Segredo Virtual escrita por Alehandro Duarte


Capítulo 39
2º T: Capítulo 14 Banheira Vermelha


Notas iniciais do capítulo

Após a morte de Lícia e a falta de suprimentos se tornar prioridade na vila, Lídia decide tomar uma atitude.



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Os olhos castanho escuro de Sara refletiam o fogo da fogueira recém alimentada de mais alguns gravetos. A fumaça fugia pelo teto sem cobertura alguma naquele cômodo grande de uma das casas da vila. Ela e as outras dez pessoas presas na ilha(ainda vivas) decidiram passar a noite no mesmo cômodo e com duas pessoas vigiando, caso uma delas caísse no sono. Tinha pegado o segundo turno parecia fazer já duas hora, porém não tinha relógio algum para contar, ou mesmo um método através da Ursa Maior, o céu não tinha estrelas. Aquela era a parte que mais a fascinava nas circunstâncias em que estavam, era tudo iluminado normalmente, mas sem sol ou constelações. Nem mesmo nuvens via mais. Afastada de Sara, Marina que tinha acabado de trocar de lugar com Godobllir, encarava-a com desprezo.

— Ei!- Falou, baixando um pouco mais a voz ao continuar.- Como se sente sendo uma cuzona? Espero que tire a gente dessa.

A outra vigia não deu bola, se ocupava olhando as chamas com apenas um dos olhos, enquanto o outro era tampado por seu cabelo caído sobre o rosto. A médica não segurou a língua, botava excepcionalmente  a culpa nela:

— Ele vai te pagar quanto por esse joguinho novo? Vai te dar uma mansão na Inglaterra? Ou você é apenas a putinha de estimação por puro prazer?

Se alguém estivesse ouvindo, não se levantaria para interromper aquela discussão, todos tinham dúvidas sobre o lado em que Sara podia estar, ainda mais depois de tudo o que contou.

— Abre a porra da boca e fala o que ele mandou você fazer aqui.- O pouco caso dela a irritava.

Ainda em olhar calmo, Sara não desviou sua atenção para a mulher provocadora, talvez o sono não a permitisse dialogar, ou apenas o bom senso. As duas estavam sentadas no meio de vários corpos inconscientes. Um deles, como o de Marcos, não tão inconsciente assim.

— Se dependesse de mim você estaria sem suas pernas agora. Seriam arrancadas e fatiadas até falar alguma coisa útil. Eu não caio na sua historinha de que só te contaram isso.

Sara jogou mais um graveto, do montinho ao lado, no fogo.

— Não preciso te provar nada.- Murmurou, sem olhar para ela.

— Se não precisasse eu não estaria cobrando, monte de merda.- A expressão em seu rosto era de raiva, que às vezes se decepava em ironia.- Teve um caso com ele, não é?- Um sorriso abriu entre os lábios vermelhos dela.-Como putinha, ele te comia bem nesse meio tempo? Sei que é uma bichona, mas os homens não exigem muito...

Sara respirou fundo, as palavras dela estavam indo ao estupor. Marina deu uma risadinha.

— Ai, Sara. Preferia você em coma. Era menos inútil, pelo menos era fofa.

Foram 10 anos. Uma década perdida. Se não tivesse pulado do penhasco com o Jason, as coisas teriam sido muito diferentes? Ou apenas pequenas mudanças que mesmo assim os trariam até o ponto em que chegaram? Infelizmente não tinha conhecimento de nenhuma máquina do tempo construída por Dylan ou uma realidade paralela.

— Vai ser uma longa noite, então...- Antes que Marina pudesse continuar, Rafael que dormia ao lado de Sara se levantou, salvando sua madrugada.

Ele olhou ao redor, esfregou os olhos e sorriu para as duas.

— Eu assumo daqui.- Disse Rafael, dando deixa para a vigia mais antiga ir se deitar.

Se perguntaram se ele tinha ouvido alguma coisa. Sara assentiu, dando a primeira e última olhada da noite em Marina, indo adormecer para ter força para aturá-la de manhã.

 

 

Naquela primeira noite não tinha conseguido pregar os olhos. A mente de Rose trabalhava a todo vapor, procurando uma saída daquele castelo. Tinha um relógio pregado na parede(ao menos que estivesse muito dispersa, não estava ali antes), com uma coruja desenhada sob os ponteiros, ele indicava 4:15 da manhã. Se levantou da cama e foi até o banheiro. Era espaçoso, com uma banheira de hidromassagem, um vaso sanitário, um armário na parede com algumas toalhas, um cesto de roupa suja, cabideiro e uma pia. Demorou um pouco para aprender a mexer nos botões da hidromassagem, mas conseguiu colocar água quente com bolhas de sabão e mergulhou nela. Sempre dava espiadas para trás enquanto se lavava, não queria ser surpreendida pelo assassino em uma tentativa de afogamento. Sua menstruação atrasada desceu após o banho. Felizmente, em uma das gavetas embaixo da pia, tinha um saco com absorventes. Parecia até que tinham acertado a marca e o tipo que usava. Em cerca de meia hora tinha terminado o banho, se vestido e penteado o cabelo. Ainda assim, sem sono algum. Usava um vestido preto com algumas flores rosas estampadas, sua juba ruiva ainda meio molhada, e seus pés descalços. Apoiou o ouvido na porta, tentando escutar um mísero passo. Abriu uma fresta, deixando a luz noturna do lado de fora entrar. As lâmpadas tinham ganhado uma iluminação azul. Com calma saiu de seu quarto, andando quase que na ponta dos pés. O corredor estava vazio, e o único som que vinha era de pequenos barulhinhos do andar de cima. Foi pelo corredor do lado direito, qual tinha usado na tentativa de fuga. Agora, não tinha mais disposição para sequer pensar em planos, precisava era de um pouco de ar. Se aproximando da sacada, viu que as portas já estavam abertas, deixando passagem para a luz da lua. Imaginava quem poderia estar desfrutando do luar. Entrando calmamente na sacada, olhou para Luke, de costas para ela, encarando o céu como se estivesse hipnotizado.

— Ei.- Rose chamou, colocando a mão em seu ombro.

Luke se virou, levando o braço até os olhos para enxugá-los, havia chorado um pouco. Ela tentou sorrir, mas não conseguia confortá-lo.

— Sei como se sente.- Ela disse, dando-lhe um olhar sereno.- O seu noivo estava na cidade. Meus pais também. Mas acredito que... estão a salvo. Todo mundo que amamos vai ficar bem, precisamos...pensar positivo.- Falou, alisando uma de suas bochechas.

— Eu só consigo pensar nele.- Murmurou.

Ela o abraçou. Foram longos segundos, os dois precisavam de um resquício de calor humano, de um colo para chorar. Abriu os olhos, o céu não tinha estrelas, nem conseguia ver a lua, apenas lá embaixo aquelas lápides cruéis a encarando.

— Não é estranho estarmos no meio de uma ilha e não conseguirmos ver as estrelas?- Perguntou Rose.- Até na cidade a gente conseguia ver algumas.

Ela tocou uma das flores no vão, admirando para se distrair dos pensamentos da cidade destruída. Ela era branca, mas havia uma linha vermelha, como se tivessem deixado cair tinta em uma de suas pétalas. O abraço se desfez, e os dois suspiraram juntos.

— Vamos ficar bem.- Tinha um certo tom de dúvida em suas palavras.

Ouviram passos, se viraram receosos, mas fora apenas um guarda que passou direto. Dylan os tinha deixado passear pelos corredores, porém não possuíam muita confiança nisso. Pelo menos tinham ali, uma pequena brecha para o mundo além do castelo. Um mundo que não conheciam, mas seus pais o estavam conhecendo.

 

 

Diante do céu amanhecendo, os membros da vila foram acordando, prontos para voltar ao novo habitual inferno. Daniel foi o primeiro a levantar-se, indo direto para o armazém. Suas preocupações estavam principalmente na comida, que haveria de acabar em uma semana, se economizarem até o limite: dez dias. Não era nem um pouco suficiente para quem foi recém colocado numa ilha bem grande. Porém, o maior de todos os problemas certamente era a água. A princípio, parecia bastante os oito galões(se é que podia chama-los assim) com dezesseis litros d'água no total, se não houvessem onze pessoas para bebê-los. Em média, a quantidade de água que cada um precisa por dia varia do peso, do clima, metabolismo, estado geral. Era fácil fazer o seu próprio gráfico de consumo, tinha aprendido com Ellen em uma situação aleatória no Cold Blood, mas o de mais de dez pessoas ultrapassaria a quantidade que tinham para beber, que em menos de um dia, já baixou para doze litros. Não tinha como continuar dando muito menos de um litro por pessoa todo dia, não se quisessem explorar e sobreviver muito mais. O dia não era assim tão quente, não o de ontem, mas e se começasse a ficar? Pegou um dos doze copos de vidro que tinha no depósito, enchendo-o de água com menos do que um dedo. Bebeu aquela miséria de líquido, já pensando que aquilo acelerava o tempo de vida que os restavam. E ainda tinham as armas a serem feitas. Deixaria isso com Rebeca, ela era a melhor em improvisar e criar no Cold Blood, sabia disso sem nem mesmo ter convivido com ela. Os espelhos enormes serviriam para algo ao menos. Também tinha a questão do mapa, dos seus filhos bem longe dali, da cachoeira que encontrou e podia salvar a todos. Por onde começar? Era tanta coisa a ser feita, revisada, pensada... estava exausto. Ao redor de seus olhos tinha uma palpitação estranha, pulsante. Podia confiar em Godobllir e os homens que ela trouxe consigo? E em Sara? Quanto ao céu, por que não viam sol ou estrelas? O que tinha do lado de fora da vila de casas? Aonde é que estavam? Seu cérebro se encontrava transtornado com tantas indagações e obrigações. Só queria deixá-las explodir, mas tinha o dever de proteger a todos, queria isso também. Apertou o copo, assim como seus olhos. Se lembrou do cheiro de café, do som da campainha da porta, de seu funcionário tagarelando com o namorado, do pão saindo do forno, dos bocejos pela manhã. Foram momentos tão bons, era feliz naquilo, tão feliz. Agora, tudo virou fumaça. Não existia mais uma cafeteria, apenas escombros do que um dia fora um lugar muito especial para Daniel. Dylan tinha destruído tudo, absolutamente tudo! Da casa em que moraram até onde trabalhavam. Não restou nada. O copo quebrou em sua mão, ele largou os cacos para que caíssem no chão, um adentrou em sua carne, furando-a. O sangue escorreu até o pulso, da onde começou a pingar para fora. Daniel levou a mão até a boca, sugando o local do ferimento. Enquanto sangrava, analisava a coloração avermelhada bonita, talvez soubesse apreciar sangue como uma terapia assim como um genocida, mas com certeza não era igual a ele. Estava muito a frente de alguém que coloca pessoas presas em uma ilha.

 

 

Passado algum tempo desde que acordou, Marcos enrolava o dedo nas pontas de seu longo cabelo, olhando ao longe seus companheiros se aproximarem. Não era de muito papo, tinha maior habilidade em fazer do que falar. Por isso era bom em gerenciar seu bar. Mesmo com o maço de cigarros cheio, estava economizando, e não daria nem um trago para ninguém, ao menos que recebesse algo em troca. O vício em nicotina era o maior problema a ele quando o assunto eram ilhas desertas, a abstinência dos cigarros o enlouqueceria.

— Ele tem um grande problema.- Sussurrou Godobllir, chegando ao ouvido do Guy Blood sem os trajes.- A água vai acabar logo. Você e Eléxeu vão se voluntariar pra ir atrás de mais.

— Tá louca? A gente nem sabe o que tem aqui.- Respondeu Noel, percebendo que se não protegesse os outros, a próxima vítima seria ele.

— Nada vai acontecer, não seja um covarde. Eles estão mortos, não a gente.- Prosseguiu a líder.- Vou convencê-lo a aceitar vocês dois, ou talvez nem precise. Provavelmente vão com mais uma ou duas pessoas. Acho que aquele que anda com a garota que o Dylan sequestrou.

— Por que não o Daniel?- Perguntou Eléxeu, sendo atingido pela fumaça do cigarro.

— Ele vai querer, mas a esposa não vai deixar. Ela é um pé no saco. E ele também vai bancar o líder.

Godobllir viu Rebeca entrando novamente na Vila Sanru.

— Essa também é um pé no saco. Ela conhece as camadas superficiais da organização, ao menos pelo o que ele nos contou.

Na casa de um cômodo só, Sara tinha ido até Daniel(agora bem melhor),precisava falar com ele algumas coisas que percebera, como a falta de insetos, e os pouquíssimos pássaros que via e ouvia, muito semelhantes a melros(pelo que ela sabia, esse animal estava bem longe de ser normal ser visto nas Américas, sendo mais propícios na Europa e na Ásia). Eles conversaram mais sobre as pessoas que estavam com eles, sobre o mapa da ilha, até que enfim chegaram na questão da água. Ele contou que não sobreviveriam por muito tempo.

— Tem uma cachoeira ao leste da ilha, mas fica longe, não tenho muita ideia do tempo que gastaria pra chegar lá. Mas se a gente não fizer nada...

— A gente morre, como sempre.

 Ele assentiu. O plano que Godobllir supôs que aconteceria, passava fortemente pela mente dele.

— E as barrinhas de cereal não alimentam ninguém de verdade.

— É, eu também não vi nenhuma árvore com frutos, e mesmo se achasse eu não comeria.

Daniel refletiu sobre as barras de cereal, quando o tema virou a comida.

— A Rebeca provavelmente não pode ficar muito tempo comendo isso.

— Por quê?

— Eu sou diabética, Sara.- Rebeca colocou a cabeça para dentro da sala. Por um momento, Sara pensou que ela poderia a estar seguindo.

— Tô te seguindo.- Disse com um sorriso no rosto.

Daniel achou graça, mas não esboçou riso.

— Chame um pessoal pra fazer as armas com você.- Disse ele.

Rebeca assentiu, se retirando e pensando no que fazer com madeira e cacos de vidro.

 

 

Ouviu uma batida na porta. Rose sentou na cama, vendo o guarda adentrar em seu quarto.

— Me acompanhe por favor, Senhorita Lídia.- Falou o guarda loiro, com uma lança de quase o seu próprio tamanho.

Rose calçou uma pantufa de coelhinhos(o animal favorito de sua mãe), se levantou da cama e caminhou calmamente para fora de seu quarto. O guarda olhou ao redor do cômodo, não notou nada de anormal e fechou a porta. O garoto de cabelo azul era o único com ela no corredor, além de outro guarda, não via mais ninguém de seu grupo.

— Ei, sentinela!- Chamou o garoto, se referindo ao outro guarda que lhe abordou.- Pra onde vão levar a gente?

Nenhum dos dois disse sequer uma palavra, apenas levaram o casal pelos corredores do castelo. Rose olhou fixamente para ele quase o caminho todo, tentando achar um bom momento para perguntar seu nome. Tinha sido dito antes pelo psicopata, mas não se lembrava. Era evidente a atenção que o cabelo azul e seus modos estranhos despertavam nas pessoas. Ele nem mesmo era conhecido por alguém de lá, a não ser, claro, Dylan. E se fosse uma ameaça? Nada vindo de Dylan podia ser bom. Ele percebeu que a garota ruiva o encarava.

— Kauan.- Falou, sem motivo aparente.

— O quê?

— É o meu nome.- Um sorriso malicioso, porém fofo, surgiu em seu rosto.

Pararam em frente a uma porta, o guarda que buscou Rose abriu-a, orientando para que os dois entrassem. Em passos hesitantes, a ruiva adentrou naquela sala pequena. Nela encontrou todos os seus amigos sentados em volta de uma mesa, com 3 seringas distribuídas formando um círculo com uma arma no meio dele. Ao olhar para o lado, viu um telão desligado que ocupava quase toda a parede na qual estava pregado. Uma mulher com roupa de enfermeira ficava parada no fundo da sala, enquanto quatro guardas faziam suas posições perto da porta recém fechada. Kauan sentou de frente para Rose, ela que teve sua mão agarrada por Leonardo, quase como um pulo. Ele olhava para ela ao lado, com medo, como se um mal pressentimento preenchesse sua mente.

— O que foi?- Ela sussurrou.

Leo largou sua mão, olhando para Clara logo a frente. O telão ligou, nele apareceu o grande rei do castelo, mostrado dos ombros para cima. Estava na sala do trono, olhando fixamente para a câmera. No fundo, seu conselheiro com o cetro. De repente ele abriu um sorriso largo, assustando Ramona.

— Sejam muito bem vindos, meus convidados.- Iniciou, com sua típica voz cínica.- Hoje nós vamos jogar um dos meus jogos favoritos: Roleta Russa.

As expressões e sons eram dos mais medrosos. Anya deixou todas as lágrimas que já estavam para sair, caírem. Luke desviou o olhar, vendo Kauan fitando a tela como senão fosse nada demais.

— Tenham calma. Não é esse tipo de roleta russa que estão pensando. Essa é bem mais interessante, provinda do meio de execução das prisões estadunidenses. Gosto de chama-la de "Três Passos Conduzem à Morte".

— Puta que pariu.- Murmurou Leonardo, virando os olhos para a mesa e se lembrando de como os criminosos eram abatidos nas prisões do Estados Unidos.

Rose percebeu o espanto, mas ela não conhecia o motivo.

— Funciona assim: Na mesa há três seringas formando um círculo, como podem ver, na qual dentro tem uma arma. Um guarda girará o revólver e em quem ele parar, a primeira seringa vai ser injetada, e assim por diante até a terceira pessoa e terceira seringa.

Um calafrio tomou conta da sala.

— Na primeira injeção contêm analgésicos, a única coisa que faz é adormecer, quem receber vai apagar. Na segunda injeção a pessoa receberá um paralisante que para algumas funções motoras, mas não se preocupem, por mais que a pessoa pare de respirar, dá tempo para a terceira injeção acontecer e após ela prestarmos o socorro. Não posso dizer o mesmo da última, a pessoa que pegá-la vai estar, digamos...Muito ferrada.- Ele deu uma risadinha.- É quase como um fogo líquido, ele não tem cheiro, nem cor. É cloreto de potássio.

Ninguém ali tinha prestado muita atenção nas aulas de química, pelo contrário. Porém tinham certeza que estavam sem sombra de dúvidas, fudidos.

— Vamos começar?

 

 

Rebeca usava um caco de vidro para transformar um pedaço de madeira em uma lança, ou talvez uma flecha, nem ela sabia o que estava fazendo. Marina a estava ajudando, trazia um tronco pequeno que achara caído, nos braços. Marcos também afinava a ponta da madeira, se perguntando senão teria como transformar os vidros em armas, em vez de usá-los para fazer armas, mas resolveu não falar nada, não tinha nada a perder ou ganhar mesmo. Ter feito parte do Cold Blood tinha suas vantagens sobre anatomia, luta corporal e sobrevivência, mas não em ilhas desertas, nessa matéria Rebeca nunca chegara.

— É muito chato fazer isso, eu tô cortando mais a mão do que afinando essa merda.- Reclamou a ex girl blood, parando de fazer o trabalho.- Se a gente pegar pedaço de tijolo, será que corta melhor?

Marcos ignorou o comentário, continuando sua monotonia.

— Por mim a gente já tinha saído daqui.- Marina argumentou.

"Hipócrita", pensou Rebeca. Mas todo mundo estava mudando de opinião bem rápido naquele lugar.

Daniel procurava um momento certo sobre comentar o plano de deixar duas ou três pessoas de seu grupo saírem atrás da suposta cachoeira de água potável. Não achava que Dylan mentiria, mas com certeza não deixaria as coisas tão fáceis. Ele tinha medo da responsabilidade que ele mesmo assumiu, e não tinha Lídia para apoiá-lo, ela estava presa em sua própria mente, pensando e pensando. Cansada de ser forte e ter que continuar sendo. Ele admirava isso nela, mas também o cansava.

— Eu...- Daniel começou, sentado na cadeira, sozinho com a esposa na casa de um cômodo só.- Nós vamos mandar três pessoas atrás de água.

Ela não respondeu, nem expressou reação. Sua atenção estava voltada ao mapa esticado na mesa, tentando entender algo além das teorias de Daniel sobre um castelo e uma cachoeira.

— Vou reunir todos e explicar isso. Acho que até dois dias é o suficiente, um pra ir e outro pra voltar.

Lídia nem parecia estar lá. Suas olheiras fundas e escuras só fitavam o papel a frente. Daniel rediscutiu em pensamentos o seu plano. As respostas para as perguntas que fariam, os detalhes, a quantidade de suprimentos, quem escolher se ninguém se oferecer. Só não sabia como se defender se alguém o perguntasse o porquê dele não ir no lugar de alguém. Nem ele sabia a resposta, quem sabe fosse medo de morrer, ou coragem por ser um líder. Se fosse confrontado por alguém a ir afundo nesta ilha misteriosa, será que iria?

— Vou lá tentar reunir todo mundo.- Ele se levantou, indo em direção a porta.

Lídia abriu a boca para falar algo, mas pensou melhor e a fechou. Não era a hora. Andando pela vila, Daniel via quase a maioria dos seus companheiros ocupados com algo. Se sentia um pouco menos sufocado por respirar melhor fora de um cubículo. Por mais que estivessem presos ali, ainda assim tinham a natureza ao redor. Ele se encostou em uma parede, fechou bem os olhos e inspirou bem, bem fundo. "E senão houver a cachoeira? Pode ser uma armadilha? Essas pessoas morrerão". Soltou o ar. "Ok, não tem como ganhar nada sem arriscar suas fichas. Mas será que eu estou apostando certo?".

— Gente! Eu achei armas!- Gritou Rafael, saindo agitado de uma das casas, chamando todo mundo com os braços balançando no alto.

Todos puderam ouvir aquela bênção, mas não pareciam muito empolgados, precisavam ver para crer.

— Ô, glória.- Disse Rebeca, jogando tudo pro alto e indo correndo atrás do que seria um grande achado.

Pelo menos ela se mostrava entusiasmada. Os jogadores entraram na casa, viram um baú dentro de um piso falso, e o que ele continha.

— Enfia essas espadas no cu, Dylan.- Marina se agachou para pegar uma das prováveis doze espadas que tinham lá dentro.- Alguém sabe usar isso?

— Quem fez parte do Cold Blood sabe.- Afirmou Daniel, olhando para Rebeca que era o mais próximo membro que conseguia encontrar.

— Já fiz aulas de esgrima.- Eléxeu mencionou.

— Também sei usar espadas...- Marcos falou, obrigado pelas cutucadas de Eléxeu.

— Era mais fácil ter dado revólveres.- Reclamou a mesma pessoa da outra vez.

Godobllir, além de seu trio de homens, também sabia manusear espadas. Marina apontou a lâmina na direção de Sara, encostando a ponta afiada em sua barriga.

— Acho que quero uma bolsa nova com pele de cobra pra quando sair daqui.

Daniel logo interveio, pegando a arma das mãos dela e devolvendo com certa brutalidade para o baú. Rafael se colocou na ocupação de contar as espadas e procurar mais coisas dentro daquele piso que nem era tão fundo. Enquanto isso, Daniel fora reunir todos os outros no pátio, pronto para ouvir um monte de vozes, uma se sobressaindo sobre a outra.

— Então...- Ele começou, e a partir daí teve que explicar seu plano, e mais de uma vez.

 

 

Eles se entreolharam com seus olhos arregalados. Dylan sorria no telão, enquanto os guardas continuavam aos postos, esperando alguma ordem. Tudo o que entenderam é que iriam morrer, não havia nada mais horripilante do que pensar nisso.

— Alguém quer fazer as honras de girar a arma?- Perguntou o sádico do telão.

Claro que ninguém se propôs a girar a arma de fogo que os mataria. Esperou mais um pouco. Sem ter resposta, acenou com a cabeça para que um guarda fizesse a tarefa. Luke o viu se aproximar, tirando a arma do círculo das seringas, e a centralizando na mesa, enfim a girando. Clara, Ramona e Anya fecharam os olhos bem fundo, sem quererem ver em quem aquela arma iria mirar. Leonardo engoliu a seco. Rose sentiu calafrios nas costas, tentando tirar a atenção daquela cena, mas seu corpo estava muito vívido ali. Cada segundo em que girava, parecia com um minuto, um minuto tenso e desesperador. Aos poucos parou de girar, causando pequenos sobressaltos de coração.

— Jason!- Anunciou Dylan, fitando Clara. Imóvel, suas lágrimas caíam pelas pálpebras fechadas.

A enfermeira pegou a seringa com o sonífero, se aproximando da menina paralisada. Antes que pudesse injetar, foi acertada na barriga pela cabeça da garota, que rapidamente se levantou e tentou fazer algo útil, algo que a salvasse. Um guarda a pegou por trás, e a enfermeira de cara fechada aplicou a injeção com brutalidade em seu braço. Tudo aconteceu rápido demais para que os outros pudessem ajudá-la.

— Pra quê tanto drama? Só a colocamos para dormir, todo mundo gosta de dormir.- Ele continuava a agir como um verdadeiro psicopata.

Clara foi levada para fora do cômodo no colo de um homem forte. Kauan olhou para a luz do lado de fora quando a porta se abriu por alguns instantes. Pensou se era semelhante ao que diziam sobre a luz que aparece quando você morre. Miguel sentia seu coração apertar por medo, receio e pena. Sua amiga tinha sido a primeira vítima, sua irmã e si próprio poderiam ser os próximos.

— Continuando. O primeiro passo está feito. Vamos ao relaxante muscular. Vai interromper o funcionamento do diafragma e...

Ramona saltou para cima da arma, batendo a barriga contra a mesa. Ela apontou para o guarda em sua frente, Luke, se afastando da cadeira, empurrou um dos homens que tentaria pegá-la pelas costas, e fez isso com outro novamente, até a menina conseguir chegar numa visão ampla encostada na parede. Era nítido, não fazia ideia do que estava fazendo, mas seu rosto sinalizava raiva, medo e tristeza. Mal sabia mais pra quem apontar aquilo.

— Se acalme, irmãzinha.- Proferiu a voz grave.- Você não quer que alguém se machuque, quer?

Luke estava em pé alguns centímetros dela, suas pernas não paravam de tremer.

— Coloque isso em cima da mesa. Vamos jogar, Bianca!- Ele continuou, com uma empolgação louca.

— Cala a boca!- Gritou fino e desafinada.- Eu não me chamo Bianca.- Sussurrou. As lágrimas faziam seu rosto coçar.

— Tem razão, te falta algo.- Dylan suspirou, virando a cabeça para o lado.

Ele levantou a mão. Os gestos que fazia simbolizavam alguma coisa que a menina ali de pé com algo mortal nas mãos não conseguia decifrar. Kauan entendera, e enquanto todos se ocupavam olhando para a tela, onde acontecia uma escrita em libras da frase "não há balas", um dos soldados socou Luke, que caiu no chão perto da cadeira vazia de Ramona. Ramona se direcionou tentando atirar nele, mas nem sabia destravar uma arma, e fora detida por outros guardas. Luke e Ramona foram colocados de volta em seus lugares. A arma foi posicionada de novo em cima da mesa, mas dessa vez, sendo segurada pela mão de um dos servos de Dylan.

— Espero que você não fique com o olho roxo, Daniel.- O soco apenas avermelhou um pouco a área, mas não deixaria um machucado muito evidente.- Continuando. Vamos lá.

 

 

— Vocês aceitam esse plano? É o único jeito da gente conseguir sobreviver aqui sem morrer de desidratação ou fome.- Daniel terminava a sua explicação interrompida várias vezes durante o processo.

— Então três de nós vão sair, buscar água e ver um pouco da ilha?- Perguntou Rebeca, um tanto receosa, porém conformada em ir por aquele caminho.

Marcos cruzou os braços, olhando para Godobllir que tentava se fazer de surpreendida, quando na verdade, já tinha pensado naquele plano muito antes do líder.

— É, como eu disse, tem uma cachoeira, não sei a distância, mas é a coisa mais perto que temos marcada no mapa. E se o mapa estiver certo, a água de lá é potável.

— Estamos cercados por mar e não dá pra conseguir água?- Marina fez uma cara feia, olhando para a porta da Vila Sanru, pensando no que faria se fosse escolhida para sair dali.

— Quantos dias pra procurar?- Rebeca indagou de novo, antes que Daniel desse uma resposta sobre o quão longe estarem das brechas para o mar.

— Um pra ir e um pra voltar. Senão voltarem em dois dias, vamos atrás de quem for.

— Deixa a Sara ir.- Começou Marina.- Se não voltar ninguém, saberemos que ela matou todos.

Todo mundo que tinha parado para ouvir, voltaram-se para Daniel de novo. A infantilidade da médica não feria Sara, ela estava pouco se importando para aquelas provocações desnecessárias.

— Como a gente pode ter certeza que tem uma cachoeira?- Mark saiu do silêncio.

— Só indo atrás pra descobrir.

— Mas e se tiver onças, leões, bichos que matam gente?- Mark parecia uma criança assustada, mas no interior, todos se perguntavam as mesmas coisas.- E se tiver índios? Canibais? E se não der mais pra voltar?

Daniel suspirou, passando seus olhos por todo mundo. Não tinha como confirmar nada, eram apenas suposições, que poderiam ou não ser reais. Estavam em perigo ficando ali e indo para fora dali.

— Bem...Três de nós vão ter que pagar pra ver...- Aquilo lhe saiu cruel.

Aquelas palavras foram as últimas depois do provindo silêncio. Tinham receio, mas sabiam que era a única solução. Ah, como já tinham passado por tanta coisa.

— Eu vou!- Lídia falou firme, erguendo a cabeça e olhando para o marido.

Daniel parou como uma estátua, imóvel por alguns segundos. Não ia deixar sua esposa sair por uma ilha inexplorada, onde ela poderia morrer de diferentes maneiras. Isso estava fora de cogitação.

— Eu também!- Gritou Eléxeu.- E o Marcos também!- Falou, envolvendo o braço atrás do pescoço dele e o puxando para perto.

Estava fechado, já tinham seus três exploradores voluntários. Daniel ainda parecia incrédulo, mas não queria falar nada na frente de tanta gente, deixaria isso para os bastidores. Godobllir também parecia surpresa, não esperava que Lídia fosse junto. Sara percebeu a hesitação de Daniel, então comentou algo no ouvindo de Rafael.

— Vamos sair ainda hoje.- Lídia parecia ter assumido as rédeas da situação, porém sua aparência não tinha melhorado em nada.

Mesmo sem um relógio, tinham noção de que naquele instante seria entre três e quatro da tarde, o que com certeza não era um horário muito favorável para saírem, mas ninguém questionou aquela frase, na verdade Eléxeu parecia bem empolgado.

— Venham, a gente precisa organizar o que vocês vão levar.- Rafael fez um gesto para os três o seguirem até o armazém, mas Lídia foi segurada por Daniel.

— Podem voltar a fazer seus trabalhos, ou arrumar novos.- Terminou Daniel, arrastando a esposa para a casa de um cômodo só.

Sara não os seguiu, mas enquanto todos iam para seus caminhos conversando, ela continuava lá parada, encarando a porta onde os dois entraram. Marina passou esbarrando seu ombro com força em Sara, mas ainda assim, ela não fez nada. Estava mais preocupada com seus velhos amigos, o relacionamento deles também estava na merda.

 

 

— Vamos! Já que ninguém insiste em fazer as honras...- Dylan balançou a cabeça para o guarda.

Por um segundo a tela piscou, mas ninguém percebeu, exceto Leo, que olhava com fúria para aquele homem. A arma foi posta para girar novamente, dessa vez a maioria olhou, seja por entre um pequeno espaço entre os dedos que tampavam o rosto, ou até mesmo entre o abrir e fechar calmo das pálpebras. Kauan se sentia tão mais leve que os outros, sem nenhuma grande preocupação, mesmo que a morte estivesse bem próxima. Seus pensamentos estavam mais voltados em:"Como estarão os outros? Será que vão lutar em algo? Seria bem melhor do que fazer nada aqui". Aos poucos a arma foi parando de novo, passando por cada um como se a qualquer momento fosse parar, até que enfim ela parou.

— Daniel!- Gritou Dylan, com uma empolgação que só ele tinha.

Luke não teve reação, já se machucou tentando lutar, agora ia ter o azar de ser uma das vítimas dessa brincadeira sádica.

— Como eu já expliquei, a enfermeira vai injetar uma dose de um paralisante muscular. É, Daniel, eu não queria estar na sua pele. Sua respiração vai parar.

A enfermeira pegou o braço de Luke e enfiou a seringa nele. Rose e Leonardo se olharam, sem terem ideia do que fazer. Anya chorava com a cena, horrorizada demais para sequer olhar. Ramona queria defender o garoto que tentou ajuda-la, porém o máximo que podia fazer era se espernear.

— Infelizmente só poderemos cuidar de você após a terceira seringa, espero que dê tempo.- Dylan parecia que não podia se divertir mais. Luke teve o líquido posto em suas veias. Assim que a enfermeira finalizou o trabalho, se afastou consideravelmente. Todo mundo só conseguia prestar atenção nele. De repente, sua face paralisada e boquiaberta foi de encontro ao chão, caiu da cadeira como se não conseguisse se manter, seu rosto o fazia parecer agoniar.

— Isso é pior do que eu pensava.- Comentou o provedor de tudo aquilo.

Rose olhou para o amigo que aos poucos tinha sua cara se tornando roxa.

— Ajudem ele!- Gritou Ramona, se levantando, mas sendo empurrada de volta por um guarda.

— Só vamos poder ajudar depois que girarem a arma e inserirem a última...

— Então gira!- Gritou Miguel.

— É aí que tá. Só vocês podem girar a arma agora.

Todo mundo abriu a boca, olhando com espanto e aflição uns para os outros.

Luke estava com seu diafragma interditado, seus pulmões já não conseguiam trabalhar. Seu corpo relaxada mal podia se sustentar.

— Ele vai morrer!- Rose não parou de olhar, sentia-se pressionada em girar a arma.

Ninguém queria fazer aquilo. Alguém ia morrer e seria culpa de quem girasse a merda daquela arma. Anya começou um choro alto, Leonardo sentiu aquilo o pressionar mais, mas não fez nada. Rose via o rosto de Luke, caído no chão, estava roxo e não conseguia nem se mexer. Ela queria mais que tudo girar aquela arma, mas não fez nada. Um garoto estava morrendo naquele sala, dependia apenas que um deles girasse a arma para salvá-lo, porém existia o preço de matar uma outra pessoa. Anya não fez nada. Ramona não fez nada. Miguel não fez nada. Kauan fez algo. O menino de cabelo azul afastou a cadeira ao se levantar em um impulso, colocando a mão na arma e a girando. O clima era como se o mundo estivesse acabando. E então a arma apontou para a última pessoa.

— Ellen! Que maravilha! Andem logo, Daniel não pode esperar muito.

Kauan havia matado Leonardo. Com Luke morrendo aos seus pés e Leonardo ao seu lado, Rose simplesmente desabou a chorar, e antes que pudesse pensar, Dylan deu uma nova ordem:

— Levem eles de volta para os quartos, chega de bagunça.

Os guardas pegaram todos pelo braço com tanta rapidez que Rose só pôde gritar por seu ex-namorado quando chegou na porta, vendo a enfermeira injetar o que Dylan disse ser um fogo líquido nas veias dele. O último a sair foi Kauan, vendo as enfermeiras socorrerem Luke com uma outra injeção, agora na perna. Leonardo em questões de segundos havia morrido.

 

 

— Você ficou louca?- Ele gritou, sem se importar com o volume.- Se você sair, vai com quê preparo? Você não vai! Você não foi treinada pelo Cold Blood, muito menos sabe lutar com espadas ou...

— Eu me viro. Eu tenho uma coisa que ninguém aqui tem, e é o amor de uma mãe disposta a fazer qualquer coisa pra salvar os filhos!

— Lídia...

— A Rose e o Miguel tão lá fora, Daniel! A gente não sabe o que aquele demônio tá fazendo com eles!- Seu corpo se tornava agitado quando falava de seus filhos.- Você é o pai deles, como não está desesperado pra ir atrás deles, também?!

— Você acha que eu não tô? Eu penso mais neles do que em qualquer outra coisa, mas não dá pra jogar tudo pro alto e sair por um lugar que a gente não conhece!

— Você quis dizer "não dá pra NÓS dois sairmos por um lugar que a gente não conhece".- Deu um grande ênfase no "nós", enquanto gesticulava com a mão.- Porque pra qualquer um que tá nessa merda, que também a gente mal conhece, você dá carta branca pra sair e ir lá se arriscar. Agora, eu não posso? Faça-me o favor, Daniel. Não preciso de ninguém pra me proteger.

— Lídia, as pessoas lá fora tem muito mais força do que você. Muitas mais habilidades que até eu!

— Eu não sou fraca.

— Eu nunca disse que você é.

— Mas tá pensando. Te conheço muito bem. Sei que não quer me perder. Você tem medo que eu morra. Mas eu não vou morrer! Ok, eu não fui treinada por assassinos, porém estou motivada. Eu me viro muito bem, sabe o que a gente já passou.

— Não é uma tarefa pra você. Nem pra mim, temos que ficar juntos! Se tivéssemos ideia do que tem lá fora e eu não fosse um...líder, eu te deixaria ir. Além disso, temos que produzir mais armas, organizar os suprimentos, procurar mais! Você pode ajudar nessas coisas, não precisa ir tão longe.

— Têm várias pessoas aqui pra ajudar com essas coisas. Por que precisa ser exclusivamente eu?

Daniel ficou em silêncio, Lídia entendia a proteção, mas não queria ser protegida em uma redoma, enquanto por fora todos morriam.

— Vou com eles, queira ou não.- Disse determinada.

— Não, não vai. E acabou a conversa. Isso é um ponto final.

A esposa balançou a cabeça, incrédula. Seus olhos estavam furiosos e decepcionados.

— Ah, é agora mesmo que eu vou.- Lídia saiu esbarrando seu corpo contra o braço do marido.

Sentia-se infantil, mas a raiva era maior do que qualquer razão. Em 10 anos de casamento, só tinham brigado daquele jeito uma vez, mas mal deviam se lembrar daquela discussão.

Logo após sua saída, Sara entrou, tendo cruzado com a amiga antes de perceber o clima carregado deixado pela briga.

— Ela tá determinada a ir, não tá?- Indagou, se aproximando.

— Ela tá.- Olhou para baixo, tentando desviar os pensamentos para seus sapatos sujos de barro.

— Sabe, é melhor deixá-la ir. É melhor do que prender e ela ficar com raiva de você.

— Ela já tá com raiva de mim.- E ele estava dela.

— Mas você sabe que é o certo a se fazer.- Aquilo doía nos pensamentos de Daniel.- Mesmo que fique preocupado, você é um líder, precisa se reerguer e confiar nela.- O marido ficou calado, a sua cabeça parecia que ia explodir. O nó que Daniel tinha na garganta se desfazia. Em dois dias já estava exausto de ser alguém a orientar os outros do que fazer.- Todo mundo precisa te ver...forte e preparado. E você consegue, você sabe o que tá fazendo.

— Eu não sei o que estou fazendo, Sara!- Seu tom aumentou gravemente, fazendo as sobrancelhas de Sara pularem.- Pronto! Era isso que queria ouvir? Eu não sei o que fazer! Se todo mundo morrer nessa porra de ilha, a culpa é minha! E a Lídia não me escuta, com ela lá fora, eu vou ficar mais preocupado ainda em sair daqui!

Daniel levou a mão à testa, pressionando os dedos contra os olhos fechados. Sara sentiu a preocupação em sua aura. Ele e a esposa foram ótimos pais ao longo dos anos, sempre colocando seus filhos em primeiro lugar, não ligavam mais para suas almas, apenas as deles, mas não podiam abandonar os outros, também precisavam sobreviver. Ela colocou a mão em seu ombro, pensando sobre como Lídia e Daniel foram um casal tão unido durante anos. Sara encarou-o, admirando seu rosto por fora, mas por dentro a sua coragem em aguentar tanto.

— Tá tudo bem, a gente vai sair daqui. Eu tenho certeza que a gente vai conseguir.

 

 

Em silêncio, Rose e Miguel caminhavam pela Coruja Negra, explorando mais do que já tinham visto. O clima não era agradável, alguém tinha morrido e isso era o suficiente para passarem o resto do dia trancados em seus quartos. Rose estava disposta a fazer isso, mas seu irmão mais novo a chamou para ocupar a cabeça com outras coisas, mesmo que ainda fossem ruins. Se sentindo cansado do silêncio, enquanto vagavam prestando atenção nos corredores e grandes cômodos, Miguel decidiu quebrá-lo:

— Anya disse que viu o Luke sendo colocado de volta no quarto.- Uma empregada um tanto apressada passou no meio deles.- E a Clara está bem, fui no quarto dela.

Rose continuava olhando apenas para a frente, mas ouvia tudo o que ele dizia atenciosamente. Seus olhos estavam avermelhados, Miguel notou mas não comentou, era melhor evitar aquele assunto. Mais do que tudo, a menina ruiva queria abraçar seus pais, sentir os braços calorosos deles a envolvendo, receber beijos na testa, palavras de afeto. Porém tudo o que tinha a receber era ser uma peça medíocre de um jogo doentio feito por um ser desprezível. As palavras que falara para ele na sala do trono, invadiam o espaço na qual se encontravam memórias de Leonardo. O ódio era o combustível mais forte para que continuasse erguida.

— Ei, lembra quando a gente era criança e colocamos sonífero no café de uma cliente do meu pai?

— Lembro.- Disse, colocando o cabelo atrás da orelha.- Ela capotou.

— E o pai quando descobriu veio atrás da gente com uma vassoura.- Ao finalizar a frase deu uma risada, acompanhado de um sorriso bobo da irmã mais velha.

As memórias da cafeteria, da escola, da cidade, estavam tudo voltando. Estavam com saudades.

— E quando o Luke pintou o cabelo de verde e ficou parecendo grama?- Ele continuou, mas no mesmo instante, Rose parou de caminhar.

— O que foi?

Ela fez sinal de silêncio, tentando entender da onde vinha aquele som. Sem entender nada, ele também parou.

— Não tá ouvindo? É choro de bebê.

Miguel também começou a ouvir o barulho. A ruiva descobriu de onde vinha o choro, andando sorrateiramente até a porta do quarto barulhento e colocando a mão na maçaneta. Olhou para os lados, não tinha nenhum guarda ou serviçal por perto. Aos poucos, foi abrindo uma fresta, dando espiadas para dentro do cômodo, até o ver totalmente aberto. Antes de entrar, avistou um berço com véu, ao fundo uma cômoda com coisas de bebê e um pacote de fraudas. Entrou no quarto, enquanto seu irmão olhava tudo da porta. Calmamente se dirigiu ao berço, deparando-se com uma bebêzinha linda, chorona e com o rosto corado. Suas roupas em cor pastéis de rosa e azul eram tão fofos. Rose se lembrou de quando Miguel era bebê, era tão mais quieto e não fazia tanta besteira.

— O que estão fazendo aqui?- Esbravejou uma empregada, entrando depressa no quarto.

Rose deu um sobressalto, se afastando do berço.

— Venha, meu amor, vamos levá-la ao seu pai.

Rose e Miguel voltaram ao corredor, encarando a moça velha que os afugentou. Ela pegou a menininha no colo e a levou embora corredor a fora. Rose inclinou para cochichar algo no ouvido de seu irmão, bastante pensativa sobre o porquê de ter um recém nascido no castelo.

— É uma menina.

— Não quer ir atrás dela pra saber pra onde vão levar?- Miguel estava pensando na mesma coisa que sua irmã.

Os dois tinham uma suposição em mente, e enquanto perseguiam a empregada com o bebê por vários corredores, mais pensavam sobre como ele poderia ser a chave para saírem daquele lugar.

 

 

Daniel saiu de uma das casas, vendo todos reunidos nos portões da Vila Sanru. Sentia vontade de fazer todos desistirem daquela ideia, mas já era tarde. Ele trazia na mão o mapa, e em passos rápidos foi se aproximando do grupo de pessoas.

— Mas, gente, já tá anoitecendo, não dá pra vocês saírem agora.- Orientou Rebeca.

— É claro que dá. É até melhor que possamos dormir aqui por perto, imagina se fossemos dormir lá longe, não daria tempo de correr de volta caso acontecesse alguma coisa.- Eléxeu respondeu, mas sabia que era insensatez sair na noite, mas nenhum dos três parecia incomodado.

— Como vamos acender a fogueira agora que o Marcos vai embora com o isqueiro?- Essa era a preocupação de Marina.

— Eu sei acender.- Respondeu Rebeca.- Mas continuo achando burrice saírem a essa hora.

Rafael entregou para Marcos um saco com dois galões de água vazios e um cheio, fora algumas contadas barras de cereal.

— Isso tem que durar o suficiente. Caso achem água não esqueçam de trazer.- Disse Rafael, ele que tinha achado a bainha das espadas debaixo do baú.

Lídia se virou para trás, vendo o marido se aproximar com uma expressão séria no rosto, exatamente em sua direção, parecia querer brigar de novo.

— Olha, Daniel...- Ela ia começar a argumentar novamente, mas ele apenas estendeu o mapa em sua direção, a deixando calada até enfim pegá-lo.

De repente ele a envolveu com um abraço apertado, a deixando presa em seus braços, com a cabeça apoiada em seu peito.

— Eu te amo.- Daniel beijou a testa dela, terminando o abraço com uma troca de olhares.

Ela murmurou algo, mas ele não conseguiu ouvir bem.

Os três possuíam suas espadas presas nas costas, dentro da bainha, amarradas com um tecido que envolvia de forma inclinada os seus corpos. Pareciam verdadeiros aventureiros. Rafael não disse da onde arrumou aquele tecido, mas Marcos percebeu, ele tinha pegado das peças de roupa da cadáver alucinada.

— Lídia.- Chamou Sara, olhando para a amiga. A mulher que há 10 anos já fora feliz, colocou a mão sobre o punho fechado da outra mulher, que mesmo com tantas coisas perdidas, ainda tinha esperança.- Toma cuidado, tá?

Ela acenou com a cabeça, respirando fundo, para enfim pedir para irem logo embora:

— Vamos?- Lídia começou a caminhar para fora dos portões, sem olhar para trás.

Eléxeu se despediu de Godobllir e Noel, puxando Marcos para ir com ele.

— Não morram.- Exigiu Noel.

— Pode deixar.- Eléxeu respondeu, correndo para fora da vila.

Daniel estava visivelmente cabisbaixo. Seus olhos se tornaram melancólicos, assim como a ausência de qualquer vivacidade em seu rosto.

— Eu tentei falar com ela.- Sussurrou Rebeca à ele.- Não consegui fazê-la desistir. Se ficasse seria uma fera.

— Eu tô fazendo merda, não tô? Deixando ela ir com eles?!- Daniel começou a ofegar, deu um passo para frente, pronto para começar a correr em direção aos três.

Rebeca o segurou pelo braço, virando a cabeça dele em olhar para a sua, tentando acalma-lo.

— Não dá mais pra voltar atrás. Vai ser isso, Daniel. Vai dar tudo certo. Algumas pessoas realmente precisam explorar, e mesmo querendo não dá pra ir todo mundo, senão já sabe o que acontece com os suprimentos.

Ele se calou. Ao voltar a olhar para o horizonte não conseguia mais ver Lídia, ou Eléxeu, ou Marcos. Só via agora um monte de árvores. Alguns minutos se passaram, Mark pegou alguns gravetos de uma pilha de madeira e o colocou no meio do chão da Vila Sanru.

— A gente não vai fazer a fogueira lá dentro?- Perguntou Rebeca, indo na direção dele.

— Não podemos fazer duas? Não quero ficar lá dentro a noite toda, me dá...agonia.

— Bem, temos muita madeira e mato pra queimar, então tá.- Ela se agachou, começando a fazer o que já tinha aprendido fora do Cold Blood.

Godobllir também se juntou ao grupo das fogueiras, enquanto algumas pessoas ainda olhavam para fora. Sara cruzou os braços, ainda nos portões, pensava muito sobre Lídia, sobre o que poderia ter pela ilha. Durante 10 anos, poderia ter acordado em qualquer outra época, mas teve que ser justamente na volta de tudo. Soltou o ar, caminhando também em direção a fogueira.

— Ei, cobra!- Gritou Marina, puxando o cabelo de Sara com tudo.

Cambaleando, Sara se virou de frente para ela. Marina estava querendo arrumar confusão, não parava de importuná-la. "Que garota chata", pensava sempre que era provocada. Mas dessa vez, não queria se segurar. Após olhar para o sorriso debochado e irritante dela, Sara levantou a mão e a derrubou no chão com um soco. Aos poucos, mesmo quem não viu o soco, entendeu o que tinha acontecido. Marina olhou para ela do chão, furiosa, como quem conseguia fuzilar com os olhos. Ao se levantar, se tacou em cima de quem chamara de cobra, caindo junto com ela e tentando estapea-la, mas sendo virada antes de fazer isso. As duas começaram a rolar no meio de puxadas de cabelo, indo parar nos portões da Vila. Rafael só conseguiu chegar nelas, quando já estavam para cair do barranco que tinha para descer ali na saída.

As duas bateram numa árvore, continuando com socos e arranhões. Uma delas pegou um punhado de terra e jogou nos olhos da outra, mas não deu para ver quem, as duas estavam todas bem sujas.Emitiam grunhidos de raiva. Rafael tirou Sara de cima de Marina, e antes que ela pudesse tentar continuar com a briga, Rebeca chegou a segurando por trás.

— Parem! Chega!- Gritou Rafael, tentando fazer as duas pararem de se agitar nos braços deles.

— Leva ela primeiro.- Disse Rebeca, tentando parar Marina de encosto numa árvore.

Rafael puxou Sara até chegarem na fogueira ainda não acessa. Ela estava toda suja de terra.

— O que deu em você, Sara?!- Daniel parecia incrédulo, apenas olhando a lambança que estava o rosto e as roupas dela.

Sara se largou das mãos de Rafael e foi com passos rápidos e firmes para uma das casas. O amigo ia atrás, mas Daniel interveio:

— Deixa ela. É melhor que ela fique sozinha um pouco.

Rafael ouviu o conselho, e então se sentou em volta do que logo seria uma fogueira, se conseguissem acendê-la.

 

 

Sara chegou correndo na frente do grande espelho rachado, parando apenas quando estava muito próxima dele. Respirava fundo, se encarando. "O que deu em você?". Ela mesma se perguntava aquilo. Parecia ter deixado um impulso toma-la, e foi bom, mas se sentia mal pelo sentimento que veio depois. É claro que quebrar a cara de Marina foi ótimo, mas ela lembrou que não valia apena nada disso, até porquê aquele ódio gratuito tinha um pequeno motivo, ou talvez grande. Se ela não tivesse cometido tantos erros, provavelmente o irmão, pai, mãe ou qualquer coisa de alguém, não teria morrido. Era um sentimento estranho, tanta coisa aconteceu e ainda estava acontecendo.

Estavam presos no meio de uma ilha, e mesmo o próprio Dylan tentando-a convencee que não era sua culpa nenhuma de suas atrocidades, ela ainda se sentia assim. Sara começou a reparar em sua aparência. Seu cabelo preto estava sujo de terra e grama, mas talvez fosse a parte menos suja de seu corpo recém rolado no chão. As roupas dariam para ajeitar com algumas esfregadas.

Ela passava o braço no rosto, tentando tirar toda a sujeira, mas sem água o máximo que faria era tirar o excesso. Seu pensamento voou para longe, para quando ainda estava sendo mantida presa por Dylan. Aquilo que ele lhe disse, era como uma premonição: "Nunca lute de cabelo solto, não importa a ocasião". Sara pegou um caco do espelho já rachado, olhando seu rosto refletido nele. Aquela lição que Dylan a ensinou, seria posta em prática, podia ter quase a total certeza. Aos poucos, teve certeza do que devia fazer. Prendeu e esticou seu cabelo com a própria mão, para aos poucos começar a corta, de um modo que claramente ficaria estranho no final, mas não permitiria mais ninguém puxar seu cabelo. Ao acabar de cortar, ele que antes ia até metade das suas costas, agora mal chegava em seus ombros. Talvez no fundo sentisse pena de cortar, mas já tinha feito e teria que conviver com isso por alguns meses, se ficasse viva. Afinal, quem preso naquele lugar se importaria com a aparência? Sara começou a tirar suas roupas, indo em direção ao único lugar com água que conhecia ali para tomar um banho: a banheira vermelha.

Espalhou suas peças pelo cômodo, ficando nua assim que chegara perto da banheira. Ouviu um canto de coruja vindo de algum lugar, poderia ter passado voando, já que o teto era aberto ao céu. Prestou atenção na água da banheira. Tinha cor de sangue, mas como Rafael disse, era diluído em água. Aquilo faria pessoas vomitarem se o vissem, mas Sara não se importou, colocou seus pés lá dentro e os sentiu serem banhados na água morna mais para quente. Aos poucos foi deixando seu corpo branco mergulhar no meio do vermelho da água, até estar totalmente submersa nele. Uma paz ficou, em um silêncio no qual só se ouvia grilos, e o chirriar da coruja.

A banheira parecia vazia, como senão houvesse ninguém no fundo, como se fosse apenas aquela água. A luz que vinha de cima iluminava recantos de pisos quebrados e grama crescendo em pequenos buracos no chão. De repente, duas mãos brancas foram colocadas para fora, se segurando nas laterais da banheira. Com um grande impulso, Sara saiu dentre o vermelho, olhando para cima, e tendo trazido consigo uma arma segurada na boca. Ela pegou a arma com a mão e a mirou na coruja que havia parado numa das margens do teto. Os olhos da ave eram como lentes, parecendo-se pequenas câmeras que a fitavam. A coruja abriu asas e voou para fora da vista de Sara. Tinha feito um show particular para Dylan. Uma cena que com certeza, ele se orgulharia.


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Notas finais do capítulo

No próximo capítulo: Os jovens botam em execução um plano para fugir do castelo. Lídia e os explorados se deparam com coisas estranhas pela ilha. Enquanto isso, na Vila Sanru, alguém se aproxima de Daniel com más intenções.



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