresentação terminar ela saía pelos fundos e um de seus empregados já a aguardava. Quando cantava ela sempre procurava os disfarces, procurava se parecer ao máximo que podia com uma cidadã alemã e não com uma inglesa. A herdeira se apresentou poucas vezes no local, não mais que sete ou oito vezes, fazia por gosto, por paixão, por poder se recordar ainda dos tempos de paz, dos tempos em que podia cantar abertamente, sem ter que fugir ou se esconder de alguém.
O caçador aproximava-se do local, seguido pela herdeira. A medida em que se aproximava, ela podia recordar-se daquele lugar e seus passos pareciam mais lentos e seu coração se acelarava. Sim, ela se lembrava daquele lugar. Mas, espera, John era um oficial do exercito britânico, o que ele fazia ali?
J - Vamos Marguerite, o que houve? Por que está aí parada?
M - John, o que você, um oficial do exército britânico, fazia em um local como este? Quer dizer, o matariam se descobrissem.
J - Eu estava infiltrado, Marguerite. Passei três meses a serviço do exército britânico como um soldado alemão, foi antes de eu ser exonerado do meu cargo. Conheci muitos oficiais inimigos, muitos com os quais fiz amizade e que ouso dizer não mereciam ter perdido suas vidas. Eu estava para ir embora, quando recebi a notícia de que campos próximos a propriedade Roxton em Avebury tinham sido bombardeados. Minha mãe foi a primeira coisa que me ocorreu e eu nada podia fazer, além do fato de também ter tido o prazo prorrogado por mais um mês, ou seja, de dois meses, passei a ficar três. E tudo isso em um dia que eu havia chegado de uma batalha sangrenta, tive que matar dos nossos próprios ingleses, aliados. Quando fui repousar, dois de meus companheiros de quarto comentaram sobre uma cantora e um bar, diziam que a voz dela era capaz de acalmar até um coração partido por um amor.
M - E era?
J - Eu até conhecer você nunca tive meu coração partido, lembra-se? Mas, de fato, essa cantora, eu me recordo muito bem, tinha um dom, tinha nascido para cantar. Tanto sua beleza como sua voz faziam qualquer homem ou qualquer um que a ouvisse no mínimo parar para admirá-la.
A herdeira olhava para o caçador, mal sabia ele que a cantora que tanto admirou era ela mesma e que ele estava prestes a descobrir.
M - Milagre, você não a cortejou?
J – Não, Marguerite, eu não a cortejei. Acha mesmo que eu só pensava nessas coisas?
M – Honestamente? Tenho certeza.
J – Marguerite, mas que droga, por que sempre pensa mal de mim?
M - Deveria perguntar isso para si, não para mim. Quer saber, eu já ouvi demais, vamos logo.
Antes da herdeira abrir a porta e adentrar o local, o caçador a segurou levemente no braço, impedindo-a.
J – Marguerite, espere. Para ter ouvido a música você só podia estar aqui dentro, mas como? Só tinham homens aqui.
Marguerite revirou os olhos com desdém.
M - Você não prestou mesmo atenção no que lhe disse, não é?
J - Não compreendo, Marguerite. Explique.
M – John, tem certeza de que só havia homens nesse lugar?
J - Espere, está querendo dizer... Não, Marguerite.
M - Quer saber, vamos logo. Chega disso.
O lugar estava cheio, todos soldados e oficiais alemães, homens. O lugar cheirava a cerveja e cigarro; vozes altas, risadas; várias mesas, cada uma com pelo menos seis homens reunidos e algumas mais reservadas ao lado direito estavam juntas e tinham vários homens juntos jogando cartas. Do lado esquerdo havia um balcão extenso com muitos outros homens bebendo; mais a frente havia um palco, não era luxuoso, continha apenas cortinas escuras e por de trás delas ficava um camarim mais reservado e um corredor com saídas para os fundos; o palco era de madeira, bem lustrado, havia apenas um microfone no centro.
O bar por dentro era rústico, muitos detalhes de madeira, havia um lustre simples também em madeira. Próximo da entrada ficava uma pequena caixa através da qual se controlava a luminosidade do local. Naquele momento um dos funcionários estava deixando a luz mais escura, o ar tinha um certo mistério, os homens já paravam de falar e de jogar, apagavam seus cigarros e deixavam seus copos com bebidas de lado.
Era ela, a cantora que, como John a descreveu, era capaz de juntar os pedaços de um coração ferido. Ela linda; o cabelo loiro ouro preso apenas com alguns fios caídos no rosto, uma leve maquiagem nos olhos, reforçando mais os lábios num tom de vinho escuro. Ela usava um vestido escuro, vinho, de manga curta, justo no corpo inteiro, longo, com um decote em V; usava luvas negras; e não carregava joia alguma, pois sua própria beleza já era uma joia. A voz era melodiosa, a música e a cantora pareciam estar em sintonia e em sintonia com o coração de cada um. Os olhos verdes penetrantes olhavam para os rostos que estavam presentes, mas até um tanto indiscreta pousava em um soldado, ao fundo do salão, próximo à entrada. Ele tinha a farda muito bem alinhada, um copo de whisky ao lado, olhando-a com os dois braços sobre a mesa, deslumbrado com sua beleza; o semblante sério dele parecia enfeitiçado por aqueles olhos, pela a voz, a boca, a pele branca.... O conjunto inteiro era de fato uma obra, deveria ter sido uma obra esculpida pelas próprias mãos dos anjos, ele pensava, de tão perfeita.
J - Está bem, Marguerite, estamos aqui dentro. Acho que já pode me identificar, não pode?
M – Espera, você é ele?
J - Depende de a quem se refere?
Marguerite apontou para o soldado que estava mais vidrado que os demais na cantora.
M - Aquele.
J – É, acho que acertou.
M - Ah não foi difícil, foi só procurar o que estivesse como um lobo esfomeado olhando para a cantora.
J - Acho que não preciso responder. Aliás, você me achou, mas eu ainda não te localizei.
M - Hahaha é simples, é só ver a direção para a qual você mais novo estava olhando.
J - Espera, você? A cantora?
M - Existem muitas coisas sobre mim que você não conhece, Lord Roxton. Eis mais uma.
J – Era você?!
M - Você está vendo outra mulher por aqui?
John estava perplexo. Comparava a Marguerite ao seu lado com aquela no palco, aquela que naquela noite havia mexido com seu coração; mas este era um segredo seu que ele pretendia guardar pela vida toda. Finalmente, ele via que a cantora era mesmo a herdeira; os olhos, como podia ter esquecido aqueles olhos? Mas ele mesmo admitia que ela estava diferente, linda como sempre, mas a cor do cabelo era outra, estava mais magra também na época (é provável que por causa das viagens ou por ter que manter-se escondida). Mas era ela. John também estava diferente naquela época: ainda usava bigode, não era um bigode cheio por conta de suas funções; também mais magro; a fisionomia podia-se dizer que naquele dia estava um tanto judiada, a expressão mais carregada, mas ainda assim dono de um charme sem igual.
J - Marguerite, eu ainda não acredito. Quer dizer, você tem noção do que causou em mim nessa noite?
M - Não e nem me importo em saber. Na verdade, nem era para estarmos aqui. Mas já que estamos, agora... Shhh... Quero ouvir a música.
John não respondeu, também queria vê-la cantando, até porque ele mesmo se lembrava de cada detalhe e agora podia reviver aquele momento de sua vida. Por várias vezes quando estava em apuros ele se lembrou daquela voz, se lembrou de quem a cantava. Todos os soldados estavam certos, era uma voz diferente, era a voz da alma e sempre o acalmava, sempre o fazia pensar direito, ser racional quando precisava.
A Marguerite cantora tinha acabado de finalizar uma música, estava tomando um gole de água, retirava as luvas, pois o lugar estava quente e abafado. Ela deu alguns toques no microfone, fechou por alguns instantes os olhos, respirou fundo e soltou a voz. Ela usava um tom um tanto mais grave, encarava a plateia com os olhos serenos, mas por diversas vezes pousando no soldado que lhe havia chamado a atenção. A voz cheia de emoção, tomando conta de todos e mais uma vez surpreendendo seu público.

Eu sonhei um sonho num tempo que já se foi
Quando esperanças eram grandes e valia a pena viver
Eu sonhei que o amor nunca morreria
Eu sonhei que Deus seria misericordioso

Ainda nos primeiros versos da música, Marguerite experimentava uma sensação que antes nunca tinha sentido, estava se vendo cantar, podendo ver a emoção e reação daqueles que a viam também, podia ver a admiração em cada olhar, em cada rosto, também sentia-se como se estivesse de volta ao passado, como se estivesse lá no palco, cantando, podendo ter aqueles poucos momentos felizes, principalmente naqueles tempos de guerra que haviam lhe tirado tudo, muito mais do que dinheiro, mas a dignidade, a inocência de uma garota e até mesmo os sonhos.
Sem perceber, a herdeira estava cantando ao lado de John; lágrimas rolavam involuntariamente por seu rosto, sua voz, ainda que embargada pela emoção, pela sensação e por todas as suas lembranças ali despertadas, saía nítida.
O caçador deixou de admirar aquela Marguerite mais nova, que se apresentava no palco, para poder observar Marguerite do presente, do aqui e agora, como ambos costumavam falar, mais velha, mais madura, mais bela e até mesmo com mais cicatrizes, cantando ao seu lado. A voz que tanto recordava, que tanto lhe acompanhou por vários momentos, estava ali diante de seus olhos.

Então eu era jovem e destemida
Quando sonhos surgiram e foram usados e desperdiçados
Não havia nenhum resgate a ser pago
Nenhuma canção não cantada, nenhum vinho intocado

Mas os tigres vêm à noite
Com suas vozes suaves como trovão
Enquanto eles despedaçam sua esperança
Eles transformam seus sonhos em vergonha

E ainda assim eu sonhei que ele viria até mim
E que viveríamos os anos juntos
Mas há sonhos que não podem se realizar
E há tempestades que não podemos prever

Eu tive um sonho que minha vida seria
Tão diferente deste inferno que estou vivendo
Tão diferente daquilo que parecia
Agora a vida matou o sonho que sonhei

A guerra havia tirado não só de Marguerite, mas de muitos que estavam ali. Muitos tinham perdido suas vidas, muitos haviam perdido tudo; agora o que um dia tiveram não passava de um sonho, amores, família, dignidade, juventude. A guerra não destruiu só nações, mas destruiu homens, destruiu sonhos. Muitos também haviam se vendido, alguns pela ambição e outros para sobreviver. Mas todos ali haviam perdido algo. Aquela música, naquela noite, inspirou muitos; fossem soldados, combatentes, oficiais ou mesmo aquela que cantava, todos clamavam pela chegada de um novo ano que para alguns seria como um recomeço, para outros era apenas mais um dia; de certa forma isso não importava, não se tinha muito o que comemorar.
Todos os presentes aplaudiram Marguerite (cantora) em pé, alguns até lhe jogavam flores, outros, aqueles que se lembravam do que haviam perdido, choravam. Sim, ela sabia como tocar-lhes usando apenas a voz. A própria cantora deixou algumas poucas lágrimas escaparem, mas logo os cumprimentou e se despediu, muito ainda a esperava naquela noite, era só mais um dia de trabalho para ela. Em meios aos aplausos e assobios a herdeira despertou de seu transe, percebeu que a cantora já estava se retirando e quando levou suas mãos ao rosto viu que tinha chorado e, pior, tinha chorado na frente de John, tinha acompanhado e cantado junto. John, por sua vez, apenas a olhava, não tinha o que dizer, aquela data tinha sido igualmente difícil para ele; mas não era por conta da data que ele estava pasmo, era por conta dela. O caçador não podia negar que se havia alguém que lhe partia o coração, esse alguém era Marguerite.
Porém, durante um tempo, ambos ainda observando todo o cenário, calados, evitavam se olhar ou mesmo se falarem, tudo o que viram tinha sido demais para eles. Antes que percebessem viram tudo se apagar, era sinal de que a noite havia acabado, que tudo estava terminado.
M - Pensei que isso não acabaria nunca. Vamos?
J - Marguerite, antes de irmos, existe algo que preciso lhe perguntar.
M - Hum?! Por que será que eu achei que estava fácil demais... Bem, você irá perguntar da mesma forma, tanto faz eu deixar ou não. Então faça logo.
J – Por que nunca me contou que sabia cantar? Cantar tão bem. Por que nunca dividiu esses segredos comigo?
M - Primeiro que nem você, nem ninguém da casa da árvore me perguntaram um dia se eu sabia ou não cantar. E outra que isso agora não faz diferença nenhuma para você, não fez antes e não fará agora. Vamos, chega disso. Tudo o que mais quero é um bom banho quente e uma cama para relaxar.
Antes mesmo que John respondesse a herdeira pegou em seu braço, se concentrou unicamente no platô e antes que pudessem perceber já estavam próximo a cerca elétrica da casa da árvore. John, claro, se surpreendeu pela mudança repentina, mas logo se deu conta do que a herdeira havia feito, ela havia provavelmente se estressado em ter mais uma parte de seu passado exposta e agiu depressa.
Marguerite, sem mais nem menos, já seguia em direção ao elevador quando sentiu um puxão no braço, fazendo-a girar sobre os pés, trombando com John que estava parado diante dela. E ele, claro, tinha sido o responsável pelo puxão.
M - O que quer?
J – Marguerite, você se lembra de quando lhe falei que nenhuma mulher antes havia partido meu coração?
M - Hum... E o que isso tem a ver comigo?
J - Ora, tudo. Você sabe muito bem que você, Marguerite, foi a única mulher que partiu meu coração; só não contava que tinham sido duas vezes.
M - Duas vezes? E outra, eu não parti seu coração, você mesmo fez isso.
J – Duas. Jurei manter em segredo, mas aquela cantora, você... Eu fiquei até o final da noite esperando para ver se você iria aparecer de novo; quando não o fez, percebi que você havia esquecido ou deixado cair uma de suas luvas e eu a guardei comigo. Não sei porquê, mas sempre que lembrava de você, sua voz, seus olhos me fitando, olhos tão profundos, sua boca, sua pele... Bem, sempre que me lembrava de você eu me sentia bem, sentia meu coração se encher, já não era mais vazio, eu não me sentia mais sozinho e sabia que se um dia pudesse realizaria todos os seus sonhos. E agora, aqui no platô, partiu de novo quando eu disse pela primeira vez que te amava e você me revidou falando que não podia; eu me senti sem chão, senti como se meu sonho fosse tirado, arrancado de mim. E agora eu descubro que você era ela. Marguerite, eu não te amei apenas uma vez, eu te amei antes de você chegar definitivamente na minha vida.
M - Tarde demais para declarações, Lord John Roxton. Não retiro nada que lhe disse, apenas reforço que nenhuma dor que esteja sentindo chega perto da minha, do que você me fez, apenas para lembrá-lo.
O caçador a puxa mais próximo de si; podia ceder às suas vontades e lhe tomar os lábios, podia ver o desejo de Marguerite também, embora suas falas fossem duras, seu coração estava cedendo, ou melhor, estava se curando. Sabia que tal declaração a havia deixado um tanto perturbada, mas acima de tudo sabia que aquele ainda não era o momento. Ele iria esperar, iria pensar, trabalhar, tinha que ter um modo de que ela pudesse ver o quanto estava arrependido.
Ele sabia muito bem que a fala de Marguerite, que suas expressões podiam mentir, mas nunca os seus olhos; eles nunca mentiam, sempre falavam o que o coração sentia e o que ela tentava esconder. Então, olhando um dentro do olho do outro, ele fez a pergunta:
J - Eu me lembro disso todos os dias, não preciso de ninguém para reforçar. Mas, me diga, diga olhando nos meus olhos que tudo o que fomos não significa nada, que você não me ama mais. Sem jogos, sem mentiras.
A herdeira estava surpresa, não esperava aquilo, ela sabia que se tinha alguém que ela não poderia enganar esse alguém era John e se ela lhe respondesse a verdade estaria entregando os pontos, mas se mentisse ele também a pressionaria até que falasse a verdade.
M - Eu... Eu...
C - John, Marguerite! Graças a Deus, aí estão vocês. O que houve? Por que demoraram tanto? Estávamos preocupados já.
Subitamente o cientista os interrompeu, aliviando Marguerite de qualquer resposta, de qualquer satisfação que tivesse que dar para o caçador.
John logo soltou o braço da herdeira e ela, mais do depressa, se distanciou, evitando olhar para ele, pois não queria que percebesse o quanto suas perguntas a abalaram, embora desconfiava que ele já havia percebido.
M - Quer saber o que houve, Challenger? A volta pra casa deu tudo errado, fomos parar em outro tempo, outro lugar. Esqueça voltar para casa tão cedo. Não enquanto eu não tiver total certeza do que estou fazendo, não vou mais viajar assim. Não é seguro.
A herdeira apressadamente subiu deixando ambos ainda lá próximo a cerca apenas a observando.
C – John, o que aconteceu?
J - Lá em cima eu te conto, George, lá em cima. Mas, por hora, só lhe adianto que talvez Marguerite esteja certa, ainda não é seguro.
Marguerite, no andar de cima, passou por Verônica e Malone batendo os pés, sem nem sequer dar atenção ao casal, e rumou para o seu quarto. Não queria mais ver ninguém naquele dia.
Quando John e Challenger subiram, Verônica e Malone já os aguardavam com alguma explicação.
V – John, o que houve? Aconteceu algo errado, não foi?
J - Aconteceu sim. Na nossa volta para o platô, por algum descuido ou mesmo falta de experiência, pois como a própria Marguerite havia falado não sabia se ainda estava preparada, fomos parar como fantasmas, por assim dizer, na Alemanha, durante a guerra. Alguma lembrança dela ou minha, pois ambos estávamos lá e, bem, só conseguimos voltar agora.
N – Espera, então quer dizer que vocês já se encontraram antes?
J – Já, Ned, mas não tínhamos sido apresentados ainda.
C - Mas isso é fascinante, é incrível! Marguerite tem um poder em suas mãos que, pode-se dizer, tem limites imensuráveis.
J - É sim, Challenger, mas é arriscado demais. Até que ela aprenda um pouco mais sobre o domínio do medalhão, não sabemos quais são esses limites.
V - Isso é verdade, Challenger, talvez isso leve um pouco mais de tempo.
C - Bem, acho que estão certos. É melhor eu conversar com ela.
V - Challenger, não. Algo a perturbou nessa viagem, ela passou por nós, mas nem sequer nos viu chamando, ou pelo menos fez que não viu. Dê mais tempo para ela, sabe como Marguerite é.
J – Sim, George. Além disso, eu tive uma idéia, mas vou precisar de todos vocês. Preciso reconquistar Marguerite, ou pelo menos ter uma chance de conversar com ela, explicar tudo o que aconteceu. Mas não sei o que fazer, nem como fazer.
V - Bem, talvez se desse um tempo a ela, um tempo para que Marguerite colocasse sua cabeça no lugar e você também, John, vocês precisam disso.
C - Verônica está certa, meu velho; o tempo pode ser inimigo ou parceiro vai de você decidir como irá usá-lo. Eu creio que nesse momento só podemos esperar, vocês dois, no caso. Dê tempo ao tempo, John.
J - Acham que isso pode ajudar? Que pode trazê-la de volta?
V – John, trazê-la de volta eu não sei, mas se precisar, se nada adiantar, você tem a nós, iremos te ajudar. Mas nesse momento é a única escolha que eu vejo.
J - Está bem, irei respeitar o tempo de Marguerite, irei respeitar seu espaço e privacidade. Mas, juro por Deus, Verônica, que não irei perdê-la. Eu a amo, amo mais do que minha própria vida.


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Notas finais do capítulo

Música original: I Dreamed A Dream
Filme: Os Miseráveis - Ano de 2012.



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