Segredo Virtual escrita por Alehandro Duarte


Capítulo 38
2º T: Capítulo 13 Coruja Negra


Notas iniciais do capítulo

Ao se depararem em uma vila que simula Sanru, os adultos vão em busca de pistas e resoluções para seus problemas externos e internos.



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Árvores altas cheias de galhos, caules lenhosos finos e grossos, folhas e musgos, envolviam a vista para o céu de dentro do englobamento de casas. Lá dentro, no chão de barro e lama, se reunia um grupo de gente, se esgoelando sem querer ouvir o que os outros tinham a dizer. Em consequência, alguém deu um grito que espantou os pássaros.

— Aquele filho da puta! — Marina abaixou seus olhos para ver seu reflexo na poça d'água, depois pisou nela.

Sara olhou para os lados, reconhecendo a maioria das pessoas que burburinhavam sobre onde estavam. Ela caminhou até Daniel, cutucando seu ombro para que lhe desse atenção.

 — Tem pessoas aqui que eu não faço ideia de quem sejam. — Sussurrou, dando sugestão ao corpo inclinado para lhe ouvir. — A gente precisa fazer alguma coisa.

Daniel voltou para uma posição mais ereta, dando uma boa olhada no povo que se juntou dentro de um complexo de casas não tão grandes assim. Ele não sabia o que fazer, assim como os outros se sentia desesperado também.

— Ei! — Gritou, tomando atitude. Ninguém deu bola. Lícia chorava aos prantos.  Rebeca gargalhava de nervoso. Lídia olhava por todos os cantos, procurando seus filhos. Aquela gritaria o fez sufocar. — Escutem, porra! — Os olhares se voltaram à ele. Lídia só o via falar palavrões em situações de enorme estresse, o que quase nunca acontecia. As pessoas pararam para escutar o que tinha a dizer. Teve que improvisar algo. — Eu não faço a menor ideia da onde a gente está, mas não vamos descobrir tão cedo se a gente não cooperar.

— É uma ilha. — Rafael deu um papel amarelado e envelhecido para Daniel. — Dylan colocou a gente numa porra de ilha.

Analisando a folha longa, percebeu que se tratava de um mapa, bastante curioso com suas ilustrações estranhas, porém sua mente já começara a trabalhar.

— Ele vai terminar de matar a gente! —  Lícia choramingou.

— Que merda tá acontecendo? — Mark não sabia nada sobre o jogo, mas reconheceu alguns rostos familiares. Mesmo assim, não o fazia se sentir seguro.

— Ok, é uma ilha. Mas não dá pra raciocinar com todo mundo gritando. — Seus olhos se fecharam, tentando pensar em algo. Ao abrir novamente, Daniel, por causa da ladainha que voltou a ser aquele lugar, viu pessoas que não eram-lhe familiares — Algumas pessoas eu não conheço. Vocês quatro, venham! — Apontou para um grupo reunido.

Uma mulher loira, um homem com a cara séria, um gorducho e um cara com uma cicatriz na bochecha, aproximaram-se.

— Daniel... — Chamou a única fêmea do bando. — Não se lembra de mim?

Seu rosto pareceu uma lembrança, até que sua expressão esbugalhada, revelou de onde se lembrava.

— Isabella? — Ela sorriu ao ouvir o nome da boca do amigo.

— Me chamo Godobllir, agora. — A testa de Daniel franziu. — Longa história. Esses são: Marcos, Eléxeu e Noel. — Respectivamente, o sério, o gordo, o da cicatriz.

— Não devemos confiar neles, Daniel. — Rebeca orientou, falando em alto e bom som.

— Nós que não devemos confiar em vocês. — Godobllir deu um passo, indo encarar a mulher que suspeitava dela de frente. Marcos a segurou, sussurrando algo em seu ouvido.

— Como chegaram aqui? — Aquilo pareceu óbvio ao sair da boca de Daniel, mas a resposta o surpreendeu.

— Um homem que fazia joguinhos colocou a gente aqui. Ele praticamente fazia a gente de seus bonequinhos. — Todo mundo ali se sentiu representado.

— Dylan. — Sugestionou. — Também estamos aqui por culpa dele.

— Eu não sei o nome dele, mas é esguio, pele branca e seu cabelo é bem preto. Ele é um furacão que destrói tudo o que vê pela frente.

— É o Dylan de peruca. — Murmurou Rebeca, sendo ouvida por Lídia que lançou um olhar indecifrável.

Daniel percebeu. Existia mais um de jogo. Dylan tinha juntado os dois.

— Você têm filhos? 

— A minha irmã tem, um menino de cabelo azul. Ele não tá aqui.

— E a sua irmã?

A resposta não veio tão rápido.

— Mataram ela.

Não ficaram tão comovidos, as pessoas estavam preocupadas demais em manter a sanidade mental. Com aquela resposta, Lídia concluiu que as crianças foram separadas dos adultos, o que fez seu coração de mãe quebrar.

— Ele levou meus filhos também. — Daniel a encarou, demonstrando apoio.  

O burburinho logo voltou, tinha gente chorando, gente gritando, gente que não sabia o que pensar. Após vários minutos de histeria, decidiram sair da rua de barro, foram para o grande armazém, da onde Rafael achara o mapa, e ficava centralizado no final do caminho de casas. Ao chegar lá, Daniel se surpreendeu com o achado, e pediu para que Rafael contasse os galões de água e Lídia os suprimentos, que mesmo em um canto afastado, encheram os olhos de todos que estavam ali.

— Vamos precisar nos organizar. Se Dylan quer guerra, é isso que ele vai ter, mas antes precisamos saber sobre o território inimigo. — Sara encostou na parede, apreciando as palavras do soldado. Agora podia ficar calada, apenas ouvindo o que o velho amigo tinha a dizer.

— Alguém por favor me explica aonde a gente tá, o que a gente tá fazendo aqui e por que eu tô aqui? — Mark, o namorado do funcionário mais eficiente da cafeteria, não teve nenhum envolvimento com os jogos, a sua mente fervilhava.

— É sério, Daniel? Aquele idiota bota a gente no meio da Floresta Amazônica, e você quer que a gente se acalme pra ir à combate? — Marina se intrometeu. — Esse deve ser o último pedacinho que não botaram fogo.

— Eu não quis dizer que... — Ele é cortado antes que pudesse continuar.

— Todo mundo com certeza tem algo pra falar. Eu sou provavelmente a única médica daqui, então se acontecer alguma guerra, não contem comigo, porque ninguém quer me ouvir antes da merda acontecer.

— Então fala. — Ela não esperava aquela deixa.

— Não vamos à combate. A gente nem sabe o que tem lá fora. Tem gente que nem sabe o que tá acontecendo. Nem eu sei. Quando pararmos pra raciocinar só um pouco, vamos perceber que estamos agindo feito idiotas.

— Então vamos descobrir. Acabamos de achar comida e água, já temos uma coisa garantida, mas precisamos contar uns com os outros. — Ele olhou para os ajudantes. — Se não formos organizados a gente não dura uma semana. E assim entramos em uma guerra contra nós mesmos. Dylan já foi gentil demais deixando essas coisas pra gente sobreviver, não desperdicem, mesmo sendo um jogo, enquanto não sairmos, teremos que jogá-lo.

— Para de pensar no jogo. A gente acabou de ser sequestrado e jogado no meio do mato. Não sabemos onde estamos, não conhecemos nem todo mundo que tá aqui, com a gente.

— O que quer que eu faça?

— Eu quero que... — Marina não tinha palavras. Ninguém tinha. Ninguém sabia o que fazer. Ninguém foi preparado para àquela situação.

Alguns voltaram a desabar em lágrimas. Mais discussão começou, alguns homens queriam sair e explorar, outros queriam ficar. Não dava para pensar.

— Oito galões. — Disse Rafael. — De dois litros, eu acho.

— Dezesseis litros de água potável. — Calculou assim que foi dito. — E os alimentos, Lídia?

— Tô perdida, mas tem o necessário pra pelo menos uma semana, eu acho. — Falou em tom triste, vendo que Rafael se aproximava para ajudá-la.

— Vejam só, nós estamos sobrevivendo. E vamos sair daqui! Nem que eu morra pra fazer isso acontecer. — Daniel continuou seu discurso. As pessoas se calaram para ouvi-lo. — Eu proponho que todo mundo procure algo pelas...casas, por assim dizer. Procurem algo que possa ser útil. Não sabemos o que significa essa “Vila Sanru” como estava no portão de entrada. — Poucos tinham reparado, mas havia um portão preto de grades, com o nome formado a partir de pedaços de ferro. — Mas seja lá o que for pra representar, com certeza tem algo escondido. E é muita pressão, mas como eu disse, só vamos conseguir se nos acalmarmos.

— Lá fora, — Iniciou Sara. Todas as cabeças voltaram-se à ela, incluindo Lídia e Rafael que contavam os suprimentos. — não tem sol.

Daniel só entendeu o que Sara quis dizer quando praticamente todos saíram depressa do galpão para olhar o céu e confirmar que a estrela de fogo não aparecia mais. Estava tudo muito bem claro, mas só o que tinha eram poucas nuvens, e dava para ver que não escondiam o sol. No começo, pensaram que alguma árvore estava tampando, mas não era esse o caso.

— O que tá acontecendo? — Rebeca olhou para Mark, assim que chegou do lado de fora.

— Bem-vindo à morte. — Disse estendendo a mão.

 

 

Na parte superior da ilha, bem longe da Vila Sanru, existia um pequeno, porém moderno e glorioso, Castelo. Intitulado "Coruja Negra", por seu proprietário, o local tinha se tornado o lar de vários órfãos, lá hospedados contra sua vontade. Todos os menores de idade já tinham saído de seus quartos, onde acordaram, indo se juntar em um salão enorme. Nele tinham várias mesas circulares com toalhas brancas às encobertando, espalhadas pelo lugar como em um restaurante. No fundo do salão, há um palco com um microfone caído ao chão e caixas de som de mármore, presas na parede. Armaduras douradas e um lustre enorme criavam uma atmosfera de riqueza. Também tinha uma mesa de comida imensa, que ia da parede de virada do corredor de que vieram até quase o palco. As crianças estavam mais agitadas do que os adultos estiveram. No total eram quatro adolescentes e quatro crianças, todos perdidos e sem entender o que de fato tinha acontecido. Rose consolava algumas garotas menores que choravam, uma delas disse ter visto a cidade ser bombardeada, já outra lamentava ter visto os pais serem espancados na sua frente. Para Miguel todos ali eram familiares: Luke, Rose e Leonardo eram praticamente parte da família, Clara, Anya e Ramona eram colegas de sua escola, porém apenas uma pessoa não tinha conhecido em momento algum. Um garoto com mais ou menos a idade dos adolescentes ali presentes, chamava atenção pelo seu cabelo azul e olhar perdido no chão. Aos poucos, um som de passos veio aumentando, ecoando por um corredor que ficava ao lado direito do palco. Todos pararam para olhar o homem que tinha destruído suas vidas, usando um traje chique e preto. Dylan só parou de caminhar ao chegar no palco e segurar o microfone, seus olhos correram o salão, dando um sorriso para os convidados bem longe dele.
— Sejam bem-vindos à Coruja Negra.- Pronunciou.- Esse vai ser o lar de vocês agora. Meu castelo.
Rose encarou o pai com toda a fúria, só não partia para cima dele, por ter perguntas demais.
— Sanru...- Pensou em como dizer.- Não existe mais. Estamos bem longe de qualquer civilização, literalmente ilhados. Sim, uma ilha! Divertido, não?
Miguel encarou a irmã, mas não conseguiu que ela virasse o rosto para ele também.
— Vão gostar daqui. Temos vários quartos, jogos, as comidas mais gostosas e caras do mundo. Simplesmente um lugar e tanto.- A voz dele bem alto na caixa de som incomodava Luke, os ouvidos do funcionário da antiga cafeteria, não suportavam barulhos altos.- O figurino de vocês também está perfeito.- Dylan olhou para Miguel.- O seu é um dos melhores, Sara. Foi divertido adaptar suas roupas em uma versão masculina, principalmente os vestidos.
Agora sim, Rose olhou para o irmão. Dylan o tinha chamado de Sara. Rose sentiu um frio na barriga, esperando o pior.
— Vou ficar feliz em ver cada um de vocês nos trajes.- O anfitrião apontou para Clara.- Jason.- Seus olhos lacrimejaram ao lembrar do irmão falecido.- Bianca.- Dirigiu-se à Ramona, cuja descendência era japonesa.- De você não sinto falta, Ellen.- Todos seguiram o olhar de Dylan que dava para Leonardo.
Rose cochichou para o talvez ex namorado:"Ele nos designou personagens".- Ah, Rebeca. A mais inteligente de todas.- Anya deu um pulo ao ser encarada pelo desconhecido. Ninguém sabia como reagir, então, apenas observaram.- Bonito cabelo, Thiago. O azul combina com seus olhos.- O garoto de cabelo azul cruzou os braços, fazendo uma careta. Parecia o mais tranquilo dos oito.
— Quem é você?- Perguntou Anya, deixando um pouco de água escorrer pelo rosto.
— Sou eu, o Dylan. Deve estar confusa devido a viagem, mas Lídia vai te ajudar a recordar. Não é mesmo, Lídia?- O sorriso maldoso caiu em Rose.- E Daniel, não exagere no café.
Ninguém percebeu, mas aquilo foi certeiro para Luke, que conhecia aquele homem formal, mas não se lembrava da onde.
— Deixa a gente ir embora!- Choramingou Anya, sendo a única das quatro meninas, que conseguia pensar em algo que não fosse ficar com raiva ou apenas chorar histericamente.
— Para quê ir embora? Não existe lugar mais perfeito do que esse disponível para vocês.Temos poucos empregados, prezo por privacidade, muita criadagem gera fofocas e conflitos. Eles vão te levar para seus quartos após o almoço.- Ao colocar a mão na cintura, pensou um pouco e concluiu que sua conversa tinha acabado.- Boa refeição.
Dylan soltou o microfone, que fez um barulho horrível, em seguida desceu do palco, caminhando em direção aos seus velhos amigos. Passando por mesas e cadeiras, abaixou os olhos, não queria que vissem seu entristecer, algumas lágrimas que insistiam em cair devido as memórias do dia anterior. Logo, ele voltou a olhar para eles, com um breve sorriso, que mal parecia ter vindo de alguns segundos tristonhos. Rose rapidamente afastou-se até a mesa do banquete, pegando uma taça e a quebrando no encosto de uma cadeira. Com um caco afiado, segurou no cabo da taça e correu para encostar a parte afiada no pescoço de Dylan, que parou assim que a ruiva pulou em sua frente.

— Cadê os meus pais?- Gritou, pressionando vidro contra carne.
O genocida mostrou seus dentes brancos, olhando fundo nos olhos desesperados da ruiva.
— A sua mãe morreu no parto, lembra? Você a matou. E o seu pai...perdeu a cabeça. Não dá pra salvar os pais de secundários, porém os pioneiros protagonistas que vieram antes...
— Cadê a porra dos meus pais?- Um pouco de sangue começou a escorrer. Todos se espantaram, incrédulos com a situação. Ela não demonstrava, mas para Dylan ela exalava medo.
— Se me matar nunca mais vai vê-los.
Aquela ameaça de olhares durou alguns segundos. Rose abaixou a taça quebrada.
— Você sempre faz boas escolhas.- Ele partiu pelo imenso salão, como uma sombra que some em meio a escuridão.
Todos olhavam para ela, querendo respostas. Tudo estava tão confuso, vazio e sem respostas. Aquela era uma situação que nem a mente mais criativa esperava passar. O corpo de Rose estremeceu, atirando o resto da taça numa parede, criando estilhaços no chão.
— Eu tenho medo dele. Eu preciso da minha mãe.- Miguel puxou uma cadeira e sentou-se.- E se ele matou ela, Rose? E o nosso pai?
Uma barulheira de vozes começou, Rose sabia que as perguntas seriam direcionadas à ela, ao menos, assim o grande mestre orientou que fizessem.
— Por que ele me chamou de Rebeca?- A cabeça de Anya estava um confusão.- Quem é ele? Por que a gente tá nessa bosta?
"Cadê os meus pais", "Vamos sair daqui", "Eu não quero morrer", "Ele matou eles", "Eu tô passando mal", "É uma ilha mesmo?", "Alguém me explica o que está acontecendo?", entre todas as centenas de vozes se sobressaindo, uma em especial fez a designada Lídia, sair dos pensamentos abstratos.
— Mais um psicopata viciado em jogos.- Disse o garoto de cabelo azul.
Ela não teve muito tempo para prestar atenção nele. Alguém começou a falar sobre os nomes que Dylan tinha lhes dado.
— Da onde ele tirou Ellen?- Leonardo olhou Rose pelo canto dos olhos.
— Sara...- Miguel ficou pensativo. Tinha conhecido aquela mulher em tão pouco tempo, mas parecia ser tão importante saber tudo sobre ela. A irmã mais velha se sentiu na obrigação de contar à ele a verdade.
— Miguel, a Sara...- Rose tentou começar uma explicação, a revelação de seu verdadeiro parentesco.
— Eu já sei sobre minha conexão com a Sara. Não precisa se preocupar com isso, Rose. Os nossos pais podem estar precisando da gente, é isso que importa.
— Quando ele disse que "não dava para salvar os pais de secundários", o que isso quer dizer? O que são secundários?- Clara se direcionou à Miguel, a única pessoa ali que conhecia, tirando a colega da escola e Rose.
Ele não respondeu, porém a dupla de irmãos sabia muito bem. Essa seria uma longa e dolorosa refeição. Durante a explicação do jogo, que durou cerca de 45 minutos, houve também as orientações decididas pelas pessoas saudáveis o suficiente para pensar. Alguns choraram, gritaram e reclamaram, Ramona até tentou correr, mas um guarda com uma lança a parou. Poucos tiveram a vontade de tocar na comida, apenas o garoto de cabelo destacado, aparentando ser alguém seco, conseguiu tocar em umas coxas de frango. Após quase uma hora reunidos, os guardas os chamaram para voltar aos quartos. Tinham decidido não tentar escapar sem um plano, Anya se desesperou e tentou, sendo a primeira a ser jogada no quarto. Rose percebeu que todos estavam em quartos que ficavam no mesmo corredor. Pronta para ser empurrada em sua locação, a única garota ruiva do castelo foi informada que o rei queria vê-la. Miguel logo atrás, percebeu que algo estava errado, mas não tinha nada que pudesse fazer. Virando no fim do corredor, analisando cada porta, a filha de Lídia formou uma frase em sua cabeça, e precisava focar para não surtar:
"Eu vou ter que fazer alguma coisa".

 

 

— É tudo mato.- Reclamou Marina, colocando a mão na cintura enquanto olhava em volta da propriedade da Vila Sanru.

Todo mundo estava explorando o exterior ou interior do englobamento de casas, vasculhando ao redor para descobrir mais sobre a suposta ilha, mas Daniel não os deixaria ir muito longe, bem, nem vigiando estava.

— Você tem alguém lá fora? Marido, mulher, filho, mãe...- Marina começou um diálogo com a ex-namorada do monstro.

— É, eu tenho.- Olharam as árvores, não viam pássaros.- O nome dele é Alan.- Se perguntou o quanto devia contar, mas não tinha nada a perder.- Ele faz parte de um projeto da organização. É ele quem estava me avisando dos passos do Dylan.

— Parece uma vida legal.- Um breve silêncio se instalou.

 A propriedade ficava um metro acima do que seria a parte plana dos arredores.  Marina olhou mais algumas vezes para o fundo da floresta, mas não conseguia ver nada de diferente. Tudo parecia tão real, nada poderia ser artificial como suspeitava.

— Aonde você vai?- Perguntou Rebeca, vendo a médica assassina descer um barranco.

 Marina que desceu sentada, deu tapinhas em seu vestido todo surrado. Estranhamente, o corte da faca da Girl Blood tinha sumido, porém não se importou com isso, tinha muita coisa acontecendo. Quem sabe aquela fosse uma ilha de ervas mágicas.

— Talvez a gente ache Índios.- Disse abaixando um galho. Rebeca fez um som com a garganta.

 - Vai ser mais tipo "canibais".

 Marina adentrou entre as árvores e arbustos, para fora da vista de Rebeca. Seu cabelo estava preso em um coque, quase que se desfazendo. Pensou em descer e ir atrás dela, mas aquela cretina se virava sozinha. Em outros arredores, Mark quebrava a cabeça para entender a furada em que fora imposto.

— Um homem milionário botou a gente aqui, tipo um jogo? Isso é completamente insano, a gente tem que sair.- Godobllir e seus companheiros não sabiam como orientá-lo.

 - Dois milionários aparentemente. Mais que milionários inclusive.- Respondeu ela de novo. Mark começou seu interrogatório. Lícia ali perto, andou um pouco mais que os outros, até encontrar um tronco caído com musgo, parecia tão cinematográfico. Perto dele viu cogumelos de cores lindas e fortes, tão irresistíveis. Sua barriga roncava, sua mente dizia para não pegar aqueles cogumelos, mas e se talvez a comida acabasse? Teria uma vantagem, viveria mais até alguém conseguir mais alimento. Porém... não valia apena. Apenas não valia.

No interior da vila, Sara e Rafael entraram juntos na sexta casa do lado esquerdo. As outras cinco haviam sido mais do mesmo;nenhuma pista ou coisa que desse para usar como arma(alguns espelhos grandes, dava para quebrá-los, entanto, só pensaram nisso depois), pisos quebrados, paredes esburacadas e destroçadas, chão imundo de terra e lama, tudo imundo e deplorável com cômodos sem graça. Cada um foi para um quarto, nenhuma casa tinha porta entre eles, ao menos por enquanto. Rafael viu apenas uma árvore caída que fez escombros no final de um dos cômodo, e mais um dos espelhos grandes na parede, parecendo com aqueles de banheiro de shopping.

— Pelo menos aqui tem vaso sanitário.- Disse tentando fazer graça, mesmo que preferisse deitar e chorar.

Ao olhar mais atentamente, viu que dentro tinha um sapo morto. Rafael apertou a descarga, mas logicamente nem uma gotícula de água desceu para levar o cadáver embora.

— Achei uma coisa!- Gritou Sara.

Ele apertou o passo e chegou na entrada de onde a voz dela vinha. A parede pelo menos não estava esburacada, mas o piso continuava imundo, quebrado, e sem cobertura no teto. Mesmo com a semelhança às outras casas, tinha uma peculiar diferença no meio do cômodo. Sara não tirou os olhos da banheira branca e suja, dentro dela tinha líquido, mas ninguém ousaria beber dele, nem mesmo a pessoa com mais sede do mundo.

— É sangue diluído em água.- Disse ela.- Se fosse puro estaria forte.

— Eu sei.- E gostaria de não saber. Pessoas normais não precisam se preocupar com banheiras cheias de sangue.

A tonalidade da banheira era vermelha o suficiente para não verem o fundo. Como aquele lugar cheirava mal. Tudo naquela ilha fedia. Saíram da casa e vasculharam todas as outras, não encontraram mais nada de incomum. Foram até Daniel que estava em uma casa de apenas um cômodo. Ao chegarem, viram uma mesa e algumas cadeiras envolta, enquanto ele examinava o mapa com Lídia sentada ao fundo, fazendo algumas anotações.

— Achamos espelhos enormes e uma banheira com sangue.- Rafael se aproximou.

Lídia o encarou, seu cabelo solto estava todo embolado e seu olhar passava alguém com esforço para não enlouquecer. Tinham discutido muito depois do sumiço do sol, e mesmo que tivessem tomado um consenso, ninguém sabia de verdade como lidariam com aquilo a longo prazo. Todo mundo com fome, sem banho, preso e quase sem coragem para procurar um lugar e fazer suas necessidades.

— Ok, tá, acho que descobri onde a gente tá e aonde temos que chegar.

O mapa era um papel com aparência bem velha e frágil. Seu conteúdo não era tão difícil de decifrar, os lugares tinham nome e ilustrações, porém quase todas as centenas de informações estavam em uma língua que desconhecia. Quem dera soubessem que Dylan colocou aquele papel numa caixa com grilos para envelhecê-lo, que também colocou as informações em inglês no Google Tradutor e as traduziu para um idioma estranho.

— Estamos longe do mar, bem longe. Praticamente no meio da ilha.- Daniel suspirou.- Tem uma cachoeira perto, bem mais perto que o mar. Se a água acabar vamos todos pra lá. É potável, vai facilitar as coisas.

— Como você sabe que é potável?- Perguntou

— Ele fez questão de colocar aqui.- Era verdade. Estava escrito com uma fonte bem difícil de ler, porém Daniel conseguiu.

— E o que mais?- Rafael sentia um ar de armadilha naquela façanha.

Ele encarou o mapa e engoliu a seco.

— Acho que sei onde estão as crianças.

Lídia parou o que estava fazendo e fixou nas costas do marido.

— Fala.

 

 

Caminhando pelos corredores da imensa Coruja Negra, Rose não podia deixar de olhar cada porta e janela que passava rapidamente(também os quadros lindos, mas pouco úteis em seu plano para fugir). Os guardas a escoltavam, os dois segurando suas lanças. Rose viu, pelo vão de uma porta dupla, luz como a do sol. Aquela era sua passagem de fuga. As paredes eram bonitas, tinham detalhes cor de ouro pintados e simétricos no meio delas, símbolos estranhos que não conseguia entender. A decoração parecia a de um palácio, mas os corredores eram menores do que deviam ser os que via em filmes. Chegou em uma porta no final do corredor, dupla e bem maior que a primeira que chamou sua atenção, em cima dela tinha um brasão de coruja. Os guardas abriram a porta e a escoltaram para dentro. Logo que entrou viu Dylan sentado em um trono, sendo iluminado por algumas brechas na cortina vermelha tampando a enorme janela atrás dele. Ao lado, viu um homem alto, bastante magro e com cabelos bem escuros, ele segurava um cetro branco com algo que parecia um pen driver no topo, protegido por uma pequena redoma. Examinou o local, mas tudo o que tinha era um tapete rubro, uma porta no canto, e a elevada superfície onde o dono de tudo aquilo se encontrava. Dylan sorriu, tinha trocado de roupa para algo com cara de realeza, mas não muito fora de seus padrões.

 - Por que me trouxe aqui?- Ela exaltou.

 Ele se inclinou para frente, encarando enquanto ponderava ela.

— Gostaria que conhecesse Alan.- Sua mão aberta mirou no homem ao lado.- É meu conselheiro.

— E daí?

Ele fez uma careta, mas voltou com seu sorriso cínico.

 - É uma das poucas pessoas que vai ver nesse castelo fora eu, alguns funcionários e seus amigos. É melhor conhecer quem mora com você.

— Não vou deixar você matar essas crianças.- Foi direto ao ponto.

— Eu não mato crianças, deixo elas se matarem.- Ergueu seu corpo, confrontando o olhar mortal que recebera.

Rose caminhou até Dylan, entanto não subiu os poucos centímetros da plataforma em que ele se encontrava.

— Como foi o banquete?- Perguntou, para a fúria anticinismo de Rose.

Ela não respondeu. Fuzilou seu corpo inteiro com a força da mente.

— Eu gosto bastante das coxas de frango daqui.- Continuou puxando o assunto.- "Foda-se suas coxas de frango" pensava.- E você gostou mais do que?

Não queria abrir a boca, e não iria fazê-lo.

— Te fiz uma pergunta.- O semblante dele ficou sério.

O silêncio continuou, ninguém ali parecia contente. Dylan se levantou do trono, parecendo uma figura horrenda e enorme para Rose. Não aceitava ser ignorado. Allan ficou surpreso, mas não iria conter nenhuma reação de seu senhor. Dylan desceu na frente dela, ela se afastou alguns passos, mas ele continuava indo para a sua frente. Não tinha coragem de atacá-lo, queria ver até onde aguentaria isso.

— Não gostou do banquete, Lídia?- O rosto dele voltou a parecer amistoso. Os dois pararam um na frente do outro com um encaro dramático.- Caso não tenha gostado eu posso pedir para os cozinheiros fazerem algo que você goste, ou eu posso sugerir um novo...- Ela cuspiu no rosto dele.

Todos ficaram imóveis, esperando o que viria nos próximos segundos. Rose sentiu a mistura de ódio e receio sair como a quebra de correntes, mas agora fora tomada por medo. Dylan levou a mão até o rosto, tirando aquela nojeira da sua cara. Tinha cheiro de carne e de doce, dava azia ao seu estômago. Levantou a mão para olhar melhor todo aquele líquido, mexia a mão e mirava na saliva entre seus dedos. Rose também olhava aquela palma, até ela vir acertando sua cara com um forte tapa. Rose foi direto para o chão, atordoada. Allan andou tranquilamente até Dylan, levando o cetro consigo. Rose estava vermelha, sua bochecha esquerda tinha a marca da mão dele.

— Monstro! Eu vou matar você!- Gritou compulsivamente, mal se levantando e indo para cima dele. Allan a empurrou de volta no chão com o cabo de seu cetro. Antes de poder atacar de novo, os guardas a seguraram.- Seu filho da puta! Eu vou acabar com você! Vou matar você!- Berrava e se sacudia, sendo levada embora com grande dificuldade pelos dois soldadinhos.

Quando a porta se fechou, Dylan voltou ao seu assento, o seu conselheiro acompanhou. Os dois ficaram sozinhos, em pleno e total silêncio. Dylan fechou os olhos devagar, pensando, depois abriu e começou a gargalhar. Allan se assustou, mas se recompôs como quem já esperava aquilo.

— Você tem tomado os seus remédios?- Allan perguntou.

Dylan riu mais histérico, ignorando a indagação.

— É sério, Dylan. Se você não tomar seus remédios...

— É, eu sei.- A risada parou de repente.

Allan encarou-o, mas não recebeu olhos de volta. Dylan tinha um olhar vazio. Daqueles que mal pareciam estar vivos.

 

 

Rebeca tinha informado Daniel de seu achado. Ao vasculhar uma das casas, achou um porão, nele havia correntes com algemas presas na parede. Ninguém que estava daquele lado da ilha poderia pegar a referência imposta naquele lugar. Talvez se Jason estivesse vivo ele poderia explicar. Agora, Rebeca pensava em como criar armas para se defender, enquanto sentava-se apoiada na parede exterior de uma casa. Os cacos dos espelhos seriam essenciais para a criação de facas e cortar madeira para fazer flechas, quem sabe até daria para pegar pedras e transformá-las em espadas. Não tinham nada para se defender no momento, se por algum acaso um animal selvagem entrasse na vila, teriam que se esconder para se salvarem, ou poderiam tacar o primeiro deles que vissem pela frente e conseguirem tempo. Logo a noite chegaria, teriam que criar fogo, mas a ficha de ninguém tinha caído totalmente ainda, apenas a dela. Marcos, um dos amigos de Godobllir, sentou ao seu lado, tirando um cigarro do bolso e o acendendo com um isqueiro. Ela olhou surpresa, ninguém tinha ficado com nada nos bolsos(era o que achava). A fumaça foi levada às narinas de Lídia, que tinha acabado de sair do escritório de Daniel com um bloco de notas cheio de anotações. Só deus sabia o quanto odiava aquele cheiro de fumo. Seu falecido pai tinha essa mania extremamente desagradável, mas pelo menos tentava fumar bem longe dela.

— Sara!- Chamou Lídia.

Ela parou sua conversa com Rafael lá na entrada do complexo e veio correndo.

— Daniel quer falar com você.- Disse mal olhando nos olhos dela.

Lídia se afastou, não queria falar com ninguém(mesmo tendo que fazer isso agora), sua mente estava uma panela de pressão. Viu seu estado no reflexo de uma poça, que ao redor só tinha lama, queria ajeitar aquele cabelo bagunçado, só que tinha coisas mais importantes para fazer, como tentar descobrir as informações novas trazidas pelos exploradores do lado de fora. Sara entrou de novo na casa-escritório de Daniel, que passava o dedo sobre o mapa. Ninguém o nomeou líder, mas ele se sentia assim, afinal, se ninguém tentasse conseguir as rédeas da situação antes do desastre acontecer, ninguém sairia vivo dali. Ele mirou em Sara fechando a porta quase por completa, deixando apenas a luz da janela entrar, iluminando a poeira que voava. Ela tentou sorrir, mas o clima se mostrou áspero demais.

— Preciso que seja sincera.- Disse, deixando-a tensa.

— Ok.

Não lembravam da última vez que ficaram sozinhos no mesmo cômodo, nem de uma vez sequer na verdade. Mesmo não sendo muito chegados, naquela época eles eram amigos.

— Aquilo tudo que você contou sobre ter conhecido Dylan, o banquete, ter te mostrado filmagens...

— É verdade.- Respondeu, mesmo sem nenhuma pergunta.

— Mas aquilo foi tudo?- Pensou por alguns segundos e então retomou.- Você não tá escondendo alguma coisa?Omitindo ou sei lá?

Sara arrastou uma cadeira e sentou de frente para ele.

— Aquilo foi tudo o que aconteceu de importante. Eu não fazia a menor ideia de que viríamos aqui. Muito menos "aonde" é aqui.

— Isso depende do que você considera importante.

— Daniel...

— Você passou boas semanas com ele.- Sugestionou.- Impossível não ter visto nada.

— Ele só me deu um vestido bonito e mandou eu contar tudo, foi isso, só isso.

— Poderia ter recusado ou fugido. Eu tenho quase certeza que ele não te mataria de forma alguma...

— Olha, eu estou no mesmo barco que vocês, Daniel. Se afundarem, eu afogo junto.

— Dylan não é burro.- Falou inclinando o corpo para frente. Sara não era uma narradora confiável.- E nem você. Como posso saber que não está do lado dele?

Sara respirou fundo, tinha que provar ser mais uma vítima na selva da fera. Os nervos dos dois se encontravam em estágios diferentes, porém muito similares. Ela se levantou e tirou a blusa preta com o logotipo de uma banda de rock. Daniel virou o rosto mas percebeu o motivo da atitude logo depois. Ela virou de costas e mostrou uma enorme marca que cobria todas suas costas desnudas. Ao olhar com pena, ele conseguiu ler "cobra" escrito com cortes se cicatrizando. Dava para saber o quão fundo aquela lâmina foi no corpo dela.

— Ele não fez isso em mim pra mostrar caso fosse suspeita. Foi pra me marcar igual gado.

Sara colocou a roupa de volta. Um silêncio constrangedor ficou entre eles, não tinham mais nada a ser dito. Daniel constatou que aquilo não provava nada, porém, devia dar uma chance a ela. O som do nada foi quebrado com um grito vindo de fora. Os dois saíram de pressa da casa, vendo Lícia sendo carregada por Rafael, Eléxeu e Noel, enquanto se debatia e esperneava igual louca. "Eles estão vindo! O fogo está vindo! Vão destruir tudo! Nós vamos morrer!" Gritava com grande escândalo, como se a sua vida dependesse disso.

— O que aconteceu?- Perguntou Daniel, vendo a mulher passar carregada, por ele.

— Marina a viu comendo cogumelos.- Respondeu Lídia, chegando perto dele.

Lícia continuava aos berros, socando e chutando as pessoas que a carregavam. Rebeca chegou aos ouvidos de Daniel e sussurrou algo.

— Levem ela pra casa perto do armazém!- Gritou Daniel, indo orientar eles.

A louca não tirava os olhos do céu, procurando alguma coisa.

— A gente vai morrer!- Berrou chorando.- Não estamos em terra! Vai tudo explodir! Os monstros estão olhando!

Sara e Lídia trocaram olhares, e por um segundo as duas sentiram um déjavù. Lícia foi levada para o porão que Rebeca descobriu, e lá foi algemada, igual Jason por Sofia.

 

 

Sentada no chão com as costas apoiadas na porta que fechava seu quarto, Rose olhava o interior do lugar que teria que dormir. Não havia janela, apenas um interruptor para acender o pequeno lustre. Sua cama era de casal, centralizada no quarto e no estilo do de uma princesa, com cortinas finas e transparentes em volta. Ao pé da cama, dois puffs brancos tinham sobre um diário rosa com capa dura e brilhante, que folheando veria que estava totalmente sem nada escrito. Na parede do lado direito existia uma estante de livros bem grande, com vasos de flores coloridas em cima. Na parede esquerda, uma escrivaninha estava segurando centenas de folhas de papel, lápis, canetas, marca-textos, e seja mais lá o que tinha dentro da gaveta fechada, tirando a cadeira que parecia bem pesada. Já na direção da porta, uma simples mas bonita cômoda ocupava aquele vazio espaço, provavelmente com vestidos e outras roupas bem bonitas dentro dela, como as que a sua mãe usava quando mais jovem. Em cima, pairava um porta-retratos que foi abaixado por Rose, nele tinha uma foto tirada de longe, dela empurrando um suposto Dylan na beira do penhasco. Seus olhos ficaram atentos à sombra passando por debaixo da porta, junto ao barulho de passos que se distanciava. Após alguns segundos, deu brecha ao plano.

— Leo! O guarda se foi, ele volta em vinte segundos, eu contei.- Rose elevava a voz apenas o suficiente para o garoto da porta em frente escutar.- Eu tenho um plano.

— Tá bom, se ele voltar eu vou proteger você, não se preocupa.- Falou ele, com a orelha no vão da porta.

— Leonardo, é sério. Ouça.

— Eu sei, por isso quero proteger você.

— Não preciso da sua proteção, Leonardo. Mas a gente precisa sair daqui, então ouve...

O guarda voltou mais cedo do que Rose esperava, mas foi embora mais rápido também.

— Pronto.

— Sou seu namorado, eu preciso ajudar você.

— Não é hora pra isso, pelo amor de deus. Se quer tanto ajudar, ouve a merda do plano por favor.- A ruiva se segurou para não abrir a porta e ir brigar com ele.

Ela não era uma princesa esperando ser salva. Antes que pudesse contar o plano o guarda voltou, e outra ideia passou pela sua cabeça. Deveria escrever um bilhete e mandar para Leonardo, mas quais seriam as chances de acidentalmente dar errado quando a carta fosse arremessada de uma porta para outra? Rose viu a sombra do guarda passar pela sua porta e os passos dele continuarem constantes.

— Não diz nada até eu terminar, é muito importante. Eu sei um lugar que dá pra sair, foi o único que eu achei. Nós vamos...

Ela continuou a contar todo o plano, com agilidade e tomando cuidado para ninguém além deles ouvir, mas Rose não conseguia ver o soldadinho encostado na parede ao lado de sua porta, prestando atenção nos detalhes que passava ao garoto em frente ela.

 

 

— Ela não vai parar. Nem medicamentos pra ajudar ela a gente tem.- Marina orientou, de braços cruzados, olhando para Lícia se debatendo e gritando frases incoerentes, mas de forte impacto.

Seus braços estavam algemados na parede e sua perna direita também, eles a conseguiram mantiver sentada.

— O que a gente pode fazer?- Daniel perguntou.

— Torcer para que ela morra e sobre mais comida.- A verdade a fez receber olhares mal encarados, mas nem um pouquinho sinceros, pois também concordaram por dentro.

"As coxas de frango estão envenenadas!"

Godobllir a encarou com pena, o que dá na cabeça de alguém para deixar algo assim acontecer. Marcos, Eléxeu e Noel se retiraram, deixando apenas Daniel e as duas mulheres com a louca.

— Quem come cogumelo de uma ilha desconhecida?- Marina arfou, se agachando.- Devia estar guardando pra no caso da comida acabar.

— Se não começarmos a fazer algo, vamos ficar loucos também.- Ele se referia aos conflitos que poderiam desviar a atenção de quem era o verdadeiro vilão.

"Matem ela! Matem ela! Ela é um deles!"

— Isa...Godobllir.- Ela virou a cabeça na direção dele.- Sei que deve ser chato, mas pode me falar sobre o jogo que você viveu? Porque com toda certeza não é coincidência estarmos no mesmo inferno.

"Ah, eu lembro do inferno"

— Claro.- Seu rosto tinha um aspecto angelical e triste.- Esse homem, aquele de cabelo preto que eu falei, ele perseguia a gente, queria nos colocar em perigo e uns contra os outros. Perdemos amigos e familiares por culpa dele. Atropelados, queimados, afogados. Mas nós sempre, sempre ficamos juntos! Até...a minha irmã cair na dele prometendo acabar com toda perseguição em troca de se sacrificar por todos.- Os olhos dela brilhavam, emocionada.- Ele arrancou os braços e pernas dela como se fosse uma boneca. Ele gravou tudo e nos forçou assistir cada segundo. Eu ouvia os gritos dela e não podia fazer nada. Ela foi bem forte.- Godobllir enxugou os olhos.

— Você também foi.- Daniel segurou sua mão.

Eles tinham entrado em contato no início do ano e conversado um pouco por telefone, mas nenhum detalhe sobre jogos foi trocado.

— Preciso de algo pra dor de cabeça.- Resmungou Marina, se levantando, ouvindo os gritos histéricos de Lícia.

"Eu vou arrancar ela fora!"

— Cala a boca, idiota.- A médica se afastou, subindo os degraus de volta a(mesmo que pouca) civilização.

Daniel olhou ela subir, então se direcionou a velha amiga.

— Eu vou também.- Começou o suposto líder.- Tenho que...

— Salvar todo mundo?- Ele ficou sem graça. Ela deu um sorrisinho e pensou antes de dizer mais.- Você foi ótimo tentando acalmar todos. Porém seus amigos tem essa síndrome de salvadores. Não dá pra todos serem os salvadores.

— Não acho que todos sejam assim.

— Os que não são só se importam com eles mesmos.- Marina pegaria a indireta se ainda estivesse ali.

— Eu assumi esse cargo primeiro.

— E é por isso que eu sigo você.- Sorriram um para o outro.

"Os demônios estão no teto!"

Ele acenou com a cabeça e subiu depressa para o exterior da casa, indo resolver mais problemas sobre suprimentos e planos falhos. Godobllir ficou olhando para Lícia, a doida não iria parar de se esgoelar tão cedo. Em seu rosto delicado, tinha a expressão de sofrer por pena daquela mulher, era horrível vê-la naquele estado. Ao passar dos gritos, sua expressão foi mudando de compaixão para desprezo. Estava ficando surda com aqueles gritos esbravejantes. Pensou em algum motivo para sair dali e depois arrumar alguém para ficar no lugar. "Vou pedir água à Daniel" arquitetou "Depois mando um dos rapazes vir pra cá". Botou o pé na escada, pronta para se ver livre daquela barulheira infernal.

— Ei Godobllir!- Gritou a louca. Ela se virou para olha-la.- Girl Blood é mais bonito sem anagramas.

Seu queixo caiu. Godobllir. Girl Blood. Ela sabia demais. Mais tarde, quase perto do fim da tarde, Daniel descera até o porão, e encontrara sua amiga chorando no canto, enquanto falava o quão triste estava por ter acompanhado Lícia morrer sem se quer perceber. - Eu não pude fazer nada, ela só parou de gritar e dormiu! Se aquele porão falasse, teria contado que não foi o cogumelo que a matou.

 

 

O guarda acabara de voltar da curva do corredor. Estava bastante apertado para ir ao banheiro, mas não encontrou nenhum de seus colegas para trocar de lugar por alguns instantes. Pelo menos comia bem, dormia confortavelmente e ganhava uma boa grana. Mas no momento só pensava em chegar logo no trono de seu quarto. Após chegar no fim do corredor dos hóspedes, ouviu um grande estrondo vindo do quarto da menina ruiva. Só deus sabe o que aconteceria se o rei visse aquela garota machucada por algo que ele não fez. O guarda correu até o quarto dela e abriu a porta, dando de cara com a garota caída ao chão de bruços. Se abaixou para analisá-la, estava desacordada e já ia gritar por uma enfermeira, até que foi surpreendido por um tecido sendo colocado em volta de seu pescoço. Se levantou rápido, levando nas costas Leonardo, que tentava com toda a força asfixiá-lo. O guarda bateu com o menino nas costas na parede, tentando tirá-lo de cima, mas ele não caia. Rose se levantou e correu até a escrivaninha, levantando a cadeira e a tacando com toda a força em direção a cabeça do guarda. Leonardo pulou das costas dele e só o viu de novo quando ele já estava caído ao chão, com o rosto ensanguentado, provavelmente inconsciente o suficiente para a fuga. Rose saiu do quarto, batendo em todas as portas do corredor desesperada.

— Sai todo mundo!- Gritou, no começo do corredor, voltando correndo para o fim, da onde começaria a rota para fora do castelo.

Todos saíram, acompanhando ela, sem entender nada, mas confiando.

— A gente vai ter que correr!- Rose começou a disparada, virando o corredor, sendo seguida por todos os outros raptados.

Deram de cara com uma camareira, que Miguel fez o favor de empurrar na parede para abrir caminho. Viraram outro corredor. O garoto de cabelo azul olhou para trás, vendo os guardas vindo na direção deles. Estavam perto, muito perto, era no fim daquele corredor, Rose já conseguia ver a luz do sol passando por debaixo da porta dupla. Estavam prontos para correr mais ainda quintal a fora, não dava para parar. Aquele suposto castelo(que na verdade era uma mansão) era tão lindo, mas não dava para apreciar em um momento de adrenalina. Chegaram a porta. Rose empurrou as maçanetas com toda a força, tendo a luz do sol invadindo a sua vista e a de todos por um segundo. Correram, mas não conseguiram mais avançar, apenas esbarrar em si mesmos. Ali não era a porta de saída, era uma sacada do segundo andar. Mal conseguiram chegar à amurada, ela estava afastada demais por um jardinzinho de flores, no vão do parapeito da sacada, cheio de terra, do qual brotavam flores lindas que traziam uma vivacidade colorida à sacada. Jarros de flores apoiados ao redor do corrimão faziam aquilo ser ainda mais lindo. Para pular dali de cima, precisariam esmagar flores e empurrar vasos, mas não foi isso que os fizera desistir de tamanha adrenalina, nem mesmo a queda de quase dez metros. Lá fora, mesmo com as plantas ao redor atrapalhando a visão, todos conseguiram se assustar ao ver tamanha bizarrice. Era enorme, não conseguiam ver o fim, apenas as covas abertas e outras fechadas, os túmulos eram todos de chão, com o nome do morto escrito na lápide. Eles tinham acabado de descobrir, aquele era um cemitério com centenas de covas. Havia um caixão do lado direito de uma cova aberta, enquanto do esquerdo, a montanha de terra que seria usada para enterrar. Um homem gordo suado em uma escavadeira, saudou eles com um gesto de mão sendo colocada e tirada da testa. Coruja Negra era um lugar tão interessante. Os guardas não precisavam fazer nada, todo mundo ficou parado feito estátua, até que Ramona gritou, caindo de joelhos ao chão.

— O que foi?- Clara se abaixou para ajudá-la.

— Ele matou a minha mãe!- Gritou Ramona, aos prantos.

A menina de 12 anos, leu o nome de sua mãe numa das lápides, e se tivesse lido a do lado, teria visto a de sua irmã também. Clara abraçou-a, também apavorada, mas precisava não deixar abater. Os guardas deram passagem para Dylan, que chegou como um raio de sol, que curiosamente iluminou sua entrada. Alan o acompanhava.

— Se queriam explorar o castelo era só me falar.- Abriu um sorriso, daquele típico seu.

A filha biológica dele encarou seus olhos ameaçadores, combatendo com um olhar de fúria. Ele os deixava com medo, não tinham a menor ideia do que ele podia fazer. Adolescentes e crianças, ali, alternando entre procurar pelo nome de alguém de suas famílias e mirar no terrorista que as matou. Sem dúvida, muita gente ainda iria de ser enterrada ali, viva ou morta.

 

 

Continua...


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Notas finais do capítulo

Após a morte de Lícia e a falta de suprimentos se tornar prioridade na vila, Lídia decide tomar uma atitude.



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