Avatar: A Lenda de Kyoshi escrita por Lucas Hansen


Capítulo 15
XIV - Reclusão




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Escoltaram-na para uma cela especial para dobradores de terra. O material tinha um toque frio, e era tão duro, se não mais, do que rocha.

― O que é isso?

― Ferro, garota.

Os soldados jogaram-na dentro com violência, fazendo Myoshi tropeçar e cair de cara no chão. Ao levantar a cabeça, viu sua irmã acorrentada pelo mesmo metal.

― Vai precisar ficar que nem sua irmã? ― Handu perguntou. ― Ou posso deixá-la solta e acreditar no seu bom senso?

― Não farei nada para prejudicar o meu julgamento com a rainha.

― Ótimo. Não tente nada muito esperto, Myoshi. Lembre que temos seus animais.

Ódio alimentou seu coração.

― Não ouse tocar neles.

― Não ousarei. Contanto que se comporte.

A cela foi fechada, selando a passagem entre ela e a liberdade.

Apenas quando os passos morreram ao fundo, Kyoshi soltou a sua voz:

― Vamos, Myoshi. Me tire daqui, e vamos destruir esse lugar.

Myoshi olhou para sua irmã gêmea. Descabelada, bêbada, com fúria em seu olhar e presa ao chão, parecia mais um animal selvagem do que uma pessoa.

― Não.

― Não? Está ficando louca?

― Você que está louca no momento, irmã. Eu estou sóbria e com noção do que faço ou deixo de fazer.

― Você está fraca. ― Ela retrucou. ― Se fosse eu, meus olhos iam brilhar e derrubaria essa cidade de uma vez por todas. ― Bufou, como uma búfalo-rinoceronte. ― Chin conquistaria as cinzas.

― Meus olhos brilharam. ― Myoshi respondeu, pensando na Rainha Maru e seu beijo. ― Mas não posso fazer isso, Kyoshi. Lembre quem é o verdadeiro inimigo.

Kyoshi olhou para o nada, cheia de raiva e frustração. 

― Você tem razão.

― É claro que tenho. Eu sempre fui a mais esperta. Agora, vai dormir. Você acordará melhor amanhã. 

― Com certeza. ― O tom de ironia não foi ocultado pela irmã. 

Myoshi tomou seu próprio lugar no canto da cela, encostada entre barras de ferro, com os joelhos no peito. E quando deu por si, lágrimas escorreram de sua face.

Por quê? Estava feliz. Havia beijado pela primeira vez. Nunca sentira nada como aquilo. Por que Rainha Maru a enganou? 

Um lado de sua cabeça dizia, com certeza absoluta, que tudo que Maru fez foi de forma sincera e legítima. No entanto, o outro lado ridicularizava essa ideia. Ela te usou, esse lado dizia. Nada do que disse ou fez foi real. 

E, com a cabeça encostada nos  joelhos, Myoshi dormiu. E a única pessoa que viera visitá-la nos sonhos fora sua rainha. 

Acordou com um carcereiro lhe dando um tapa na cabeça. 

― Acorde, molenga. Não quero supervisionar vocês irmãzinhas o dia inteiro. 

― Então por que não abre a cela pra nós nos supervisionarmos sozinhas? ― Kyoshi respondeu. 

― Você ia gostar disso, não ia? ― Ele retrucou, entregando dois potes de arroz com ovos fritos de porcos-galinha, além de dois copos d'água. 

Kyoshi comeu com fervor, e reclamando da sua dor de cabeça, pediu mais água ao homem, o que lhe foi negado. 

Myoshi estava sem fome. A comida parecia mais lhe embrulhar o estômago do que abri-lo. Haviam cascas no ovo, notou. E o arroz estava um pouco queimado. Cedeu sua refeição para Kyoshi. 

― Tem certeza? 

― Coma logo. 

Com o término da refeição, o carcereiro levou os potes e os copos para, provavelmente, às cozinhas. E, com isso, outro veio suprir o turno de vigiá-las. Era um guarda meio gordo, com barba e uma sobrancelha que mais aparentava uma aranha-taturana. Mas a gordura escondia os claros músculos de seu braço, o que era uma camuflagem de sua força. 

Durante todo o tempo ele sentou, fitando-as, esperando um movimento em falso dela ou de sua irmã para atacar, ou pior, soar um alarme. 

Myoshi se aproximou do homem. 

― Nem mais um passo, mocinha. Ou você vai se arrepender. 

― Você está ciente de que eu sou o Avatar, não é? 

― Um mero Avatar em formação, nada como Kuruk nos últimos tempos dele. 

― Fala isso pro exército de Chin. Você deve ter ouvido as histórias.

― Eu... Admito que ouvi. 

― Posso saber qual o seu nome? 

― Monor. 

― Monor. Caso eu quisesse escapar dessa cela, pode acreditar que eu já o teria feito. Pretendo atender ao julgamento da Rainha Maru. Olhá-la nos olhos enquanto ela me sentencia por meus supostos crimes. 

― Pode ser. ― Ele disse. ― Mas essa daí vai tentar escapar na primeira oportunidade. 

― Fique tranquilo, Monor. Eu não conseguiria parar Kyoshi nem se eu quisesse. E muito menos você, eu imagino. 

― Não me subestime. 

― E não estou. É que, de todos os dobradores que já vi, nenhum se equipara a ela. ― E sorriu. ― Não há nada para você se preocupar.

― Eu decido com o que eu vou me preocupar ou não. 

― Com certeza. Mas enquanto você se decide, por que não nos conhecemos? Os espíritos sabem que preciso conversar com alguém além da minha irmã mal humorada. 

― Nos... Conhecer?

― Claro, por que não? 

― Por que você é uma prisioneira da rainha, talvez?

― Você e suas regras. Relaxe um pouco, pelo amor dos espíritos. ― Ele não esboçou reação alguma. ― Eu começo, então. Eu gosto muito de animas, sabia? Desde garota me dava melhor com eles do que com meus pais e minha irmã. ― E sorriu. ― Bicudo é o único animal que me restou do meu antigo lar. Me diga, Monor. Meu Bicudo está bem? 

― Como prometido por general Handu, nenhum deles seria molestado, caso você e a senhora sua irmã se comportassem. 

― Ótimo. Espero que ele esteja sendo bem tratado mesmo. Assim como meu pequeno Xudok. 

― Aquele monstro. 

― Xudok só será um monstro se o tratarem como um. Diga-me, ele está acorrentado, não é? Com uma enorme focinheira também, eu imagino. ― O silêncio foi a resposta. ― É, eu sabia. Eu aprendi isso logo quando criança. Caso você vá com um coração cheio de escuridão, medo e incerteza na frente de um animal, ele te verá como um monstro, e logo, se tornará um monstro para se defender de você. Agora, se você mostra apenas a luz, o carinho e a confiança, ele te verá como um amigo. E agirá como amigo. E não só com animais, eu acredito. Pessoas funcionam dessa forma também. ― Myoshi esperou a réplica por um tempo, até que ela veio. 

― Bom, você pode ter razão quanto a isso... É, sobre as pessoas. 

― Eu tenho certeza que tenho razão, Monor. Agradeceria se você fizesse algo para ajudar meu pequeno Xudok. Acredite, eu mais do que ninguém quero que ele não vire um monstro. Se vocês pudessem soltá-lo, deixá-lo comigo... 

― Handu jamais permitiria, Myoshi. Me desculpe.

― Handu? E quanto a Rainha Maru? Ela permitiria? ― O silêncio foi a resposta de Monor. ― Bom, acho que isso é o fim do assunto. Me diga, Monor. Você foi nascido e criado aqui em Omashu?

― Não, nascido e criado em uma fazenda alguns quilômetros daqui. 

― Eu também. Uma das melhores fazendas da região. ― Disse, orgulhosa, pensando no pai. ― Quantos homens queriam casar comigo e com a irmã só pelas terras? Perdi a conta. 

― Minha fazenda não era como a sua. Éramos pobres, com uma terra minúscula, mal tendo comida na mesa. Até o dia que fui convocado para Omashu, participar do exército. Nessa época meu pai já havia morrido, e trouxe minha mãe para a cidade... 

― Você voltou para lá?

― Não, nunca mais vi o meu lar. É difícil... Ser um homem sem lar. 

Um silêncio perdurou nas masmorras, até que uma voz que descia respondeu. Uma voz fina, delicada e traiçoeira. 

― Você tem um novo lar agora, Monor. ― Rainha Maru disse. 

― Minha rainha. ― Ele ajoelhou de prontidão. ― Eu... Sinto muito. Não quis dizer nada que a ofendesse. Me perdoe. 

― Não há o que perdoar, meu soldado. Erga-se de uma vez. ― Ele se ergueu. ― Vejo que já caiu no charme da nossa querida Avatar. 

― Estávamos apenas conversando, minha rainha. Não pretendia soltá-la, se é isso que quer dizer. 

― Monor não fez nada, Maru. ― Myoshi interviu. 

― Mas você fez. ― Kyoshi disse, de repente. ― Você, ó Rainha de Omashu, vai virar rainha de nada se não nos soltar. Caso Chin não derrube tudo, eu vou derrubar. 

Rainha Maru fitou Kyoshi com olhos frios. 

― Deixe-nos. ― A monarca disse para Monor. 

― Mas, vossa majestade, essas são prisoneiras. Perigosas, prisioneiras perigosas. Não posso te deixar aqui sozinha. Não posso deixar elas sozinhas... Tenho ordem diretamente do general.

― Eu sou a rainha, soldado. Caso tenha esquecido. Agora, deixe-nos! 

Monor ficou imóvel por um tempo, até fazer uma reverência e fazer como ordenado. 

― Você tem uma certa dificuldade para que seu povo acate com as suas ordens. ― Myoshi ironizou. 

― E terá ainda mais dificuldades depois que estiver sete palmos abaixo da terra. ― Kyoshi complementou. 

― Estou farta das suas ameaças, Kyoshi. Estou aqui para conversar com sua irmã. 

― Para conversar com a minha irmã, precisa conversar comigo também. 

A rainha olhou, desapontada. 

― Devia ter te deixado presa junto com os animais. 

― Eu te mato! ― Kyoshi tentou se desvincular de suas correntes, sem sucesso. Realmente parecia um animal ali, se debatendo. 

― Kyoshi! Pare com isso. ― Ela não parou. ― EU MANDEI VOCÊ PARAR! ― Ao gritar, fogo deixou a sua boca, quase encostando na sua irmã. Ela cessou sua fútil resistência por um momento. ― Considere isso um aviso. Você não sabe o que a rainha veio conversar conosco. Talvez, esteja aqui para ajudar. 

― Ajudar? Ela nos prendeu, Myoshi! 

― Verdade. Mas ela é a única que pode nos soltar. Agora, fique quieta. ― Kyoshi bufou, mas fez como ordenado. Quando se virou para a rainha, ela estava sorrindo. 

― Você realmente leva jeito com animais. 

― Não a provoque. ― Disse, fria. ― E ela é ainda é minha irmã. Continue a ofendendo, que você estará ofendendo o Avatar, Maru. 

― Agora você é o Avatar? E eu deixei de ser vossa majestade? 

― O que posso dizer? Admito que perdi o respeito que tinha por você. 

― Uma pena. Pois eu te respeito ainda mais, Avatar. 

― Diga logo o que veio dizer. 

― Direto ao ponto. Parece até eu, ontem a noite, no chafariz. 

― Diga logo o que veio dizer. ― Disse, imutável. 

― Bom... Você e sua irmã irão ser julgadas por crimes contra mim e minha autoridade. 

― Não sabemos o que fizemos para ofender sua autoridade. 

― Você fez, Myoshi. Você realmente pensou que Handu iria aceitar você tirar a autoridade dele perante meu exército? Ele fez uma ofensa a ele se tornar uma ofensa a mim, e acredite, é bem convincente quando ele explica. 

― E quando eu fiz isso? 

― Quando você o ordenou a não matar os alces-leões-dentes-de-sabre, talvez?

― Eu o salvei dos alces-leões-dentes-de-sabre. E aquilo foi desumano. 

― Foi. Caso estivesse lá, também ordenaria para que não fosse feito. Mas não estava. E ele era a autoridade suprema do exército... Até ser desafiado por você. Handu não é um homem de esquecer desrespeitos. 

― E eu não sou mulher que massacra animais. Mas, obrigada por nos avisar o que vamos enfrentar no tribunal. 

― Isso não é tudo. Ele também quer ameaçá-la, Myoshi.

― Me ameaçar?

― Sim. Coagi-la a utilizar seu poder contra Chin e seu exército. Caso não use, jurou que matará seus animais. Aquele pássaro, e o filhote.

― Não! ― Se agarrou nas barras. ― Por favor, Maru. Não o deixe fazer isso.

― Você não compreende a situação, Myoshi. Eu... Não posso fazer muita coisa para impedi-lo.

― Você é a rainha! Você pode fazer tudo que quiser!

― Se você acha que funciona assim, você claramente não entende de política.

― Você é o poder, não há o que entender.

― Poder vem de muitos lugares, Myoshi. O poder supremo é o poder da força. Não é a toa que o Avatar é a pessoa mais poderosa do mundo. Não é por que você é uma rainha, ou uma senhora rica, ou a dona de alguns navios. Pelo contrário. Você veio do nada. Uma plebeia qualquer. E ainda assim, é a pessoa mais poderosa do mundo, capaz de fazer o que bem entender, e caso alguém te questione, basta você mostrar sua força, que deixarão de questionar. Uma rainha não pode fazer isso.

― O que está querendo dizer? Que eu devo usar meu poder para forçar minha vontade?

― Você faz o que bem entende, Myoshi. Eu só estou dizendo que minhas mãos estão atadas. Mas isso não quer dizer que não quero te ajudar.

― E como você pode me ajudar?

― Haverá três juízes, incluindo eu e Handu. Os três darão o veredito de culpa ou a inocência. 

― E você pretende decidir nossa inocência. ― Ela assentiu. ― Handu com certeza nos julgará culpadas. Sobrará tudo para o terceiro juiz. Quem é essa pessoa? 

― Eu convenci o conselho de convocar uma pessoa imparcial. Que não te conheceu para te julgar bem ou mal. É o máximo que pude fazer. Estou tentando convencê-lo da sua inocência, ou melhor, insinuando sua boa índole, e consequentemente, sua inocência. Mas tenho certeza que Handu está fazendo o contrário. Temo que saberemos a decisão dele apenas no julgamento. 

Myoshi ficou em silêncio por um tempo. 

― Aquele beijo... Foi de verdade? 

― O quê? 

― Quando você me beijou. ― Disse, envergonhada. ― Você só estava me enganando para que Handu me prendesse? Ou foi um beijo real... Com sentimentos?

― Por que não pode ter sido os dois? ― Ela questionou. ― Handu me fez levá-la até os jardins, é verdade. Mas nunca disse nada sobre te beijar. Eu decidi te beijar porque... Quis. Não há outra explicação. 

Myoshi não tinha respostas para aquilo. 

― Bom, vou te deixar sozinha com seus pensamentos. ― Myoshi voltou a se sentar entre as barras de ferro. ― Aliás, ― Ela disse, antes de deixar as masmorras. ― Você já tentou meditar alguma vez? Talvez meditar te fizesse bem. Talvez fizesse algo bem melhor do que bem. ― E seus passos começaram a ficar cada vez mais fracos enquanto subia as escadas. 

― Meditar. ― Kyoshi fez um som de escárnio com a boca. ― Como se isso fosse ajudar agora. 

De qualquer forma, Myoshi tentara meditar aquela noite. 

Não lembrava muito bem como se fazia. Sua mãe, Sukishi, costumava fazer na varanda de sua fazenda durante o crepúsculo. Recordava da posição que ela tomava e de suas respirações profundas. Ouvira algumas vezes ela dizendo que a parte mais importante, além da postura e respiração, era não pensar em absolutamente nada. 

E essa foi a tarefa que considerou a mais difícil. 

Enquanto tentava meditar, sua mente divagava. De seu pai até sua mãe, de sua irmã até Lee, de Handu até a Rainha Maru. De Chin. Mas, em um determinado momento, decidiu pensar apenas na sua respiração. 

Fingiu que seu fôlego eram nuvens em um céu azul. Quando inspirava, as nuvens sumiam, e apenas o céu resplandecia. Quando expirava, as nuvens fofas retornavam. E continuou. A cada respirada, as nuvens iam e voltavam no céu de sua mente. 

E então o viu. 

Não sabia exatamente onde estava. Era um lugar úmido, com água rasa de pântano, e árvores distorcidas e sem folhas que jamais vira antes. A coloração do local não remetia ao mundo real. E, na sua frente, estava um homem. 

Era alto, talvez não tão alto quanto Myoshi. De uma pele escura, com barba, vestes azuis da Tribo da Água e um cão-urso polar envolvendo seus cabelos. E conseguia sentir o que ele sentia. 

Desespero. Ódio. Frustração. Se houvesse algum sentimento bom remoendo dentro dele, Myoshi não sentia. 

― Eu já te vi antes... Você... Você é... 

― Kuruk. Meu nome é Kuruk, jovem Avatar. 


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