Avatar: Contos Tangenciais escrita por Flávio Caique


Capítulo 1
Conto I - Ming Yun




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Conto I

Ming Yun

“Desça já daí seu moleque imundo, pra que eu lhe meta uns cascudos bem dados”

 

 Se Ming Yun desse ouvidos ao quitandeiro naquele momento, decidindo ceder ao limo das telhas que pouco a pouco lhe jogava para baixo, e aceitasse a generosa proposta de ganhar umas sovas (afinal, não era um corretivo qualquer, mas caprichosos “cascudos bem dados”), saberia que teria um motivo a mais para não querer rever seus amigos na Praça do Mercado. Cicatrizes podem parecer condecorações à delinquência adulta, mas no submundo da contravenção juvenil são motivo para deboches e outras amolações que se prendem à reputação do indivíduo como um pentapus lilás. Assim, caso fosse pego e seu algoz lhe aplicasse a pena, o coro de zombarias prontamente responderia à batuta de seus hematomas com um sonoro “Boa, Yun, seu saco de esterco!”, ou “Ele é um patife, não sabe fazer nada direito”, e ainda “Quem é que queria ser chefe de tríade mesmo?”. Sabia bem disso, tratando a própria experiência de lhe ensinar em certa feita, pelas mãos impiedosas da quituteira de bolinhos lunares e rolinhos de banana, o quão indigesto era ter que dividir o estômago entre os petiscos roubados e os chavões de escárnio que os moleques usavam ao ver as vermelhidões dos sopapos que recebeu quando a fúria da doceira conseguiu lhe alcançar. Foi puxando esse episódio doloroso à memória e não aguentando mais o sobrepeso do melão e dos pêssegos que lhe colocaram naquela situação incômoda, que Yun recolheu em seus pulmões o ar que precisaria para escapar e soltou as peças de cerâmica. Com um impulso desengonçado (desses que se tem nos desesperos da vida), projetou seu corpo franzino por sobre o quitandeiro que congestionava a saída do beco com uma pança absurda e um cutelo na mão – a pança podendo ser explicada pelos anos de dívida aos exercícios, e o cutelo, por seu esforço um tanto quanto bem-sucedido de amedrontar os trombadinhas que lhe furtavam as frutas.

Em seu breve voo de fuga, Yun enterrou um dos pés no ombro do vendedor para pegar um novo impulso de liberdade, alargando-se novamente no espaço para pousar de forma precária a uns três metros das costas do homem. A condição física do vendedor impediu-o de conter o garoto, que rapidamente pôs-se a correr dali para a rua principal com a velocidade de um lince das taigas no encalce de uma lebre. Não tardou em atrair a atenção dos comerciantes e dos que ali passavam a trágica cena do quitandeiro – mais paquiderme que lince – ofegante perseguindo o rapaz. Os berros e palavrões arfados pelo esforço do homem gordo venceram com resistência a imensidão de vozes que vendiam e compravam, denunciando o delito em curso, mas pouco caso foi feito do alarde, já que os furtos no Mercado eram tão comuns quanto a natural ação da gravidade sobre os embrulhos distribuídos pelo sistema de correios da Cidade. Duas ou três passadas de perna rápidas e já estava o pobre infeliz a se apoiar no batente de um armazém, limpando com o avental o suor que a curta perseguição havia causado e instando um sem número de pragas contra o ladrãozinho, enquanto que o jovem delinquente, diluído pelo casual pandemônio do Mercado, já esfregava na camisa a maciez de um pêssego, cravando-lhe os dentes com o gozo de quem conseguiu o que precisava. E assim, modelava o acaso a argila dos dias de Ming Yun, imprimindo neles as marcas únicas da combinação de cores, cheiros e rostos distintos, com os arremates que só o desconhecido é capaz de empregar. Contudo, havia nesses dias um quê de rotina, uma aura de repetição. Ainda que remasse pelos córregos das circunstâncias, entregue ao curso das incertezas, o jovem gondoleiro de seu próprio destino sabia que tinha um roteiro a seguir diariamente: teria que comer, e assim sendo, furtar pra comer, correr ao furtar e rezar ao correr; tudo isso para mais tarde apaziguar seu fôlego e arranjar em um canto qualquer um abrigo que lhe protegesse, se possível fosse, do frio da noite. Essa era a viga mestra na história de Ming Yun agora, e sobre ela vinha sendo construída, tijolo-a-tijolo, sua passagem neste mundo; e assim ainda seria pelo espaço de longos anos, não fosse aquela noite em que seria cúmplice de fatos que estavam além da sua compreensão, de forças com as quais não poderia imaginar estar sujeito, de interesses muito mais pretenciosos que sua pobre caçada por comida no Mercado. Aquela noite que remodelou para sempre o rascunho borrado que era sua vida, quando a morte e a ganância humana lhe foram mostradas em toda sua nudez.

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Notas finais do capítulo

Este conto está incompleto. Caso se interesse no desenvolvimento da história, por favor sinalize nos comentários.
Abs.



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